terça-feira, 4 de junho de 2019

O Mar

" Sempre me lembro de ter ouvido o mar. De mistura com o vento nas folhas das palmeiras bravas, um vento que nunca deixa de soprar, mesmo  quando nos afastamos da costa e avançamos canaviais adentro: é o ruído  de fundo que acompanhou a minha infância . Ouço-o agora, no mais íntimo de mim, e levo-o comigo para onde quer que vá. O marulho  lento, incansável, das ondas  que se quebram ao longe na barra do coral e depois vêm morrer na areia do Rio Negro. Não se passa um dia sem que vá ao mar, nem uma noite sem acordar com as costas  alagadas em suor, soerguido na minha cama  de campanha , afastando o moquisteiro e procurando avaliar a altura da maré, inquieto , tomado de um desejo que não compreendo.
Na escuridão, penso no mar como se fosse uma pessoa humana, com todos os sentidos despertos  para melhor o ouvir chegar, para melhor o receber. As vagas gigantescas cavalgam os recifes , vêm desabar na laguna e o estouro faz vibrar  a terra e o ar como um caldeirão. Ouço-o , o mar mexe-se, respira.
Quando faz lua cheia , levanto-me da cama  em silêncio, evitando o estalejar  do soalho  carunchoso. Mas sei  que Laura  não dorme, sei que está de olhos abertos no escuro, a reter  a respiração.  Subo ao peitoril da janela e empurro as gelosias da janela : eis-me cá fora , na noite. A luz branca  da lua alumia o jardim, vejo brilhar as árvores  e ouço o crepitar das suas  copas ao vento, adivinho os maciços  sombrios dos rododenros, das alteias. De coração palpitante, percorro a alameda que vai dar às colinas, lá onde começam os baldios maninhos , os terrenos por esmoitar. Junto ao muro em ruínas, encontra-se  a grande árvore de almécega , aquela a que Laura  chama árvore do bem e do mal, e trepo aos ramos grandes  da sua copa , que cheiram como o breu, para ver o mar além das árvores e as vastidões dos campos de cana. A lua desliza por entre as nuvens , irradiando a sua luz intermitente. Então, talvez o aviste de repente por cima da folhagem , à esquerda da Torrinha do Tamarindo, vasta chapa escura onde rebrilha  a mancha cintilante. Será que o vejo de verdade , e que o escuto? O mar está dentro da minha cabeça, e é ao fechar os olhos que melhor o vejo e ouço, que consigo  distinguir cada ribombo das vagas separadas  pelos recifes  e logo de novo unidas para virem quebrar-se na costa. Fico muito tempo agarrado às ramadas da árvore , até sentir os braços dormentes. O vento do mar passa sobre o arvoredo e sobre os canaviais, faz brilhar as folhas ao luar. Por vezes, fico ali à escuta até ao romper da madrugada, a sonhar. Na outra extrema do jardim o casarão está às escuras, fechado , perdido como destroços de um naufrágio. O vento faz bater as fasquias  soltas do telhado,  ranger os vigamentos. Também isso é parte do som do mar, e os estalidos do tronco da árvore, os gemidos das folhas do palmeiral. Sozinho no cimo da árvore , tenho medo, mas não quero voltar ao quarto. 
Não se trata realmente de medo . É como estar  de pé diante do abismo, de uma funda ravina, e olhar intensamente , com o coração a bater com tanta força que faz doer o peito , mas algo nos intima a permanecer ali, a ficar se queremos finalmente  saber alguma coisa. Enquanto a maré estiver a subir, não posso voltar para o meu quarto, é impossível. Devo continuar empoleirado na árvore, e esperar, enquanto a lua se escapa para a outra ponta do céu. Volto para o quarto antes da madrugada começar a clarear, quando para os lados  de Mananava o céu devém cor de cinza, e enfio-me debaixo do mosquiteiro. Ouço Laura  a suspirar, porque também ela  não dormiu durante todo o tempo que estive fora. Nunca me fala disso. De dia , limita-se  a interrogar-me com os olhos, onde paira uma sombra,  e eu arrependo-me de haver saído para ir ouvir o mar. "
J.M. Le Clézio, in  O Caçador de Tesouros, Assírio& Alvim Editores, pp.9-10

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