sábado, 18 de junho de 2022

Um inimigo da Pátria


Manoel de Andrade

     Neste mundo tão turbulento e imprevisível, as perseguições e restrições à liberdade regressaram , embora nunca se tenham extinguido em todos os cantos do planeta. As guerras, as prisões, as deportações, os exílios forçados são um verdadeiro flagelo à mão de implacáveis ditadores.
Assiste-se a um dos mais negros momentos da história da Europa: a invasão da Ucrânia , ditada por um megalómano desprovido de compaixão e discernimento. As ameaças sucedem-se e o mundo entrou em desequilíbrio . Na América do Sul, multidões percorrem estradas em busca de um sol que se vai eclipsando. Por todo o lado, recrudescem sinais de alerta que já foram realidade num passado não muito longínquo.
É desse passado que Manoel de Andrade, poeta brasileiro, nos fala . Viveu o sortilégio da Ditadura no Brasil. Foi obrigado ao exílio. Percorreu a América Latina, quase toda em convulsão. Desse tempo, elaborou um magnifico documento : as suas memórias. 
     "Nos rastros da Utopia", as Memórias,  de que temos muito prazer em voltar a reproduzir algumas páginas.

Curitiba, Paraná, Brasil

9. Um inimigo da pátria
por Manoel de Andrade
 
      “ Voltei a Curitiba, no dia 12 de março pela manhã e à noite reencontrei, no Bar “Velha Adega”, alguns amigos, entre eles o escritor e publicitário Jamil Snege e a estudante de sociologia Elci Susko, com quem partilhava amiúde minhas ideias políticas.  Elci me relatou, angustiada, que, por duas vezes, fora abordada na Faculdade, levada por agentes de segurança até ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), e interrogada pelo Coronel Waldemar Bianco sobre o meu paradeiro. Informou-lhe de que o que sabia de mim é que eu havia tirado férias no trabalho e fora para o Rio de Janeiro. Ele tinha em seu poder um exemplar do panfleto “Saudação a Che Guevara” onde constava a autoria do poema e me acusava de “comunista”, de “pregar a luta armada” e ser “um inimigo da pátria”.
         A publicação do AI-5 completava três mese e já havia começado a “caça as bruxas”, no Brasil inteiro. Os suspeitos de subversão eram presos, mantidos incomunicáveis e muitos começaram a sumir. Embora na ribalta do drama político os refletores mostrassem, aos que deram seu “ouro para o bem do Brasil”, apenas um “céu de brigadeiro”, muitos de nós, os espectadores mais atentos das primeiras filas daquele teatro de horror, sabíamos que, depois do “5º ato”, as cenas mais trágicas se passavam nos “bastidores”, e que, por isso mesmo, não poderíamos assistir aos “melhores” momentos de uma tragédia chamada “O quartelaço”.  Teríamos que, feliz e infelizmente, sair no meio do espetáculo. Alguns livros como “Tortura e Torturados” de Márcio Moreira Alves, lançado e apreendido em 1967 e que li posteriormente no exterior, relatava como foram representados os primeiros atos dessa tragédia depois do golpe militar de 1964. Agora, porém, a repressão fora agudizada. Pairava sobre nós, invisível, iminente e ameaçador, um poder inquestionável, legalizado, atual e atuante, diante do qual apenas uma palavra sintetizava nosso pânico: impotência. A angustiante impotência de nada poder fazer diante de uma lógica inquisitorial que ameaçava também os nossos seres mais queridos.
       Naquela mesma noite, já em pânico com o relato da Elci e preocupado com minha esposa e minha filha, fui aconselhado pelo Jamil a sair da cidade. No dia seguinte, pela manhã, fui à casa do Roberto Requião, amigo com quem partilhara os bancos da Faculdade de Direito na Universidade Federal do Paraná e, depois do golpe de 1964, dos tantos protestos estudantis em que ele, com sua afiada oratória, e eu, com meus poemas políticos, empunhamos, com outros tantos, a mesma bandeira contra a Ditadura. Conversávamos longamente no seu quarto, quando lá pelas tantas, toca o telefone. Eram agentes do DOPS procurando amedrontá-lo com advertências. Roberto, sem se intimidar respondeu irreverente e desligou o aparelho.
             - Esta é a terceira vez que estes canalhas me ligam -- disse-me e depois,  encarando-me, acrescentou:
              - Maneco, você tem que sair do país antes que te achem!
Ele tinha vários amigos de esquerda em Assunção e propôs que eu saisse pelo Paraguai. Falou-me deles com confiança e passou-me os endereços. Trocámos nossas inquietudes sobre a emergência com que a Ditadura ia fechando todas as portas da liberdade. Ao nos despedirmos abriu a gaveta do seu criado mudo e retirou uma Beretta 6.35,  municiada, e disse-me:
             - Boa sorte, Maneco, e leva isso..., você poderá precisar!
 
          Naquela tarde fui à Rua Riachuelo e comprei uma mochila. Não era meu estilo, mas como naquele tempo estava em moda viajar de mochila pelo mundo inteiro, pensei ser a melhor maneira de atravessar a fronteira, com a imagem inconsequente de um andarilho, para não despertar suspeita. Dali fui a rodoviária e comprei minha passagem para Foz do Iguaçu. O ônibus partiria às seis da manhã. Receoso que os agentes do DOPS já soubessem do meu retorno do Rio e estivessem vigiando os arredores do edifício onde eu morava, não voltei pra casa. Como eu tinha um Wolks, rodei discretamente pela cidade, reencontrei, à noite, o Jamil, a Elci e outros amigos e depois da meia-noite rondei as imediações do Edifício onde morava na Rua Comendador Macedo nº 260, para só então entrar em casa. Minha esposa Marilena me esperava e minha filha Daniela dormia. Aquela foi uma noite tensa, longa e insuportável. A iminência de ser preso..., minha inesperada saída do país..., tudo assim tão de repente.
Minha família, em Santa Catarina, sem saber que estava partindo sem destino. Deixava meu bom emprego, interrompia meu segundo ano de História na U.F.PR, e meu sonho de ser professor de filosofia da história. Abandonava meus planos literários e as esperanças da publicação do meu primeiro livro de poesia pela grande Editora Civilização Brasileira, conforme me acenaram, alguns dias atrás, o poeta Moacyr Felix e o editor Enio Silveira. Tudo isso fervilhava em minha mente num torvelinho incessante, temperado pelo medo e os pressentimentos. Tomei uma folha de papel e sob o título de “Véspera” escrevi em versos toda a minha angústia:
 
Quatorze de março
mil novecentos e sessenta e nove.
É preciso...
é imprescindível denunciar o compasso ameaçador destas horas,
descrever esta porta estreita que atravesso,
esta noite que me escorre numa ampulheta de pressentimentos.
 
Um desespero impessoal e sinistro paira sobre as horas...
O ano se curva sob um tempo que me esmaga
porque esmaga a pátria inteira...
Nossas canções silenciadas
nossos sonhos escondidos
nossas vidas patrulhadas
nossos punhos algemados
nossas almas devassadas.
 
Pelos ecos rastreados dos meus versos
chegam os  pretorianos  do regime.
                    Alguém já foi detido, interrogado,  ameaçado
e por isso é necessário antecipar a madrugada.
 
E eis porque esse canto  já nasce amordaçado
porque surge no limiar do pânico.
Meu testemunho é hoje  um grito clandestino
meus versos não conhecem a luz da liberdade
nascem  iluminados pelo archote da esperança
para se esconderem na silenciosa penumbra das gavetas.
 
Escrevo numa página velada pelo tempo
e num distante amanhecer
é que o meu canto irá florescer.
                                                              
Escrevo num horizonte longínquo e libertário
e num tempo a ser anunciado pelo hino dos sobreviventes.
Escrevo para um dia em que os crimes destes anos puderem ser contados
para o dia em que o banco dos réus estiver ocupado pelos torturadores
 
Contudo, nesta hora, neste agora
o tempo se reparte pra quem parte
e um coração se parte nos corações que ficam...
O amanhecer caminha para desterrar os nossos gestos 
para separar  nossas  mãos  e  nossos olhos
e nesta eternidade para pressentir o que me espera
já não há mais tempo para dizer quanto quisera.
 
Tudo é uma amarga despedida nesta longa madrugada
e neste descompassado palpitar,
contemplo meus livros perfilados de tristeza
retratos silenciosos de tantas utopias,
bússolas, faróis, retalhos da beleza.
Aceno a Cervantes, a Lorca, a Maiakovski
mas só Whitman seguirá comigo
nas suas páginas de relva
e no seu canto democrático.
Contemplo  ainda os pedaços do meu mundo
nos amigos do penúltimo momento
nas lágrimas de um bem querer
na infância de minha filha
e nesse beijo de adeus em sua inocência adormecida.
 
Nesta agonia...
neste abismo de incertezas...
abre-se o itinerário clandestino dos meus passos.
De todos os caminhos
resta-me uma rota de fuga, outras fronteiras e um destino.
Das trincheiras escavadas e dos meus sonhos,
restou uma bandeira escondida no sacrário da alma
e no coração...
um passaporte  chamado...  liberdade.1
 
          Às cinco e meia da manhã beijei minha filha adormecida, abracei Marilena e saí pela porta do destino. Apreensivo, desci pelo elevador. Na portaria o guardião cochilava. Olhei através da porta de vidro, não vi ninguém lá fora. Saí..., a rua estava deserta.
          Cheguei à Foz no fim da tarde. Dormi numa pensão qualquer e na manhã seguinte, com meu passaporte carimbado, cruzei a fronteira sem problemas.  Ao lado esquerdo da imensa ponte, uma velha barcaça avançava penosamente contra a correnteza do Rio Paraná. Lá de cima, parei para observar a paisagem da fronteira. Na margem paraguaia havia muitas casas e movimento de gente e canoas. O rio, com vigorosa calma, transportava seu caudal de águas barrentas. Atrás ficava a pátria, e, na memória dos meus 28 anos, a minha infância junto ao mar lá em Piçarras, minha adolescência entre barcos e navios em Itajaí e um sonho, ainda palpitante, de marinheiro um dia. Ficou a memória dos meus dezassete anos chegando a Curitiba, sem um conhecido e sem uma referência sequer. A pensão barata, o fim do dinheiro, três dias sem comer e o encontro providencial com um amigo conterrâneo que matou minha fome partilhando a sua bandeja na Casa do Estudante Universitário. O primeiro emprego de contínuo no Teatro Guaira, o curso Clássico no Colégio Estadual do Paraná, o bacharelado em Direito, na Universidade Federal, meu trabalho de assessor de imprensa na Secretaria da Fazenda. Minha alma de poeta recordava do primeiro prêmio literário em 1965, o recente sucesso literário e a promessa do meu primeiro livro pela melhor editora do país. Ficaram tantos amores: meu pai, minhas irmãs, um bem querer e os quatro anos de minha filha. Ficaram meus amigos, minha biblioteca e muitos companheiros de luta. Eu fora obrigado a deixar tudo o que mais amava. Levava duas calças, três camisas com grandes bolsos, um reforçado par de sapatos com solado de pneu, um pequeno cobertor, meus poemas políticos dobrados entre as páginas de um livro de Walt Whitman, uma beretta, uma toalha de banho, objetos de higiene e uma pequena “fortuna”: 70 cruzeiros novos. Levava também na alma uma grande angústia: o destino de alguns amigos e conhecidos, recentemente presos ou desaparecidos misteriosamente.”
Manoel de Andrade , in Nos rastros da Utopia, uma memória crítica da América Latina nos anos 70, Editora Escrituras, São Paulo, 2014, pp.65-70
 
1-       ANDRADE, Manoel de. Poemas para a liberdade. São Paulo: Escrituras, 2009, pp. 65-70

2 comentários:

  1. Às vezes penso que devo reler meu próprio livro. Os anos passam e essas tão caras memórias de lutas e ideais se acomodam no baú do passado ameaçadas pelo esquecimento. Que curiosa e deslumbrante é a existência ante o misterioso balanço do tempo. Hoje, aos 81 anos, me comove imaginar meus 30 anos caminhando no fio da navalha de um continente tão fascinante e tão ameaçador. Meu encontro com a história viva de uma saga libertária que contagiou toda a América. O tesouro de tantas amizades, a voz dos meus versos ecoando no coração da juventude, as trincheiras abertas em tantas fronteiras, os momentos de incerteza, a gloriosa memória dos vencidos e o sonho da Terra Prometida partilhado na ditosa agenda da esperança.
    Obrigado, à editoria de Livres Pensantes, por relembrar as primeiras páginas dessa legenda tão vivaz e tão saudosa que sublinha meus passos na luminosa estrada da juventude.

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  2. O agradecimento enorme e sentido é nosso. Que privilégio poder acompanhá-lo nesse tempo de tanta utopia e conhecer a luta de todos aqueles que pretendiam deixar-nos um futuro mais justo e luminoso.
    Bem-haja por esse legado.

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