sábado, 22 de junho de 2019

Evocar a morte de um bravo

Inti Peredo: 40 anos da morte de um bravo
por Manoel de Andrade
"Após quatro meses no Chile, cheguei em La Paz em 2 de setembro de 1969. Trazia uma referência de Santiago para contato com um membro do Exército de Liberação Nacional da Bolívia (ELNB), onde pretendia ingressar. Ambientava-me ainda na cidade, quando ao fim daquela primeira semana o país foi sacudido por uma trágica notícia: o guerrilheiro Inti Peredo, comandante do ELNB fora morto por forças combinadas da Polícia e do Exército, num bairro central de La Paz. Lugar-tenente de Che Guevara na guerrilha boliviana, sobrevivente do trágico combate na Quebrada do Yuro em outubro de 1967, estrategista da audaciosa retirada pela fronteira com o Chile, onde o esperava o senador Salvador Allende e reorganizador da luta armada na Bolívia depois da morte do Che, o guerrilheiro Inti Peredo – cujo nome, Inti, na língua quéchua significa “sol” –, morreu assassinado aos 32 anos, no dia 9 de setembro de 1969. Nascido em 30 de abril de 1937, em Cochabamba, Alvaro Inti Peredo Leigue era filho do escritor boliviano Rômulo Peredo. Aos 13 anos já militava no Partido Comunista Boliviano, seguindo muito jovem para estudar na escola do Partido no Chile e dali para Moscou, em 1962 para um curso político. No ano seguinte, já de volta, desloca-se para o norte da Argentina, dando apoio ao Exército Guerrilheiro do Povo, dirigido pelo jornalista Jorge Ricardo Masetti, na região de Salta. Posteriormente, colabora com a guerrilha peruana e em 1966 faz treinamento militar em Cuba. Volta à Bolívia em 1967, rompe com Mario Monje, secretário geral do Partido Comunista Boliviano e adere à guerrilha comandada por Che Guevara. Sobrevivente de Ñacahuazu, escapa pela fronteira do Chile, volta a Cuba e em maio de 1969 retorna clandestinamente à Bolívia para reorganizar a guerrilha. Dois meses depois, lança sua mensagem “Voltaremos às montanhas”, que comoveu o opinião pública do país e deu início a sua brutal perseguição por parte do governo. Delatado seu esconderijo em La Paz, a casa foi cercada e sozinho resistiu por uma hora ao ataque de 150 policiais e militares, até que uma granada lançada por uma janela o feriu gravemente. Arrombada a porta, finalmente foi preso, sem jamais ter se rendido. Inti Peredo foi selvagemente torturado pelo seu heróico silêncio e barbaramente assassinado a cuteladas de fuzil pelo sanguinário coronel Roberto Toto Quintanilla, o mesmo que mandou cortar as mãos do cadáver do Che, em La Higuera. Diante de sua morte, meus planos foram totalmente  frustrados. Convidado, naqueles dias para participar do Segundo Congresso Nacional de Poetas, a realizar-se em Cochabamba, entre 22 e 27 de setembro, transformei minha frustração e minha revolta em versos escrevendo um poema em homenagem a Inti Peredo, para dizê-lo, correndo todos os riscos, em pleno Congresso. Foi meu primeiro poema escrito em espanhol e no dia 25, ao encerrar minha apresentação ante o grande auditório do Palácio da Cultura, declamei o poema: “El guerrilleiro”, explicitando meu tributo poético ao grande combatente  assassinado há duas semanas em La Paz. A Bolívia, naqueles dias, respirava uma pesada atmosfera de golpe e em 26 de setembro cai o presidente democrata Luis Adolfo Siles Salinas e toma o poder e general Alfredo Ovando Candia, responsável pelo grande massacre de mineiros, em junho de 1967, conhecido como La Noche de San Juan. No dia seguinte fui detido, interrogado e posteriormente liberado, por intervenção dos organizadores do Congresso, com a condição de deixar o país em 48 horas. Neste 9 de setembro de 2009, solidário com a memória das lutas da América Latina e comemorando o aniversário de morte de Inti Peredo, publico aqui o poema “O guerrilheiro”, traduzido para o português, escrito exatamente há quarenta anos, em Cochabamba, como meu lírico tributo a um dos maiores revolucionários do continente.

O guerrilheiro
              Em memória de Inti Peredo

O guerrilheiro, senhores
é um sonho armado que marcha
numa pátria injustiçada.
Sabe que quem tem a terra
não a reparte sem guerra...
e nesse áspero caminho
é um pássaro sem ninho
migrando para o amanhã.

O guerrilheiro, senhores,
é uma flor clandestina
que se abre na mata imensa
quando os ecos da montanha
rompem o silêncio do tempo
e revelam o punho escondido
nas mãos agrárias de um povo.

Seu corpo... a sua trincheira,
sua vida por uma bandeira...
pela honra e pela fé
no seu destino traçado.
Se cai...segue erguido na verdade
quando a voz da liberdade,
sorvendo a taça de fel,
é um grito assassinado.

Ai que dureza em teus punhos
filho querido do povo.
Com que ternura forjaste
teu coração de granada.
Eis que abateram esse homem
sangrando a sua esperança,
mas vivo está como um fogo
renascendo em cada criança.

Na memória de um povo inteiro
e no sangue continental
foi tua imagem de espanto
que esculpi com meu canto
com minha dor de estrangeiro.
Ai, irmão boliviano
Ai, um sol assassinado
em teu corpo de sendero.

Mas da noite rompe a aurora 
na pátria e nos corações
e vivo estás,companheiro
no rastro azul dos teus passos.
Oh que destino tão lindo
América como bandeira...
Senhores, não tenho pátria
sou latino e americano
e o mais bravo guerrilheiro
desconheceu as fronteiras.

Companheiros, camaradas
já é hora de partir...
Camilo Torres, Guevara
Inti Peredo e Sandino
nos ensinaram que o sonho
é a alavanca do destino.
Pois cantem sempre em meu canto
os mártires da liberdade
poucos podem pressentir
que por trás do véu do tempo
os coágulos do seu sangue
são o doce pão do porvir.

                             Cochabamba, setembro de 1969

Manoel de Andrade, in "As palavras no espelho"Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda, São Paulo, Brasil, pp. 163-167

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