segunda-feira, 14 de março de 2022

Da luta do homem contra o poder

                   
Primeira Parte
As Cartas Perdidas
por Milan Kundera
1
"Em Fevereiro de 1948, o dirigente comunista Klement Gottwald subiu à varanda  de um palácio barroco de Praga para falar às centenas de milhar de cidadãos aglomerados na praça da velha cidade. Foi uma grande viragem na história da Boémia. Um momento fatídico, como acontece uma ou duas vezes por milénio.
Gottwald  fazia-se acompanhar pelos camaradas , e ao lado, muito perto estava Clementis. Nevava, fazia muito frio, e Gottwald vinha de cabeça descoberta. Clementis, muito solícito, tirou o gorro de pele que trazia e colocou-o na cabeça de Gottwald. 
A secção de propaganda fez centenas  de milhar de exemplares da fotografia da varanda de onde Gottwald, de gorro em pele e rodeado pelos camardas , fala ao povo. Nesta varanda começou a história da Boémia comunista. Todas as crianças conheciam a fotografia, porque a tinham visto nos cartazes, nos manuais ou nos museus.
Quatro anos mais tarde, Clementis foi acusado de traição e enforcado. A secção de propaganda  fez com que ele desaparecesse imediatamente da História e, como é evidente, de todas as fotografias. A partir daí, Gottwwlad está sozinho na varanda. Onde ficava Clementis já só fica a parede vazia do palácio. De Clementis resta o gorro em pele na cabeça de Gottwald.
2
Estamos em 1971, e Mirek  diz: a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.
Quer justificar assim aquilo a que os seus amigos chamam imprudência: escreve cuidadosamente o diário, conserva a correspondência, redige minutas de todas as reuniões em que eles discutem  a situação e se perguntam como continuar. (...)
Decidiu, por isso, levar os escritos comprometedores  para lugar seguro.
(...)
O assassínio de Allende  bem depressa se sobrepôs à memória da invasão da Boémia pelos Russos, o massacre sangrento do Bangladesh fez esquecer Allende, a guerra no deserto do Sinai cobriu com o seu enorme barulho as queixas do Bangladesh, os massacres do Camboja fizeram esquecer o Sinai, e assim sucessivamente, e assim sucessivamente e assim sucessivamente, até que todos se esqueceram mesmo de tudo.
Numa época em que a História andava ainda lentamente , os acontecimentos , pouco numerosos, com facilidade se inscreviam na memória e teciam um cenário que todos conheciam , pano de fundo sobre o qual a vida privada desenvolvia o cativante espectáculo das suas aventuras. Hoje, o tempo avança a passos largos. O acontecimento histórico, que se esquece numa noite, cintila na manhã seguinte com o orvalho da novidade e por isso já não é um cenário na história do narrador, é uma surpreendente aventura que se representa em segundo plano da muito familiar banalidade da vida privada.
Não há um único acontecimento histórico que se possa supor conhecido por todos, e é preciso que eu fale de acontecimentos que se passaram há alguns anos como se já tivesse decorrido mil: em 1939, o Exército alemão  entrou na Boémia, e o Estado dos Checos  deixou de existir. Em 1945, o Exército russo entrou na Boémia e o país voltou a chamar-se  República Independente. As pessoas estavam entusiasmadas  com a Rússia, que expulsara os Alemães, e como viam no Partido Comunista Checo um braço fiel, para ele transferiram as suas simpatias. O que fez com que os comunistas tomassem o poder em Fevereiro de 1948 sem sangue nem violência, e saudados pelo alegre clamor de quase metade da nação. E agora, reparem: essa metade , que lançava gritos de alegria , era mais dinâmica, mais inteligente, melhor.
Sim pode dizer-se  o que se quiser , os comunistas eram mais inteligentes . Tinham um programa grandioso. O plano de um mundo completamente novo em que todos encontrariam um lugar. Os que eram contra eles não tinham  grande ideal, só alguns princípios usados e fastidiosos, que pretendiam utilizar  para remendar os calções rotos da ordem  estabelecida. Não é , portanto, surpreendente  que esses entusiastas , esses corajosos, tenham triunfado facilmente sobre os timoratos e prudentes, e que bem depressa tenham começado a realizar o sonho , esse idílio de justiça para todos.
Sublinho novamente : o idílio e para todos, porque todos os seres humanos aspiram desde sempre ao idílio (...)
Algumas pessoas perceberam imediatamente que não tinham um temperamento adequado ao idílio, e tentaram partir para o estrangeiro. Mas como idílio é por essência um mundo para todos,  os que queriam partir  revelavam-se como a negação do idílio, e em vez de irem para o estrangeiro iam para a cadeia. Outros depressa seguiram o mesmo caminho; entre eles , diversos comunistas como o ministro dos Negócios Estrangeiros , Clementis, que tinha emprestado o gorro em pele a Gottwald. Nos ecrãs dos cinemas , apaixonados tímidos davam as mãos, o adultério era severamente reprimido pelos tribunais de honra formados por simples cidadãos , os rouxinóis cantavam  e o corpo de Clementis balouçava como um sino a tocar a nova manhã da humanidade. 
(...) 
10
A maior parte do tempo, os acontecimentos históricos imitam-se uns aos outros sem talento, mas parece-me que na Boémia a História encenou uma situação nunca experimentada. Ali,  segundo as antigas récitas, não foi um grupo de homens ( uma classe, um povo)  que se ergueu contra outro, mas homens ( uma geração de homens e mulheres) que se sublevaram contra a sua própria juventude.
Esforçavam-se por compensar e dominar a sua própria acção e por pouco conseguiam. Nos anos 60, conseguiam cada vez mais influência, e no princípio de 1968 a sua influência era praticamente total.  É a este último período que se chama geralmente a "Primavera de Praga": os guardas do idílio viam-se obrigados a desmontar os microfones dos apartamentos privados, as fronteiras estavam abertas, e as notas escapavam da grande partitura de Bach para cada um cantar à sua maneira. Era uma alegria incrível, era o Carnaval!
A Rússia, que escreve a grande fuga para todo o gobo terrestre , não podia permitir que as notas se dispersassem. Em 21 de Agosto de 1968, enviou um exército de meio milhão de homens para a Boémia. Pouco depois, cerca de cento e vinte mil checos deixaram o país , e, entre os que ficaram, cerca de quinhentos mil foram obrigados  a abandonar os empregos por oficinas nos confins , por longínquas fábricas, por volantes de camiões , ou seja, por lugares onde ninguém lhes ouvirá a voz..
E para que a sombra da má recordação não distraia o país do seu idílio restaurado, é preciso que a Primavera de Praga e a chegada dos tanque russos, essa nódoa sobre uma bela História, sejam reduzidos a nada. É por isso que hoje na Boémia se passa em silêncio o aniversário do 21 de Agosto, e os nomes dos que  se ergueram contra a sua própria juventude  estão cuidadosamente riscados da memória do país, como um erro nos deveres de um aluno.
O nome de Mirek também o apagaram."
Milan Kundera, in O livro do Riso e do Esquecimento, Círculo de Leitores, 1988, pp.7, 8, 12, 13, 16 , 17

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