terça-feira, 21 de junho de 2022

O pesadelo de Estaline

O conto , que se vai apresentar, foi extraído   de uma  magnifica obra de Bertrand Russell - "Contos".  A  Terceira Parte   dessa obra  é dedicada    a uma curiosa 
 série  de textos que   tem como título "Pesadelos". Estas histórias foram  publicadas pela primeira vez sob o título de Nigtmares of Eminent Persons and Other Stories, em 1954 por The Bodley Head.
Russell  antecede-as com a seguinte introdução:
" Os Pesadelos que se seguem podem chamar-se Indicações para a Saúde Mental. Cada paixão isolada é, no seu isolamento, insana; a sanidade mental pode definir-se como uma síntese de insanidades. Cada paixão dominante gera um pesadelo ,  por vezes na forma de um explícito  e consciente fanatismo, por vezes numa timidez paralisante, por vezes num  inconsciente ou subconsciente terror que só encontra expressão em sonhos. O homem que deseje conservar a sanidade mental num mundo perigoso deve despertar no seu próprio espírito um Parlamento de receios em que cada um por sua vez  seja decretado absurdo por todos os outros. Os que sonharam os pesadelos que se seguem não adoptaram esta técnica; esperemos que o leitor tenha mais juízo." 
Bertrand  Russell, in Contos , Parceria A. M. Pereira, Lda. , 1973, p 309

O pesadelo de Estaline 
( Escrito antes da morte de Estaline)

Amor vincit omnia
por Bertrand Russell
" Estaline depois de muitos tragos de vodka  misturados com pimenta vermelha, adormeceu na sua cadeira. Molotov, Malenkov e Beria, com os dedos sobre os lábios, avisaram familiares intrusos para não interferirem no repouso do grande homem. Enquanto eles o vigiavam, Estaline teve um sonho, e o que sonhou é o que se segue: 

Terceira Guerra Mundial realizara-se e fora perdida. Estaline era cativo dos Aliados Ocidentais. Mas estes , tendo observado  que os julgamentos  de Nuremberg geravam simpatia  pelos nazis , decidiram desta vez adoptar um plano diferente : entregaram Estaline a uma delegação de Quakers eminentes  que afirmaram que mesmo ele,  pelo poder do amor, podia ser levado ao arrependimento e à vida de um cidadão decente.
Foi decidido que, até o seu trabalho espiritual estar completo, as janelas do quarto de Estaline  deviam ser reforçadas com grades , não fosse ele tornar-se  culpado de um acto temerário , e não se lhe devia permitir o uso de facas, não fosse ele, numa fúria, atacar as pessoas interessadas na sua regeneração . Instalaram-no confortavelmente em duas salas de uma velha casa de campo, mas com as portas fechadas à chave, excepto durante  uma hora  do dia  quando, em companhia de quatro musculosos Quakers, era levado para um passeio rápido em que o encorajavam a admirar as belezas  da natureza e a gozar o canto da cotovia. Durante o resto do dia podia ler e escrever , mas não lhe consentiam nenhuma literatura que fosse considerada inflamatória. Deram-lhe a Bíblia, o Pilgrim's Progress e Uncle Tom's Cabin. E uma vez ou outra, como presente, os romances de Charlotte M. Yonge. Não tinha tabaco , nem álcool, nem pimenta vermelha. Cacau podia tomar a qualquer hora do dia ou da noite, visto o mais eminente dos seus guardiães ser fornecedor dessa bebida inocente. Chá e café permitiam-lhe moderadamente, mas não em quantidades que interferissem com o repouso nocturno.
Pelo espaço de uma hora , de manhã e à tardinha, os graves  cavalheiros  a cujo cuidado Estaline  tinha sido entregue explicavam-lhe os princípios da caridade cristã e a felicidade que ele podia ainda gozar se reconhecesse a sua sabedoria. A tarefa das discussões recaiu em especial em três homens  contados entre os mais sábios que esperavam trazê-lo à luz.  Esses homens eram Mr. Tobias Toogood , Mr. Samuel Swete e Mr. Wilbraham Weldon.
Estaline conhecera esses homens nos dias  da sua grandeza . Não muito antes de rebentar a Terceira Guerra Mundial, eles tinham viajado até Moscovo para o acusar e se esforçarem por o convencer dos seus erros.  Falaram-lhe de benevolência universal e amor cristão. Referiram-se em termos inflamados às alegrias da mansidão, e tentaram convencê-lo de que havia mais felicidade em ser amado do que em ser temido. Durante um tempo Estaline escutou-os com uma paciência fruto do espanto, e depois exclamou:
- O que é que os senhores sabem das alegrias da vida? - a sua voz trovejava. - Como conhecem pouco do prazer intoxicante  de dominar toda uma nação pelo terror, sabendo que quase toda a gente nos deseja a morte  e que ninguém a pode executar , sabendo que os nossos inimigos do mundo inteiro estão comprometidos em tentativas fúteis para adivinhar os nossos pensamentos secretos, sabendo que o nosso poder há - de sobreviver ao extermínio não só dos nossos inimigos mas também dos nossos amigos! Não, cavalheiros, a maneira de viver que me oferecem não me atrai. Regressem às vossas velhas pretensões de lucro doiradas de fingida piedade, e deixem-me com a minha mais heroica maneira de viver.
Os Quakers, frustrados de momento, voltaram à pátria a esperar uma oportunidade melhor. Estaline, derrotado e no seu poder, talvez se mostrasse mais tratável. Mas por estranho que parecesse, ele continuava teimoso. Eram homens com muita prática  de delinquência juvenil, de desenredar complexos  e de os guiar, com gentil persuasão, à crença de que a honestidade é a melhor política.
- Mr. Estaline - disse Tobias Toogood - esperamos que compreenda agora a loucura de vida a que até aqui aderiu. Já não falo na desgraça que trouxe ao mundo, porque isso o senhor afirmar-me-á que pouco lhe importa. Mas medite no que fez a si próprio.   Caiu da posição mais alta para a condição de humilde prisioneiro, devendo os confortos que ainda tem ao facto de os seus carcereiros não seguirem as suas máximas.  As cruéis alegrias de que nos falou quando da nossa visita, nos dias da sua grandeza, já não são suas. Mas se derrubar a barreira do orgulho, se se arrepender, se aprender  a encontrar a felicidade  dos outros, talvez ainda tenha algum contentamento tolerável e algum objectivo para o resto dos seus dias.
Nesta altura, Estaline pôs-se de pé  de um salto, exclamando:
- Vá para o diabo, seu hipócrita ranhoso. Não compreendo nada do que diz, se  não que você está em cima e eu à sua mercê, e que você achou maneira  de insultar a minha infelicidade  de um modo mais irritante e mais humilhante do que tudo quanto inventei nos meus castigos.
- Oh, Mr. Estaline - disse Mr. Swete - como pode ser tão injusto e tão maldoso? Não vê que nós só temos para consigo as mais benevolentes atenções? Não vê que lhe desejamos salvar a alma, e que deploramos a violência  e o ódio que promoveu entre os seus amigos? Não desejamos  humilhá-lo, e pudesse o senhor ao menos apreciar a grandeza terrena no seu verdadeiro valor, e veria que é um escape à humilhação que lhe estamos a oferecer.
- Isto é realmente de mais - gritou Estaline . - Quando era pequeno, escutava conversas dessas no meu seminário georgiano, mas não é conversa que um homem crescido possa escutar com paciência. Quem me dera acreditar no Inferno, que ficaria à espera do prazer de ver a vossa suavidade dissipada pelas chamas abrasadoras.
- Oh, que vergonha, meu caro Mr. Estaline! - disse Weldon. - Não se excite , porque é só através da calma que atingirá a sabedoria do que lhe estamos a tentar mostrar.
Antes que Estaline pudesse retorquir, Mr. Toogood interveio mais uma vez:
- Estou certo, Mr. Estaline, de que um homem com a sua inteligência não pode ficar para sempre cego à verdade , mas, de momento, está cansado e sugiro que uma calmante chávena de cacau talvez seja melhor para si do que o chá indevidamente estimulante que tem estado a beber.
Estaline não se pode conter por mais tempo . Pegou no bule  e atirou-o à cabeça de Mr. Toogood. O líquido escaldante caiu-lhe pela cara abaixo, mas Mr. Toogood disse apenas:
- Bem, bem , Mr. Estaline, isso não é argumento. 
Num paroxismo de raiva, Estaline acordou. Por um instante a raiva continuou , e Estaline descarregou-a sobre Molotov, Malenkov e Beria, que estremeceram pálidos. Mas conforme as nuvens do sono se afastaram, a raiva evaporou-se, e Estaline confortou-se com um longo gole de vodka e pimenta vermelha."
Bertrand Russell in Contos , Parceria A. M. Pereira, Lda. , 1973, pp. 365 - 368

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