quinta-feira, 30 de junho de 2022

Crónicas da Infâmia

 


Crónicas da Infâmia
11 - Da barbárie consentida


O mundo com vários abcessos prestes a rebentar. Ainda há pouco exultávamos de esperança, e já ninguém tem paz na alma. É que não há mais tempo de duração. Todas as nossas horas são ofegantes , e cadentes as estrelas anunciadas e anunciadoras .Temos tudo, e falta-nos o essencial. É como se de repente a vida ficasse do avesso e a não soubéssemos vestir.

                                                       Miguel Torga, Diário XVI


Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa.
                                  Fernando Pessoa



É com  horror e espanto que continuo a saber, ou seja,  a redescobrir que a guerra desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia é apenas uma guerra da Ucrânia. A Rússia pode continuar a chacinar, a destruir, a rir , a ordenar o mais infernal arsenal bélico  sobre aquele país porque o mundo e,  nomeadamente,  a Europa permite e permitirá  que assim seja. A guerra, o alvo e o palco é a Ucrânia. A Europa, a NATO, o mundo não responderão. A ONU está em balanço ecológico e a guerra é tóxica.  Os tão europeus ucranianos que morram, permitem todos eles,  num cinismo quase velado. Que fiquem sem chão. Que fujam. Que abandonem o seu país. Que as suas casas ardam. Que os seus filhos fiquem órfãos. Que as cinzas os cubram. Que se abatam os seus hospitais, escolas, universidades. Que desapareçam do mapa vilarejos, cidades, portos e se extinga, à face da terra, qualquer parte desse secular território que ninguém, a não ser os ucranianos, responderá. País abandonado aos facínoras e pelo cândido mundo dos outros : Europa ,  ONU, NATO, G7, G20  e  quejandos. E continuam os massacres diários nos écrans televisivos, com reportagens nas frentes  de combate. De tão exaustivo  relato, de tão perigosa a exposição, deu tempo aos canais de  rodarem os seus jornalistas. Sucedem-se novos rostos que relatam a guerra dos outros: a Ucrânia às mandíbulas do opressor/invasor russo. E Putin, lá do alto do seu palácio, dispara o que lhe apetece, em cada dia do seu delírio imperial. Está sozinho. O mundo dá-lhe essa oportunidade por ele tão arquitectada. Não há obstáculos. A Ucrânia é dele e para ele. Ninguém , a não ser esse povo que sempre será russófilo  e não ucraniano, lhe fará frente. A luta é quase bíblica: David e Golias. Até o Patriarca da Santa Igreja Russa o abençoa. É um destino  mítico e místico que lhe foi vaticinado desde que a gloriosa URSS se desfez às mãos de alguns traidores. 
E quando algumas vozes, contagiadas pelos desertores do raciocínio e de cegueira egoísta, se dizem cansadas da guerra e condenam a Ucrânia por pedir ajuda, Putin solta aquele riso hediondo de um inarrável contentamento. A contaminação do mal propaga-se . A ajuda destes é preciosa. Pedir armamento é próprio de uma mentalidade belicosa. Ora , a Rússia está  a prestar  um serviço humanitário: a defesa dos ucranianos dos próprios ucranianos. Haverá altruísmo maior?! Para que querem os Ucranianos material bélico? A história vira-se do avesso. 
A demagogia entrou pela porta principal. Há um falso alastramento da guerra à Europa: o  custo de vida aumentou. Quem culpar? A Rússia ou a Ucrânia? As notícias, os balanços, as leituras pelos doutos comentadores são diversas. Os governantes calam-se num silêncio hipócrita, muito oportuno. Há quanto tempo, muito anterior à guerra, a inflação deflagrava ? Há quanto tempo, os sinais de um retrocesso se desenhavam? Há quanto tempo, os titubeantes ministros das Finanças se escondiam nos números? Há quanto tempo , se tapava  uma crescente pobreza e se iludia o eleitor com um falso crescimento dourado? Há quanto tempo? Há demasiado! No excesso da ambição de um sucesso que não aconteceu.
Que o cansaço da guerra aconteça na Ucrânia é entendível. Que seja no resto do mundo é incompreensível, face à sua própria inacção continuada e arrastada ad aeternum.
Que todos os dias nos arrasem os olhos com tanta crueldade não faz o cansaço. Arrasa, sim,  os olhos e fere o coração. Mas o cansaço não está aí. Isso é querer fechar os olhos a uma dura realidade , qual Pilatos a lavar as mãos.
Como não defender a nossa casa de um ladrão destruidor? É a pergunta que todos poderemos fazer. Será, por isso, que se colocam alarmes, objectos dissuasores ou  recebemo-lo, de mãos abertas,  prontos para a  destruição e roubo dos nossos pertences, para uma agressão intempestiva da nossa pessoa e da nossa casa? Poderá ser, para alguns,  um cansaço assistir a um acto destes, mas vivê-lo é uma experiência terrível que, além de nos deixar sem abrigo e marcas profundas  , nunca esqueceremos.
Que dizer, então,  da Ucrânia e dos ucranianos? Sim, que dizer perante a aniquilação da expectativa de vida e da real vivência numa terra que lhes pertence? Que dizer?!  Apenas que  continuam a resistir com denodo e heroísmo  e vencerão, em nome da Liberdade e da Justiça. Que seja  por  eles e por todos nós .
E , de novo, me aproprio das palavras do grande bardo português: Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. 
Que Deus não salve Putin. Viva a Ucrânia.
Maria José Vieira de SousaPraia da Rocha, 30.06.2022

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