segunda-feira, 21 de março de 2022

Celebrar a Poesia


A poesia, eu te digo,
é o gesto dilatado
de toda mão estendida
é o doce sabor dos frutos
a face amarga do mundo
a eterna canção da vida.
Manoel de Andrade, Poemas da Liberdade

21 de Março  foi a data escolhida pela XXX Conferência Geral da Unesco, em 1999, como o  Dia Mundial da Poesia . Com essa resolução, a Organização das Nações Unidas para a Educação,  Ciência e Cultura  esperava ter incentivado a criação poética   em todo o mundo.
Celebrar a poesia é dar voz e espaço aos poetas. Para quem gosta de poesia é sempre difícil estabelecer qualquer critério selectivo.  O mundo está repleto de poetas talentosos, ao longo da sua história. Aliás foram os poetas que deram voz ao mundo. São eles que cantam a eterna canção da vida.  
Neste ano de 2022, optamos por trazer  poetas que escreveram em Língua Portuguesa. Ficaram muitos por citar, mas como amantes que somos de poesia, regozijamo-nos por a publicarmos com devotada assiduidade.
Aos poetas fica  a nossa fervorosa gratidão. 

Pacto

Do pacto que o Verbo celebrou comigo
há sempre um artigo que sempre subsiste
 
Deixar que as palavras apenas exprimam
o que sem palavras tentava exprimir-se
 
Deixá-las que rompam da noite da vida
para que suspendam a morte do dia
David Mourão-Ferreira, Os remos,  in Obra Poética (19448-1995), Assírio & Alvim, 2019, 
p 624

BICICLETA

Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.

O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.

De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.

Herberto Helder, Cinco Canções Lunares, in  Poesia Toda II, Plátano Editora ,Setembro 1973


O Poeta  é um fingidor
 
Exprimo o que já não sinto.
Escrevo o que já pensei.
Em arte , se sofro, minto:
registo o que já não sei.
 
Fazer é ter já sofrido
o que hoje não é sofrer.
já não faz nenhum sentido,
a dor dita no escrever.
                                            
Eu finjo que já sofri,
com arte que sou capaz,
aquilo que eu vivi,
no tempo de ser rapaz.
 
Viver é um luxo passado,
perdido, já sem sentido,
que eu terei recuperado
no texto agora mentido.
 
O poeta é um fingidor:
finge tão completamente,
que finge de fingidor,
no momento em que mente.
                      Londres, 15.05.82
Eugénio Lisboa, in a matéria intensa, Editora Peregrinação, Suíça, p 52


O desterro dos poetas
 
Nada vos quisera dizer que sonegasse o encanto
mas transito por um mundo sombrio
e por caminhos degradados.
Já não vejo flores nas campinas
nem lírios à beira das estradas,
já não ouço o cantar dos pássaros
nem o murmúrio das fontes.
Restou-nos a paisagem decepada e nua,
de quando em quando, pequenos bosques solitários
e o sibilar melancólico do vento.
 
Viandantes milenares da estesia e do mistério,
hoje somos seres desgarrados e silentes.
Nossas imagens foram abatidas,
nossos símbolos calcinados,
globalizaram as metáforas,
plastificaram as rosas,
poluíram as estrelas.
 
Restaram-nos o espanto e os pressentimentos,
e, nessa patética realidade,
entre rimas e a paixão pelo lirismo,
a poesia mendiga descalça pelo mundo,
trajando seu rosário de versos encolhidos.
Nossas páginas já não são abertas,
já não publicam nossos livros,
declamamos num palco de figurantes
não há público nem aplausos…
Versejar é uma vocação solitária,
uma chama delirante que se apaga no coração dos homens.
 
Apesar de tanto desencanto,
nada vos direi que sonegue a esperança,
mas digo que os poetas jamais silenciarão seu canto,
porque ninguém poderá desterrar o sonho e a beleza
e porque sempre haverá um poema de amor a ser escrito.
Os poetas cantam desde a aurora dos tempos,
pela glória de Aquiles e pela paixão por Beatriz.
Cantam para gestar uma “Ode Triunfal”,
para compor “Uma Canção Desesperada”,
ou para erguer uma bandeira libertária.
 
Cantam para denunciar os calvários de chumbo que
                                             [sangraram tantas pátrias 
e para que o esquecimento não sepulte a história dos
                                                                       [vencidos.
Cantam para acusar os tiranos e consagrar os mártires,
e para reunir na memória os punhos da bravura.
Os poetas sempre haverão de cantar,
enquanto a luz parir a vida, eles cantarão…
cantarão para abrir as janelas do infinito
e para semear novos sonhos nos herdeiros do amanhã.
 
Machucado por tanto desamor,
por esses acordes tolos e nocivos a malhar meus tímpanos,
e perante essa estética do absurdo,
a essa irreverência que empesta os ares
e proscrito por um tempo que confunde os nossos passos,
saio em busca do Eldorado.
Quero um cântaro de luz para beber a vida,
um sol de abril para iluminar meu rumo.
Quero meu veleiro, meu farol, meu porto, minha aldeia,
e “onde estiver meu coração, sei que lá estará o meu tesouro”.
 
“Vou-me embora pra Pasárgada”
levando minhas ternuras e uma fé inabalável.
Minhas velas vão rasgando o desencanto,
navegando nas lágrimas do mundo
e nesses mares de naufrágios.
Sei que quando o impasse se acabar,
as flores repovoarão os campos
uma rosa purpurina se abrirá no teu canteiro
e a estrela da manhã surgirá num novo céu.
E eis que uma aurora de luz há de beijar a Terra,
o amor abraçará os filhos da esperança,
e só então a paz será um eterno banquete festejando a vida.
Vos digo que num só “idioma” se entenderão os povos,
que a música renascerá na melodia,
que uma nova literatura deslumbrará a alma
e que o nosso canto, sedutor e palpitante, reviverá no coração
                                                                           [dos homens.
                                           Curitiba, 20 de Agosto de 2014
Manoel de Andrade, in As Palavras no espelho, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2018, pp.251, 252, 253


A Hora da Partida

A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinase.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.
Sophia de Mello-Breyner Andresen, in Poesia, Editorial Caminho, p 55

Um verso ligasse

Um verso ligasse
os desertos que somos, querida;
um oásis, um verso,
e, fresco, o instinto,
como que de água,
sob milénios de areia,
o buscasse, ou à miragem.
Mas nem ao ar acostam
os dias que duramos,
em nossas medidas
emoções – de reserva,
com a seiva dos cactos.
Até que duas dunas assinalem
Uma mudança qualquer.
E é a eternidade.
Sebastião Alba, in O ritmo do presságio, Edições 70,1981, p 38

No fim do mundo de tudo
 
No fim do mundo de tudo
Há grandes montes que têm
Ainda além para além —
Um grande além mago e mudo.
 
São paisagens escondidas
Que são o que a alma quer.
Ali ser, ali viver
Vale por vidas e vidas.
 
Todos nós, que aqui cansamos
A alma com a negar,
Nesse momento de sonhar
Ali somos, ali estamos.
 
Mas, depois, volvidos onde
Há só a vida que há
Vemos que ante nós está
Só o que vela e que esconde.
 
Só dormindo os horizontes
Se alargam e há a visão
Dos montes que ao fundo estão
E o saber do além dos montes [...]
                                   19-5-1934
Fernando Pessoa , Mensagem - Poemas esotéricos,  (Edição Crítica de José Augusto Seabra.) Porto: Fund. Eng. A. Almeida, 1993. 


Epitáfio para um herói

Por se negar a dar  um viva ao comunismo,
Ou ao fascismo
(Pouco importa)
Mataram--no... , morreu.
Mas não morreu! Só o deixaram 
De olhos abertos, boca aberta, ventre aberto para o céu.
E a terra , em volta, é que parecia morta.
José Régio, in Colheita da Tarde, volume póstumo, Brasília Editora, 
Dezembro de 1971, p127

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