domingo, 22 de outubro de 2023

O jardineiro da felicidade

Josef Stalin
 
O jardineiro da felicidade humana
por Eugénio Lisboa
« Agora, que, por todo esse mundo, avançam as radicalizações, à direita e à esquerda, convém ir lembrando de que metal são feitos os tiranos. São gente perigosa, porque, mesmo quando o seu comportamento é ostensivamente grotesco, guloso de glorificação, para além daquele teor mínimo de megalomania que assiste a qualquer ser humano, arranjam sempre uma corte de bajuladores que se atropelam uns aos outros para verem quem mais se destaca na arte de bajular. Vou aqui transcrever um excerto de um capítulo do excelentemente documentado livro A CONTRA HISTÓRIA DO COMUNISMO, do espanhol Fernando Díaz Villanueva.
 
O jardineiro da felicidade humana
“Os tiranos foram sempre muito dados a olhar para o umbigo e a obrigar toda a gente a admirá-los. Por isso, aquilo a que hoje chamamos culto da personalidade – expressão extraída directamente do marxismo – teve lugar em todas as civilizações, independentemente da época e do lugar.
 Os egípcios antigos divinizaram os faraós, que, mais do que simples reis, eram deuses num corpo mortal que estavam de passagem pela Terra. Em Roma, os governantes começaram a investir-se de divindade, assim que a antiga república deu lugar ao Império. Incas, aztecas, tibetanos e chineses transformaram os seus governantes em algo muito semelhante a deuses, quando não directamente em deuses. Na China, a filosofia política prevalecente era a do mandato do céu, que era muito similar à que, na Europa, legitimava a monarquia de direito divino.
Mas, ainda que pareça mentira, foi no século XX que o culto da personalidade alcançou o seu máximo esplendor, em boa medida, graças ao aparecimento de novas tecnologias e meios de expressão como a fotografia e o cinema e, principalmente, à irrupção dos totalitarismos após a Primeira Guerra Mundial. Os fascistas e os bolcheviques perderam a cabeça com o culto ao líder e aos poderosos. As suas ideologias anómicas tinham essa veneração no código genético e os avanços técnicos da época tornaram realidade os seus sonhos idólatras.
O  fascismo italiano, como em muitas das formas exteriores do socialismo, foi o primeiro. Mussolini revestiu-se de uma autoridade inspirada no culto dos antigos césares. Os uniformes, os desfiles, o passo de ganso, as saudações romanas, tudo isso marcou um estilo que os nazis rapidamente adoptaram. Os bolcheviques distanciaram-se ligeiramente da estética fascista, mas reforçaram ainda mais a veneração do líder. Isso aconteceu já nos tempos de Lenine, mas, como ele não viveu o suficiente para completar a sua obra, foi na era de Estaline que o culto da personalidade atingiu a sua máxima expressão.
A loucura começou com os nomes do inominável. Ninguém no seu perfeito juízo se referia a ele como Joseph, o seu nome próprio, mas como Estaline, o seu cognome revolucionário, que em russo quer dizer qualquer coisa como “feito de aço”. Os aduladores depressa começaram a arranjar-lhe sobrenomes grandíloquos, como Pai dos Povos, Líder e Mestre dos Trabalhadores do Mundo, Titã da Revolução Mundial, Corifeu da Ciência, Jardineiro da Felicidade Humana, Brilhante Génio da Humanidade, Grande Arquitecto do Comunismo ou Sábio Timoneiro. Utilizavam esses vários epítetos grandiosos, consoante a época e a ocasião.
A princípio, a designação que mais lhe agradava utilizar para ganhar legitimidade era a de Discípulo Predilecto do Camarada Lenine, depois, quando o seu poderio se tornou incontestável, passou a preferir a de Pai dos Povos, que foi muito utilizada fora da URSS após a Segunda Guerra Mundial, ou a especialmente cómica designação de Amigo Benevolente de Todas As Crianças.
Não parou aqui a megalomania. Dezasseis cidades de diversos países mudaram de nome em homenagem ao líder de aço. A maior e mais famosa foi Estalinegrado, à qual a História reservou um papel especialmente heroico.”
 
De todos os títulos grandiosos, escolhi, para encabeçar esta transcrição, o de O JARDINEIRO DA FELICIDADE HUMANA, por razões de ferina ironia. Quando, ainda na vigência do regime soviético, visitei Moscovo e Leninegrado (hoje, de novo, S. Petersburgo), achei tudo aquilo tão tenebroso, tão soturno, tão absurdamente cruel
( não encontrei rigorosamente nada que me apetecesse trazer como recordação), que cogitei, com os meus botões, nunca ter visitado nada de onde a felicidade humana estivesse tão arredada.»
Eugénio Lisboa, 21.10.2023

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