quinta-feira, 16 de junho de 2022

Caramba!, este menino vai ser escritor


"Soube então que se tinha posto de acordo com as professoras sobre o pretexto do piano estragado para me evitar a tortura que ela sofrera durante cinco anos de excercícios estúpidos no Colégio de la Presentación. O consolo foi que em Cataca tinham aberto por aqueles anos a escola montessoriana, cujas professoras estimulavam os cinco sentidos por meio de exercícios práticos e ensinavam a cantar. Com o talento e a beleza da directora Rosa Elena Fergusson, estudar era algo tão maravilhoso como brincar e estar vivo. Aprendi a apreciar o olfacto, cujo poder de evocações nostálgicas é arrasador. (...)
Não creio que haja método melhor do que o montessoriano para sensibilizar as crianças às belezas do mundo e para lhes despertar a curiosidade pelos segredos da vida. Censuraram-lhe que fomentava o sentido de independência e o individualismo - e talvez no meu caso fosse certo. Pelo contrário , nunca aprendi a dividir ou a extrair a raiz quadrada, nem a manejar ideias abstractas. Éramos tão novos que apenas me lembro de dois condiscípulos. Uma era Juanita Mendonza , que morreu de tifo aos sete anos, pouco depois de inaugurada a escola e me impressionou tanto que nunca a consegui esquecer com coroa e véu de noiva no caixão. O outro é Guillermo Valencia Abdala, meu amigo desde o primeiro recreio e meu médico infalível para as ressacas das segundas-feiras.
A minha irmã Margot deve ter sido muito infeliz naquela escola, embora não me recorde que alguma vez o tenha dito. Sentava-se na sua cadeira da classe elementar (1) e ali permanecia calada - mesmo durante as horas de recreio - sem desviar a vista de um ponto indefinido até que soava a campainha do final. Nunca soube nessa altura que quando ficava só na sala vazia mastigava a terra do jardim da casa que levava escondida no bolso do avental.
Tive muita dificuldade em aprender a ler. Não me parecia lógico que a letra «m» se chamasse «éme» e, no entanto, com a vogal seguinte não se dissesse «éme» e sim «ma». Era-me impossível ler assim. Por fim, quando cheguei ao Montessori, a professora não me ensinou os nomes mas sim os sons das consoantes.
Assim pude ler o primeiro livro que encontrei numa arca poeirenta da arrecadação da casa. Estava descosido e incompleto, mas absorveu-me de uma forma tão intensa que o namorado da Sara, ao passar, deixou cair uma premonição aterradora: «Caramba!, este menino vai ser escritor».
Dito por ele, que vivia de escrever, causou-me uma grande impressão. Passaram vários anos antes de saber que o livro era «As Mil e Uma Noites». O conto de que mais gostei – um dos mais curtos e o mais simples que li — continuou a parecer-me o melhor para o resto da minha vida, embora agora não esteja seguro de que fosse lá que o li nem ninguém me tenha podido esclarecer.
O conto é este: um pescador prometeu a uma vizinha oferecer-lhe o primeiro peixe que pescasse se ela lhe emprestasse um chumbo para a sua rede e, quando a mulher abriu o peixe para o frigir, tinha dentro um diamante do tamanho de uma amêndoa."
Gabriel García Márquez, in Viver para Contá-la, Publicações Dom Quixote, Março de 2003, pp.117,118,119
(1) Corresponde à pré-primária. ( N.T.)

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