quarta-feira, 23 de março de 2022

Não há guerras boas

NÃO HÁ GUERRAS BOAS
por Eugénio Lisboa

Os poetas odeiam o ódio
e fazem guerra à guerra.
           Pablo Neruda


Nunca houve uma guerra
boa nem uma paz ruim.
           Benjamin Franklin

“Eis um problema que tem angustiado os homens, de não há muito tempo a esta parte. As mulheres, que, durante muitos séculos, não tiveram de participar activamente na carnificina, mas tiveram de a sofrer, na sombra, sem poder intervir, mas arcando, depois, com as consequências da destruição, dos ferimentos e da morte dos seus, reagiram, desde muito cedo, à folia bélica com que os homens se entretinham a resolver problemas, muitas vezes de lana caprina. Mais ligadas à terra e à vida (são elas que geram vida), mais sensatas, menos dadas a fantasias com pés de barro, as mulheres opuseram-se, desde cedo, à folia mortífera da guerra. Já no ano de 411 A. C. o famoso comediógrafo grego Aristófanes pôs em cena uma hoje famosa comédia, intitulada LISISTRATA, criticando a guerra de uma maneira muito imaginativa e provavelmente eficaz. Nessa peça, as mulheres gregas, lideradas pela dinâmica Lisistrata, fartas das guerras entre Atenas e Esparta, resolvem trancar-se num templo e fazer greve sexual, enquanto se não pusesse termo à guerra. Aristófanes dava certamente voz, na sua comédia, ao sentimento que as suas conterrâneas gregas deviam andar a tornar bem visível e audível. Contudo, até tempos relativamente recentes (vésperas da primeira guerra mundial), aceitava-se, sem grandes estados de alma, o conceito de Clausewitz: “A guerra é a continuação da política por outros meios”. A guerra era o último recurso, quando a diplomacia esgotava os seus. Não havia, por assim dizer, um problema ético. Grandes fazedores de guerras, como Napoleão, eram admirados por gigantes como Goethe, Stendhal e Beethoven, não necessariamente, por causa da guerra, mas, pelo menos, apesar dela.
Quando se tornou claro, nos primeiros anos do século XX, que se estava à porta de um novo grande conflito europeu – que viria de facto a começar em Agosto de 1914 – vozes corajosas de alguns grandes escritores começaram a erguer-se, com grande coragem e eloquência, contra a insensatez e a imoralidade da guerra, como modo de resolver conflitos de interesses. De entre os intelectuais europeus, que se destacaram nesse destemido e arriscado combate, citarei três: Romain Rolland, Bertrand Russell e Stefan Zweig. Romain Rolland provocou, com os textos pacifistas depois recolhidos no seu famoso e vituperado livro AU DESSUS DE LA MÉLÉE, uma reacção violenta, da parte dos belicistas, que o levou a emigrar para a Suíça, de onde continuou a lutar pela paz. Bertrand Russell pagaria com a prisão o seu credo pacifista.
Curiosamente, dois dos maiores escritores do século XX, Anatole France e Thomas Mann alinharam, por esta altura, com os arautos da guerra, mas não demorariam a mudar de opinião, tendo-se o escritor alemão voltado contra a emergente peste nazi, que lhe valeu o exílio e a perda do título académico que lhe fora dado por uma universidade alemã, para não falar na queima dos seus livros, na praça pública.
A carnificina nas trincheiras da Europa foi de tal natureza e dimensão, que originou em vários escritores europeus, que tinham vivido o horror da guerra, de um lado e do outro do conflito, o desejo de produzirem obras de ficção, centradas naquele morticínio, com o objectivo de fazer com que ele se não voltasse a repetir: por reacção dos leitores à dramatização daquela monstruosidade. Henri Barbusse, Roger Vercel, Roland Dorgelès, Erich Maria Remarque, Georges Duhamel, Roger Martin du Gard, Ernest Hemingway, na ficção, ou Rupert Brooke e Siegfried Sassoon, na poesia, foram impressionantes testemunhos. Nalguns, como Roger Martin du Gard, a impressão causada por aquele inferno de mortos e mutilados – ele trabalhou no serviço de ambulâncias – foi tal, que ficou irredutivelmente contra a guerra, fosse ela qual fosse. De tal maneira que, sendo um homem de esquerda, quando Hitler começou a devorar a Europa, Martin du Gard disse aos amigos, que tudo era melhor do que resistir ao ditador alemão, originando uma reedição da carnificina de 1914 – 1918. Nada era, para ele, tão mau como uma nova guerra. Mais adiante, mudaria de opinião, quando se apercebeu do que Hitler representava e de que se tornava tragicamente necessário resistir-lhe. O mesmo se passou com Bertrand Russell, que pôs entre parêntesis o seu pacifismo, reconhecendo que esta guerra era inevitável. Todavia, outro enorme escritor francês, Jean Giono, que percorrera os anos da primeira guerra mundial a carregar uma espingarda que nunca disparou, mas a ver o lado mais monstruoso da condição humana, jurou e cumpriu, que nunca mais voltaria a participar numa nova guerra. Pacifista radical, recusou-se a combater os exércitos nazis e escreveu porquê. Para Russell e Martin du Gard, não havia guerras boas, mas havia guerras inevitáveis. Para Giono, havia só guerras más, ponto final. Pertencendo ao Mouvement du Contadour, que se opunha a qualquer conflito armado, pagou-o com a prisão. Pode-se não concordar com a decisão dele, mas não se pode deixar de respeitar a coerência do seu radicalismo. Não há, de facto, guerras boas: são todas más, embora algumas sejam inevitáveis. A corajosa resistência da Ucrânia ao monstruoso poder militar de Putine originou uma guerra má, mas inevitável, ainda que desnecessária. São pessoas como Hitler e Putine que cometem o pecado supremo de originarem guerras inevitáveis. E más como a peste.”
Eugénio Lisboa, 23.03.2022

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