sábado, 14 de outubro de 2023

Contradigo-me?

 
 
Contradigo‑me?
 — Walt Whitman
por Leonard Cohen
I
"O meu avô veio morar comigo. Não tinha outro lugar para onde ir. O que teria acontecido a todos os seus filhos? Morte, declínio, exílio — não sei muito bem. Os meus pais morreram de dor. Mas, para começar, não posso ser muito soturno, caso contrário irás deixar‑me, e isso é o que eu mais temo, creio. Quem começaria a ler uma história sabendo que a mesma iria acabar com um carro triunfal a subir ao céu ou com uma cruz? A senhoria desencantou algures uma cama extra e colocou‑a no meu quarto. Aumentou a renda de nove para onze dólares. Afinal de contas, disse ela, sempre é mais uma pessoa a usar a casa de banho. Tinha razão. O pobre velho tinha uma bexiga fraca, e precisava também de escarrar com frequência. Surpreendeu‑me quão bem ele falava inglês. Não me recordo de os meus pais falarem tão bem inglês. Quando vieram para cá, prometeram um ao outro que nunca mais voltariam a trocar uma palavra que fosse na sua língua materna. “Começamos outra vez, tudo outra vez”, dizia o meu pai em muitas ocasiões. Lembro‑me do discurso lento e penoso dos dois ao tentarem comunicar as mais pequenas coisas um ao outro. Não me parece que tenham alguma vez quebrado a sua promessa, mesmo na privacidade das suas camas. À medida que vou envelhecendo, percebo quão colossal era o seu isolamento individual. Recusavam até desenvolver um vocabulário privado de expressões faciais. Quando a minha mãe tentava servir‑se dos seus belos olhos e mãos para descrever alguma coisa, o meu pai dizia: “Não, não, começa outra vez, inglês.” Nenhuma subtileza, nenhuma intimidade, nenhum segredo — morreram de solidão, tenho a certeza. Nunca ouvi falar muito do meu avô. Aliás, achava até que tinha morrido. Sei que os meus pais costumavam enviar‑lhe algum dinheiro todos os meses, mas não tenho a certeza. Na nossa casa, nada era muito claro, e, além disso, eles não gostavam de me envolver em nada que estivesse relacionado com o passado. Na semana passada, mais para o final da semana, recebi um telefonema. A porta do meu quarto estava fechada, claro, e eu estava sentado na única cadeira do quarto a espreitar Stanley Street da janela.  A noite, cada vez mais cerrada, começava a ocultar a fealdade da rua. Até mesmo o longo fluxo de automóveis, enormes e absurdos, começava a esbater‑se num movimento de beleza, e eu não conseguia enxergar o rosto dos condutores à medida que passavam. Ao fundo do corredor, o telefone tocou. Foquei‑me num casal por baixo da minha janela. A minha janela estava fechada, ou antes, encravada, por isso não podia abri‑la e não podia ouvir o que eles estavam a dizer um ao outro. Mas era óbvio que se tratava de uma discussão. Ela estava encostada a um dos automóveis estacionados, de mãos nas ancas, impassível. Ele permanecia diante dela, um tanto aturdido, levantando e baixando as mãos abertas com gestos de tal modo regulares que mais parecia estar a fazer malabarismos com laranjas invisíveis. O seu movimento começou a irritar‑me e, exatamente nesse momento, quando dei conta da minha irritação, a rapariga tomou nas suas as mãos dele e baixou‑lhas com violência. Suponho que ela lhe tenha gritado, como eu teria gostado de fazer: “E pára de agitar essas malditas mãos à minha frente.” Estava totalmente embrenhado nesta deliciosa observação quando ouvi passos do fundo do corredor e reconheci a pesada mão da minha senhoria a bater à porta. Fiquei furioso. Não há muitos privilégios decorrentes de se viver numa pensão em Stanley Street, mas sempre procurei preservar a minha privacidade em todos os lugares onde estive. Quando precisava de solidão, não pedia mais nada exceto que me deixassem ficar sozinho. Não, não te vás embora, por favor, não me refiro a ti. Tinha deixado bem claro à minha senhoria que não queria ser incomodado à noite, em nenhuma circunstância. Em primeiro lugar, porque preciso da minha privacidade, como acabei de dizer, e, em segundo, porque ficava sempre aterrorizado com a possibilidade de ser interrompido quando estava a fazer amor com Marylin. Quando a senhoria bateu à porta, fiquei furioso porque ela me afastou do drama da rua e porque tinha invadido o meu quarto. Embora te possa assinalar estas três razões, e espero não estar a ser demasiado entediante, a verdade é que nunca compreendi em absoluto a minha raiva. De facto, chego às vezes a assustar‑me com ela. É mais um ódio do que propriamente uma raiva. Em ocasiões como esta que estou a descrever, é algo que me domina por completo, que se apodera de mim, que me tira de mim mesmo. Ou talvez deva dizer que me mergulha em mim mesmo, uma vez que, como já disse, nessas ocasiões sinto‑me privado de carne e órgãos, e o mais verdadeiro âmago do ódio e da violência fica exposto. Atenção, eu sei que isto poderá não ser muito interessante, mas devo falar‑vos de mim. Quer dizer, se eu não fizer isso, para que é estamos aqui, afinal de contas? Quando ela bateu à porta e esse súbito ódio pela sua pessoa me consumiu, tive vontade de lhe berrar qualquer coisa, fosse o que fosse, uma reprimenda, uma obscenidade, algo que exprimisse a força do que sentia, e contudo retesei o corpo, fechei os olhos bem fechados e perguntei‑lhe com voz rouca o que desejava. 
  “Telefone, desculpe incomodá‑lo, chamada interurbana, Nova Iorque, América”, explicou‑me ela. “Calculei que quisesse atender.” 
Fiquei logo aliviado. O ódio dissipou‑se com a explicação dela com a mesma rapidez com que me tinha consumido. Durante alguns momentos, comprazi‑me com essa sensação de alívio. Vi o meu corpo a relaxar, os meus olhos voltaram a abrir‑se e focaram-‑se  no casal que discutia. Permaneciam na mesma posição, mas agora ele tinha as mãos enfiadas nos bolsos. O meu coração deixou de bater como timbales e voltou ao ritmo lento de um gongo. Mais uma vez, a senhoria lembrou‑me do telefone. Agradeci‑lhe e voltei a instalar‑me na cadeira. Sei desde há muito que ficamos cegos a meio de um acto. Toda a sabedoria é em antecipação. Pus‑me a especular a respeito de quem seria a chamada e qual seria a natureza da mesma. Imaginei‑me a segurar no auscultador, senti a forma do plástico preto na minha mão, consegui sentir o cheiro da minha senhoria no objeto. Ouvi a voz distante, recebi a mensagem, digeri‑a. Depois de ter esgotado todas as imagens na minha mente, levantei‑me e caminhei até à porta. Já estava cansado do acontecimento. Era como se já tivesse acontecido. Vejamos, teria de passar apenas uma nesga de tempo com aquele negro instrumento para compensar pela minha deliciosa conjetura. Melindrava‑me ter de encostar o círculo rijo ao ouvido. Ouviria apenas uma voz, ao passo que antes tinha ouvido e dissecado um coro inteiro. Receberia apenas uma mensagem, ao passo que antes tinha recebido notícias, veredictos, leis, proibições e segredos. Disse o meu nome para o bocal perfurado.
  “Ah”, disse uma voz, carregada de entoação estrangeira, “ficamos tão contentes por finalmente o termos encontrado…”
   “Encontrado?”
  “Sim, sabíamos que ele tinha um neto, um neto em Montreal. O nome do seu pai era Frederik?”
   “O nome dele era esse, sim.”
  “Já não conseguimos tê‑lo connosco mais tempo. Isso é certo. Se tivéssemos o dinheiro necessário, mas não temos, e, além disso, nem sequer somos da família. Quando o seu pai mandava o dinheiro, as coisas eram diferentes. Gostamos dele, digo‑lhe já que gostamos dele, é um velhote muito amável. Mas agora é demasiado difícil para a minha mulher, ela já não pode tomar conta dele.”
   “Só um segundo. Está a dizer que o meu avô está neste momento a morar convosco?”
  “Sim, sim, estou a dizer‑lhe. Mantivemo‑lo connosco, mesmo quando o dinheiro parou. Gostamos dele, mas agora é demasiado difícil. Ele está doente, tem de ficar sob vigilância.”   
  “Sim, sim, claro. Como é que souberam de mim?”
   “O velhote, ele disse‑nos que tinha alguém em Montreal. Lembrava‑se do seu nome, tinha‑o apontado algures, estava numa carta que o seu pai deve ter enviado, vimos que estava lá o seu nome. O Frederik era o seu pai, correto? Procurámos o seu número na lista de telefone de Montreal num hotel.”
  “Sim, sim, extraordinário, passado este tempo todo.”
   “Teríamos ficado com ele mesmo sem o dinheiro, mas ela própria anda cansada e doente, a minha mulher. Ouça, não posso falar mais tempo, as chamadas interurbanas são demasiado caras. Ele sabe que não podemos ficar com ele mais tempo e quer falar consigo, o velhote. Quer estar com a família. Está disposto a aceitá‑lo?”
   “Eu próprio também tenho muito pouco, só um quarto, mas claro que ele tem de vir para cá.”
  “Ótimo, ótimo, você é um bom neto. Já comprámos o bilhete de comboio. Não podemos ir com ele. Vamos deixá‑lo ao comboio e depois você encontra‑se com ele em Montreal. Diz aqui que o comboio irá chegar na quarta‑feira às onze da noite. Você irá ter com ele, o seu avô vai ficar muito contente. Percebeu tudo?”
  “Sim, quarta‑feira às onze da noite. Será que vou conseguir reconhecê‑lo?”
  “É um velhote, um velhote. Ele diz muitas vezes que você é a cara chapada dele.”
   “Ótimo. Lá estarei, e quero agradecer‑lhe por tudo o que fizeram, o senhor e a sua esposa, e desejo as melhoras dela.”
   Mas antes de eu ter acabado a última frase, já ele tinha desligado. Logo a seguir, discuti a situação com a minha senhoria, que, fosse como fosse, tinha estado a ouvir a conversa; a nova cama e a nova renda foram acordadas. Voltei para o meu quarto e sentei‑me à janela. Não tinha esperado isto, decerto. Então o inesperado sempre acontece, de vez em quando. Lentamente, senti o retorno  de um profundo amor familiar, um laço que unia as gerações umas às outras. Estava ansioso por me encontrar com o meu avô, por partilhar o meu quarto e a minha comida com ele, aquele que era da minha própria carne e do meu próprio sangue, que era da minha linhagem. Quantas coisas iria eu aprender, quanta força iria dar um ao outro… Devíamos estar juntos. O que estava ele a fazer ali, a passar os seus últimos dias com estranhos? Uma sensação agradável espalhou‑se‑me pelo corpo. Um velho amor tinha regressado, devolvendo‑me aos meus, derramando‑se por toda a rua, misturando‑se com a noite que caía e tornando‑a fragrante. E, como se para confirmar o que sentia, o casal por baixo da minha janela, que eu agora mal conseguia ver, tinha parado com a discussão, e agora estava abraçado. Houve um homem que se aproximou, e os dois afastaram‑se. Estavam encostados ao automóvel dele. Levantei‑me e dirigi‑me para a cama. Parei diante da cama e imaginei‑me a deitar‑me nela. Deitei‑me e fechei os olhos, misturando as cores num mundo de amor, dando forma ao corpo de Marylin no meio das sombras, esperando com renovada paciência a sua chegada. Para onde teria ido vaguear o casal abraçado? Para onde teria seguido viagem, o dono do automóvel? A seiscentos e quarenta quilómetros de distância, alguém deve estar a fazer a mala de viagem gasta de um velho. Ouvi os passos dela nas escadas exteriores.”
Leonard Cohen, in Um Balé de Leprosos, Romance e Contos, Relógio D’Água Editores, Outubro de 2023,  pp.11-16
 
Sobre o livro:
Este livro reúne um romance e contos inéditos de Leonard Cohen. O compositor canadiano de sucessos como “Hallelujah”, “Suzanne” e “Famous Blue Raincoat” aventurou-se pela primeira vez na escrita aos vinte e poucos anos, e é neste livro que os leitores descobrirão que a magia que animou o seu trabalho estava presente desde o início.
Escritos entre 1956 e 1961, estes textos oferecem revelações sobre a imaginação e o processo criativo de Cohen, e neles o autor explora temas que estariam presentes no seu trabalho posterior, da vergonha e indignidade ao desejo sexual em todas as suas dimensões sagradas e profanas, passando pelo amor, a família, a liberdade ou a transcendência.
Um Balé de Leprosos — nas suas palavras, um romance “provavelmente melhor” do que o celebrado O Jogo Preferido — analisa esses elementos, abordando relacionamentos tóxicos e os extremos que as pessoas atingem para os manter. Os quinze contos sondam os demónios interiores das suas personagens.
”A escrita de Cohen captura toda a beleza e poeticidade que aprendemos a amar na sua música, assim como uma juventude ingénua, um senso de brincadeira e uma crueldade inusitada. É muito interessante ver onde tudo isso começou.” [Ottessa Moshfegh]
“Este livro oferece vislumbres incipientes da visão artística inimitável de Cohen: íntima e distante, tremendo de fraqueza mesmo quando anseia pela sabedoria.” [The New York Times]
“Uma coleção fascinante de ficção inicial que antecipa os temas e preocupações que Cohen mais tarde exploraria ao longo de décadas… Uma investigação curiosa e compulsiva dos limites da honestidade e da crueldade.” [The Guardian]
Leonard Cohen
Sobre o autor:
Leonard Cohen nasceu em Montreal, no Canadá, em Setembro de 1934. Foi cantor, poeta, romancista e compositor.
Aos vinte e dois anos, publicou um livro de poemas, Comparemos Mitologias. O seu primeiro álbum, Songs of Leonard Cohen, saído em 1967, popularizou algumas das suas canções mais famosas, como “Suzanne”.
Ao longo da vida, publicou doze obras, incluindo dois romances (Belos Vencidos O Jogo Preferido).
Obteve reconhecimento mundial como cantor e compositor, editando mais de vinte álbuns, três deles nos últimos anos da sua vida.
Entre os numerosos prémios e distinções que recebeu, destacam-se o Prémio Príncipe das Astúrias das Letras (2011), o PEN/New England Song Lyrics Award for Literary Excellence (2012), o Prémio Glenn Gould (2012) e o Juno Award para Artista e para Álbum do Ano (2017).
Leonard Cohen faleceu em Los Angeles, a 7 de Novembro de 2016.

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