sábado, 13 de abril de 2024

Brincando (a sério) aos editores

 

Brincando (a sério) aos editores
por Eugénio Lisboa
 
I’ll publish, right or wrong.
          Lord Byron
 
Publication is the male equivalent
of childbirth.
          Richard Aclan
 
“(…) É sobretudo, de uma das áreas da nossa actividade [na Anglo Portuguese Foundation] – a edição de livros – que quero hoje aqui falar. E foi nela, servindo-se, é claro, do apoio dos meus conhecimentos de literatura e cultura portuguesas, que Kim Taylor terá deixado marca mais duradoura. Duradoura? Já iremos falar nisso. Kim tinha bons conhecimentos sobre a «fabricação» de livros e sobre os meandros do seu marketing. Sabia formatá-los com o apoio competente e sensível do seu irmão – sabia negociar protocolos com as casas editoras (e fê-lo chegando a um acordo com uma das melhores editoras do país, a Carcanet Press, de Manchester), em tudo pondo uma atenção, uma determinação e uma meticulosidade que rapidamente o faziam passar da fase do sonho à da realização. Tudo ia acontecendo, num protocolo teimoso de formiga que, grão a grão, enche o seu celeiro.
O problema era escolher o nosso catálogo. Publicar o quê? Nisto, eu e o Kim alinhávamos bem no mesmo projecto: obras de qualidade, sim, obras representativas, claro, mas não obras boas apenas para uns happy few, que um público mais alargado e um pouco menos sofisticado rejeitasse. Poesia, ficção, história, grandes clássicos e clássicos modernos. Em suma: alta qualidade que não espantasse a caça. Estávamos bem conscientes da dificuldade dilemática que Santayana tão bem emblematizara, nestes termos: “A cultura acha-se nos cornos deste dilema: se nobre e profunda, é só para raros; se mais comum, torna-se insignificante.” Nós visávamos o nobre e profundo que se não tornasse, por outro lado, inacessível: tanto em antigos como em contemporâneos. Julgo que a nossa lista inicial de grandes escritores traduzidos não serviu mal este propósito: Camões – o épico e o lírico – numa nova tradução de Keith Bosley, omnívoro tradutor de várias línguas, incluindo o finlandês…, Fernão Mendes Pinto, Eça de Queirós (quase toda a ficção, com uma primeira e admirável tradução de Alves & Cia), Fernando Pessoa (incluindo o Livro do Desassossego que, nesse mesmo outono de 1991, viu quatro versões em inglês, três em Inglaterra e uma nos Estados Unidos, e uma volumosa antologia de poesia e prosa, organizada por mim e por Kim Taylor, incluindo, em tradução inglesa, o famoso ensaio de Octavio Paz sobre o encenador dos heterónimos, além de contribuições de Tabucchi, José Blanco e outros), Miguel Torga (Contos e Novos Contos da Montanha e A Criação do Mundo), José Régio (Histórias de Mulheres), Jorge de Sena (Sinais de Fogo), José rodrigues Miguéis (Páscoa Feliz), David Mourão-Ferreira (Um Amor Feliz), uma substancial antologia do conto português dos séculos XIX e XX, por mim organizada e incluindo contos de Eça, Fialho, António Patrício, Fernando Pessoa, Irene Lisboa, José Régio, Rodrigues Miguéis, Domingos Monteiro, Branquinho da Fonseca, Miguel Torga, Joaquim Paço d’Arcos, Manuel da Fonseca, José Marmelo e Silva, Maria Judite de Carvalho, David Mourão Ferreira, Herberto Hélder e Mário de Carvalho, e também (embora não com o meu voto), um romance de Saramago… [o meu voto contra teve sobretudo este significado: Saramago era já um nome comercial, que não precisava do apoio de uma organização como a nossa, que devia reservar os seus esforços e dinheiro, para promover autores que, de outro modo, dificilmente encontrariam editor. Poder-se-ia perguntar se Camões e Pessoa estariam nesta caso: de Camões, quisemos traduzir peças ainda não traduzidas ou promover nova tradução de outras já traduzidas; de Pessoa, quisemos incluir textos em prosa e uma melhor tradução de poemas já anteriormente traduzidos.] Mas não nos ficámos por traduções de obras de ficção e poesia, de consumados autores portugueses: obras de história e ensaio tiveram também lugar: três clássicos de Charles Boxer (The Portuguese Seaborne Empire, The Christian Century in Japan – 1549/1650 e The Golden Age of Brazil), o fascinante livro de Silvio Bedini, The Pope’s Elephant, que conta a saborosa história da oferta de um elefante feita pelo rei D. Manuel ao papa Leão X, o clássico de Maurice Collis, The Grand Peregrination, sobre a vida e época de Fernão Mendes pinto, uma bela tradução de longos excertos da própria Peregrinação, do grande aventureiro português, e o 2º volume do livro de Rose Macauley, They Went to Portugal Too, cujo 1º, publicado em 1946, utilizara apenas metade do material textual disponível, devido ao, então, rigoroso racionamento de papel.
Nem todos estes livros foram lançados no mercado durante o período em que Kim Taylor foi director da Gulbenkian, em Londres: reformado em 1989, permaneceu, no entanto, até 1995 (ano em que também eu saí de Londres), como «executive editor», de parceria com Michael Schmidt, da Carcanet Press, das séries «Aspects of Portugal» (capa dura e sobrecapa de papel) e «From the Portuguese» (série de traduções em formato de livro de bolso, de capa macia, dedicada a autores portugueses do século XX). Já fora dos escritórios da Gulbenkian, as suas reuniões comigo – Michael Schmidt vivia em Manchester e, em qualquer dos casos, pouco interferia nas séries – tinham lugar, ora na embaixada – onde suámos sangue, suor e lágrimas sobre a maciça e meticulosa antologia que fizemos de Pessoa – A Centenary Pessoa – ora num minúsculo pied-à-terre que o Kim possuía em Bloomsbury, no nº 22 da Conway Street, London W1, a dois passos da Livraria Dillon’s e no centro do universo outrora habitado ou simplesmente frequentado por Virginia Woolf, Lady Ottoline Morrell, Bertrand Russell, Aldous Huxley, D. H. Lawrence e tantos outros que são hoje do património cultural inglês e universal. Eu chegava por volta do meio dia, sentava-me e ia manipulando papéis e tomando notas, enquanto o Kim, que mal cabia no espaço disponível do seu habitáculo, se debruçava sobre o fogão, preparando, com uma mestria fácil e despretensiosa, a refeição que, regada sempre com um vinho bem escolhido, servia de motor de arranque para a nossa tarde de trabalho. Foram momentos inesquecíveis e famosamente produtivos. Kim tinha sentido de humor e afinadíssima cultura, a um tempo profunda e discreta, a que me encostava sem ter muito a impressão de que me era imposta. Conversávamos e trabalhávamos e os livros, lentamente, iam-se construindo. Nem sempre estávamos de acordo: eu verguei-me, com dificuldade, à reimpressão de certas traduções de Eça, que me pareciam ou levianas (O Primo Basílio) ou francamente medíocres (O Crime do Padre Amaro), mas acabei por ceder ao sentido de pragmatismo ou de urgência – ou ambos – do Kim. A mim, em particular, deu-me um singular prazer trabalhar na antologia de contos (em dois volumes) e na antologia pessoana. Quanto a esta última, não foi pequeno o orgulho que senti ao ler as 6 ou 7 páginas que George Steiner lhe viria a consagrar na prestigiosa revista americana The New Yorker. Reeditar Os Maias ou A Ilustre Casa de Ramires (que levou Jonathan Keates a presumir que Flaubert teria assassinado para escrever algo tão bom), fazer verter admiravelmente para inglês – e pela primeira vez – uma das mais singulares ficções de Eça – Alves & Cª - trazer para a língua de Swift as belíssimas Histórias de Mulheres, de Régio, ou a Páscoa Feliz, de Miguéis, ou os Sinais de Fogo de Jorge de Sena – são privilégios que nos enchem de um gozo profundo, mesmo quando as instâncias oficiais deitam sobre o caso um olho negligente e vagamente enfastiado. A verdade é que tanto o Kim como eu não estávamos ali a trabalhar, naquelas tardes sossegadas da Conway Street ou nalgumas manhãs alongadas de Belgrave Square, para benefício ou contentamento de quaisquer entidades oficiais ou outras: profundamente egoístas, no sentido mais nobre do termo, fazíamos o que fazíamos, «for the sake of it», como dizem os britânicos ou, se preferirdes, pelo gozo de fazermos – se possível, bem – aquilo que fazíamos. Já o velho filósofo americano Ralph Waldo Emerson se apercebera disso, quando dissera: “A recompensa para uma coisa bem feita é termo-la feito.” Os livros iam-se construindo, numa língua bem diferente daquela em que tinham sido concebidos, numa obstinada e saborosa lentidão – um dia haviam de ser obra concluída e iriam provocar, se tivessem sorte, a atenção de uma gente menos habituada àquela literatura diferente e oriunda de paragens menos exploradas. Lentamente… O tempo que levou a peneirar, a escolher, a fazer traduzir, a rever a tradução, a «encher» de depoimentos, de prefácios, de tábuas informativas, de material adjacente e necessário, essa bela antologia de Pessoa que legámos à língua inglesa: ainda recentemente, um grande editor português me veio pedir que a «vertesse» para português! Ela teve já duas reimpressões em «paperback» e há-de levar «mais Pessoa» a leitores de língua inglesa do que, durante muito tempo, se julgou possível… Tudo feito com teimosia e lentidão. Há uma passagem belíssima, de um texto da grande pintora americana Georgia O’Keefe, que eu aqui gostaria de transcrever, como homenagem suprema à eminente e empenhada contribuição de Kim Taylor para a divulgação da cultura portuguesa no Reino Unido. Dizia ela: “À tarde, eu saio para o deserto e passo horas a ver o sol descer, só pelo gozo imenso que isso me dá, e todos os dias volto a sair para de novo olhar para ele. Desenho um bocadinho e fica ali um pouco de pintura e assim os dias vão correndo.” Também connosco, todos os dias ficava ali um bocadinho de livro e assim os dias iam passando, até um dia haver, finalmente, um livro. A lusofilia, a de Kim, ia assim fazendo crescer, simultaneamente, um livro e uma amizade.
Peço licença, para transcrever, traduzindo-as, por me parecerem de interesse, algumas breves passagens dos comentários que Kim Taylor recentemente me enviou, acerca do modo como «viveu» a construção de alguns dos livros que editámos:
  1. O livro A Centenary Pessoa foi, de todos o que mais me agradou, na série «Aspects» [of Portugal]. Investiu-se, como se lembra, um grande volume de trabalho na sua criação e composição. A minha única mágoa é a tradução de Bosley da «Tabacaria», embora fiel, não competir com a versão mágica de Suzete Macedo, mas a verdade é que não podíamos insistir nessa intromissão particular no trabalho cuidadoso de Bosley. O design do livro – em grande parte, obra do meu irmão – é excelente.
  1. O livro de Rose Macauley [They Went to Portugal Too] tem, é claro, um lugar muito especial no reino dos meus afectos. Publicar tanto material «novo» de um tal autor foi uma oportunidade rara. Por via dele, pude conhecer, em visitas repetidas, a encantadora Susan Lowndes. As ilustrações funcionam bem e o livro é excepcionalmente belo.
  1. A Peregrinação exigiu uma enorme quantidade de trabalho editorial. A tradução original de Lowery de passagens seleccionadas era vívida e legível mas, como miscelânea, não dava uma impressão adequada do original maciço. Felizmente, a edição completa de Rebecca Katz tinha aparecido poucos anos antes e foi-me possível fazer resumos narrativos de ligação. O produto final é um texto digno.
  1. Os livros de Boxer eram, é claro, dignos de serem reeditados. Penso que as novas ilustrações, os frontispícios, as sobrecapas, etc. os tornaram adicionalmente atraentes. Incidentalmente, os numerosos arquivos e museus de Portugal que providenciaram as inúmeras ilustrações para os livros da série nunca, em caso nenhum, exigiram pagamento – o mesmo não se podendo dizer das fontes de informação inglesas e francesas. Penso que The Golden Age of Brazil e The Christian Century in Japan são do meu especial agrado.
  1. The Pope’s Elephant foi uma EXPERIÊNCIA! Michael Schmidt tentou liquidar o projecto depois de termos gasto horas nele, para grande fúria de Bedini. O manuscrito original estava escrito em americano e necessitava de uma grande dose de tradução para inglês (Bedini mostrou-se encantado, quando lhe fazíamos sugestões) e ele [Bedini] tinha tendência a presumir um pouco razoável conhecimento da história europeia, da parte dos seus leitores. As suas ilustrações eram uma confusão. Meu irmão e eu passámos 10 dias no meu apartamento em Londres tentando dar àquele fardo mal amanhado uma configuração viável, com trabalho editorial a acrescentar… O produto final é um tributo ao efeito que os Descobrimentos tiveram no alargamento da consciência europeia. O livro vendeu-se particularmente bem na América e veio a tornar-se um «paperback» da Penguin nos Estados Unidos.
Salto algumas passagens do depoimento de Kim, mas não resisto às palavras finais da sua carta recente:
“Olhando para trás, quão feliz estou por termos embarcado nas duas séries. Michael Schmidt não foi exactamente um colaborador entusiástico (os seus interesses situavam-se sobretudo na poesia e na vanguarda) e quanto a Ben Whitaker [sucessor de Kim na Gulbenkian]… Contudo, trabalhar nos livros contigo, querido Eugénio, foi para mim um grande e duradouro prazer. Os livros na minha estante continuam a significar um duradouro tributo a anos de amizade e a uma colaboração que foi sempre confortável, bem humorada e criativa e, frequentemente, puro deleite!
Afectuosamente
Kim”

Citei esta última passagem porque ela fala por si e porque me aquece o coração. Mas entristece-me também um pouco, porque nela figura, por duas vezes, o adjectivo «duradouro». Se o adjectivo fica bem – e é justo – quando qualifica o prazer e o tributo, deixa-me, no entanto, melancólico pelas dúvidas que me surgem quanto à durabilidade do nosso investimento. Dizia Valéry que o problema com o nosso tempo é que o futuro já não é o que costumava ser. Quando Kim e eu trabalhávamos na nossa sementeira, parecia-nos que investíamos num futuro não duvidoso. Hoje, porém, tenho dúvidas. Um empreendimento destes não é concebido para um período limitado de uma dúzia de anos: precisa de continuidade que o prolongue e, de tempos a tempos, ressuscite os títulos já esgotados. É, por assim dizer – e perdoem-me a hipérbole – um projecto para a eternidade. Infelizmente – e estas coisas têm que ser ditas – os nossos governantes não acreditam a sério na cultura, porque nem sequer a compreendem – nem a ela, nem ao seu valor que vai muito para além do que é em si. Hoje, em Londres, of all places, o posto de conselheiro cultural encontra-se extinto. Um ministro dos negócios estrangeiros, quando quis ver-se livre de uma titular do pelouro cultural [alegadamente] pouco produtiva, mas ainda a meio do contrato, não achou melhor maneira de a despedir, sem a indemnizar, do que recorrer ao expediente radical de extinguir o lugar. Faço ideia do que devem hoje pensar os altos funcionários do Foreign Office e do British Council. Extinguir um cargo destes numa capital como Londres é, no mínimo, um gesto terceiro-mundista, sem ofensa para o Terceiro Mundo. Estou ciente de que estas palavras são duras, mas creio que ficam à proporção da irresponsabilidade da decisão ministerial.
Faz pena. Porque, sem continuidade que assegure ao esforço de poucos alguma garantia de presença, investimentos como os de Kim Taylor e também o meu correm o risco, para dar a uma frase célebre de Churchill a merecida amplidão metafórica, de vir a ficar soterrados “nos ingratos desertos da Mesopotâmia”. Assim seja, se assim for. Fica-nos a esperança de que, num dia qualquer de um futuro incerto, um leitor imaginário, vagueando por uma biblioteca ou navegando na internet, descubra alguns dos títulos com que, durante uma década e meia, o Kim Taylor, com algum acompanhamento meu, tentou mostrar aos britânicos que a cultura portuguesa existe e vale a pena ser conhecida.”
Eugénio Lisboa , in “L. C. Taylor: malhas que a lusofilia tece”, texto  apresentado num colóquio na Universidade de Aveiro, em 2012).

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