sábado, 5 de março de 2022

Crónicas da Infâmia

Crónicas da Infâmia

8 - Das crianças e a guerra
Estas imagens são tão chocantes  que não seriam necessárias mais palavras para as legendar. Uma criança com medo de uma guerra que descobriu da maneira mais violenta: os bombardeios aéreos. Não sei como se apazigua o coração de uma criança nesta  situação. Não sei como alguém pode provocar tal sofrimento. Não sei como existem ambições desmedidas  que levam à destruição indiscriminada do ser humano. Aquelas bombas trazem a mais horrenda mensagem de um vil e mais horrendo  ditador:   bombardear para ocupar. Matar para reinar. 
As crianças não a entendem.  Apenas descobrem o medo.  Um medo sufocante que não acaba. Um medo que nasce e vem de dentro . Um medo que nem  os gritos ou o choro  são  capazes de estancar. Dilacera e esmurra o coração.  
E a história repete-se . A sede de totalitarismo de que fala Arendt é inesgotável. Há sempre um déspota sequioso. 
Pude constatar esta verdade. O  sofrimento que estes actos abomináveis da guerra causam nas crianças . 
Na década de cinquenta, quando  os tanques  e a força aérea militar russa metralharam a Hungria , muitas crianças húngaras foram evacuadas  e acolhidas em alguns países . Famílias portuguesas também as receberam. Essas crianças traziam consigo a memória terrível da guerra. Guerra que se repete agora  e é, de novo,   o terror de outras crianças. Nas minhas memórias de infância  , tenho , nitidamente presente, uma criança húngara que conheci na praia , onde  a minha família , pais e cinco irmãos , passava as férias de Verão. 
Eis um excerto de um apontamento que fiz, há alguns anos, num irrelevante registo memorialístico. 

A parceira que mais nos impressionou foi uma refugiada húngara. Teria uns seis ou sete anos. Tinha sido acolhida por uma família amiga dos meus pais. Nos primeiros anos , falava mal o nosso idioma, passando com o decorrer do tempo   a dominá-lo  com brilhante segurança  e correcta articulação.
Não recordo, com total certeza ,  o seu nome, mas creio ser Judit. Pois a Judit tinha uma estatura muito mais volumosa que a nossa. Quase nos dominava em tamanho e peso. Era , porém, uma menina doce e afável que participava em todas as brincadeiras que eram muitas. (...)
A Judit entrava em tudo,   com elegância e gentileza.  O que mais me confundia nesta menina era o pavor que a acometia, quando, muito raramente, nos sobrevoava um avião e se ouvia o ruído do motor. Atirava-se para o chão , tapava os ouvidos, gemia e agitava-se  como estivesse a ser  vítima de  uma convulsão. Atentos, os familiares adoptivos vinham , de imediato, com uma manta em que a enrolavam e levavam-na para o interior da barraca. À medida que fui crescendo, fui entendendo que tinha havido uma nefasta guerra  que marcara profundamente aquela menina. Os aviões, que despejaram bombas sobre o seu país, vinham em som e ruído até ali, sempre que passava qualquer um.
Naquele tempo, não havia psicólogos e , por tal, não se atribuía apoio psicológico como hoje tão apraz fazer. As sequelas eram tratadas dentro de casa. Com carinho e muito afecto familiar. Creio que muitas delas ficaram para sempre e que a Judit, esteja onde estiver, ainda convive com elas.

Que Deus não salve Putin. Viva a Ucrânia.
Portimão, 5 de Março de 2022
Maria José Vieira de Sousa

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