sábado, 19 de março de 2022

Crónicas da Infâmia


Crónicas da Infâmia
9 - Das Palavras  e da  Guerra


Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos.(…) São a vida e quase toda a vida – a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. (…) Mas agora  que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.
                                                                    Raul Brandão

Não sei que palavras utilizar , quando os dias que correm são dias de vergonha . Queria registar toda a perplexidade dorida que cresce ,  sempre que eclodem as notícias diárias.  Mas « os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo» escreveu Wittgenstein, no século XX. Perante a barbárie,  esgotam-se os caminhos da linguagem. Perante a crueza das realidades emergentes do mundo actual, é impossível ser claro , sem que a emoção nos embargue e o horror nos tome.
 A verbalização é uma capacidade inerente à pessoa humana, à sua relação com o mundo e respectiva materialização. Eis porque se  quedam  as palavras numa agónica aporia, num silêncio   de espanto perante o terror que milhares e milhares de seres humanos vivem, numa parte deste nosso mundo. E, quando esse terror  é propagado pela tirana ambição de um só homem, de que nos servem as palavras que conhecemos? Recusam-se a traduzir a ferocidade do homem capaz de negar o outro homem. Teriam de ser medonhas , numa obscuridade indefinível , que logo ficariam opacas pela sua enormidade. Como criá-las ? E inventá-las  para quê , quando são  glosadas infamemente pela boca do carrasco.  A inversão de posições,  o plano da realidade é empurrado para a vítima invadida,   quando o agressor  se diz ser ele próprio a vítima. O Ocidente está a sofrer o resultado da sua ambição, grita o louco facínora, enquanto lança bombas sobre crianças e gente desprotegida. Não lhe basta dizimar um país, mas quer estender a ameaça ao mundo ocidental. Que tipo de homem tem tamanha ambição?
E lembro-me de repente dum filme muito antigo
Em que o criminoso perguntava:
“De quoi est fait un homme, monsieur le comissaire?”
e nos seus olhos lia-se o pavor
de quem viu um abismo e não lhe sabe o fundo...
De quoi est fait un homme? De que são feitos os homens
que queimaram vivos outros homens? Que tinham centos de crianças
a morrer de fome e pavor, escravos como os pais?
que matavam ou deixavam morrer homens aos milhões,
que os faziam descer ao mais fundo da degradação,
torturados, esfomeados, feitos chaga e esqueleto?
Eram esses mesmos homens
que faziam pouco da liberdade,
que vinham salvar o mundo da desordem,
que vinham ensinar a ORDEM ao planeta!
Sim, que traziam a paz com as grades das prisões,
a ordem com as câmaras de tortura...
Assim  disse Adolfo Casais Monteiro, no magnífico  poema Europa. 
Sei que não sei dizer as palavras nem exactas  nem reais  .Tento reconhecê-las  em quem as soube produzir. Mas sei, isso sim, que há dor a mais nos rostos de quem sobrevive à  morte encomendada por um só homem. Homem que traz  as grades da tortura para impor a Ordem do seu amordaçado mundo.  As palavras emudecem. E, se algumas sobreviverem,  talvez  repitam como  Sartre: «Ces mots durs et noirs,  je n’ en ai connu le sens que dix ou quinze ans plus tard et, même aujourd’hui, ils gardent leur opacité : c’est l’humus de ma mémoire. »
Que Deus não salve Putin. Viva a Ucrânia. 
Praia da Rocha, 19 de Março de 2022
Maria José Vieira de Sousa

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