sexta-feira, 27 de junho de 2025

Páginas inéditas de um Diário

A escrita diarística de Eugénio Lisboa , além de pródiga, é um excelente painel de informação sobre o Mundo. Um mundo que Eugénio Lisboa conhecia bem e sabia decifrar. Extremamente culto,  lúcido, meticuloso imprimia a cada apontamento a clareza,  que tanto prezava, numa clarividência de excepcionalidade.
Eis algumas páginas do V volume , dessa magnífica obra diarística, Aperto Libro. 

S. Pedro, 01.06.2019 – O Público anuncia hoje o programa de celebrações do cinquentenário da morte de José Régio. Entre as efemérides anunciadas, figura aquilo a que chama a “biografia” de Régio, de minha autoria. Referem-se ao livro José Régio – A Obra e o Homem, o qual é muito mais e muito menos do que uma biografia. Uma grande fatia do livro é uma análise profunda da obra e pouco tem que ver com biografia, a qual ocupa um espaço pequeno do livro. Mas agora que alguém lhe chamou, desastradamente, “biografia”, o livro passará a ser, para sempre, biografia. Uma vez posta a circular a asneira, esta faz lei e passa a vigorar como verdade aceite. Não há volta a dar-lhe.
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S. Pedro, 09.06.2019 – Obiang, o energúmeno da Guiné Equatorial, diz que não vai abolir a pena de morte “de uma penada”. O que quer dizer, em bom português, que vai arrastar os pés indefinidamente e não a vai abolir de todo. Em face desta óbvia bofetada, a missão de acompanhamento fez uma avaliação dos progressos feitos pela Guiné Equatorial “entre o satisfatório e o bom”. É o que se chama ser cuspido e agradecer. A CPLP devia ter vergonha do que se está a passar. Nunca tive grande respeito por esta organização. Actualmente, não tenho nenhum.

S. Pedro, 10.06.2019 – Parece que, neste 10 de Junho, celebrado em Portalegre, nem o orador oficial (João Miguel Tavares), que é natural daquela cidade, nem o Presidente da República fizeram a mais pequena alusão a José Régio que, além de ali ter sido professor, é um grande poeta, que nos deu a belíssima “Toada de Portalegre” e o grande poema camoniano, “Sarça Ardente”. É o que se chama perder uma bela oportunidade.

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S. Pedro, 19.06.2019 – Vitor Constâncio foi ontem ouvido, pela segunda vez, pela Comissão Parlamentar de Inquérito. E, como é seu costume, argumentou que, em relação às actuações de Berardo, no sentido de comprar acções do BCP com um empréstimo de 350 milhões de euros feito pela CGD, ele, Constâncio não podia fazer nada porque a lei o não permitia. Já quando foi do caso escandaloso do BPN, Constâncio não fez nada – e o resultado foi uma colossal catástrofe, que ainda hoje estamos a pagar. Constâncio nunca pode fazer nada, a não ser, segundo diz, cumprir escrupulosamente a lei. Ontem, o deputado Duarte Alves, do PCP, observou com alguma justiça: “O senhor acaba de nos dar uma interpretação muito eloquente da inutilidade da supervisão.” A regra de conduta de Constâncio é esta: não fazer nada, não actuar, não se comprometer. Quando eu estava para ser nomeado conselheiro cultural da embaixada de Portugal, em Londres, e Constâncio era Ministro das Finanças, só faltava a assinatura dele no processo da minha nomeação. Pois ele preparava-se para não assinar, deixando passar 30 dias, acabando eu por ser nomeado por omissão. Foi preciso um funcionário superior daquele ministério, meu amigo, ter feito ver a Vitor Constâncio que um conselheiro de embaixada não se nomeia por omissão. E lá assinou. Constâncio é assim mesmo: um timorato, um homem que prefere sempre não fazer nada.
 
S. Pedro, 23.06.2019 – Ontem, lá fui levar um livro e um abraço de parabéns ao meu amigo Brotas, pelos 89 anos dele. Continua alerta, embora ligeiramente tocado pela doença de Parkinson. Andámos juntos no Instituto Superior Técnico e, depois, pela vida fora, cada um com a sua diáspora, fomos mantendo o contacto que foi possível. Agora, com 89 anos, estamos ambos “à espera”.
 
S. Pedro, 24.06.2019 – Vem-me à lembrança o meu velho amigo, Alberto Parente, dos velhos tempos de Lourenço Marques. Vi-o, algumas vezes, depois do nosso regresso de Londres. Depois, nunca mais conseguimos contactar com ele, por mais que tentássemos. Terá morrido? Mais do que provavelmente. Sofria de algumas doenças graves e levava uma vida solitária e triste. Assim vamos largando, pela vida fora, os marcos da nossa existência. O Alberto Parente! Que, em Lourenço Marques, aluno do liceu e meu colega de turma, tinha uma produção poética abundante, diária, e certificadamente “modernista” (quando me dava a ler um novo poema, no final de o ter lido, perguntava-me, ansioso: “É modernista, não é?”) Casou com uma prima, que conheceu em Lisboa, quando para cá veio estudar e que namorou longa e arrastadamente. Muito mais tarde, já de regresso a Lourenço Marques, já médico e com filhos, verificou que ela era psicótica. Acabaria por se suicidar, depois de ter dado ao Alberto uma vida infernal. Um filho de ambos, também psicótico, acabaria igualmente por se suicidar. Pergunto: terá isto alguma coisa que ver com os nossos tempos felizes de Lourenço Marques? Trocando livros, descobertas e emoções? Prevendo, desenvoltamente, um futuro de êxitos, triunfos e glórias?... Será que os deuses se divertem connosco?
 
S. Pedro, 26.06.2019 – Cada vez me entendo menos com a linguagem abstrusa dos nossos líteras encartados. No último número do JL, esta pérola do prolífico e muito festejado Gonçalo M. Tavares: “Em Maria Velho da Costa vemos outra coisa, algo da ordem da altitude: o colocar da linguagem a sobrevoar os acontecimentos.” Dou um doce ou mesmo um saco de doces a quem me explicar o que é isto da “linguagem a sobrevoar os acontecimentos”. O imensamente galardoado e traduzido Gonçalo é pródigo em “trouvailles” deste jaez: coisas imensamente inesperadas e imensamente despidas de qualquer sentido. Aliás, muitos dos nossos literatos dizem abundantemente n’importe quoi sur n’importe qui à propos de n’importe quoi. Vale tudo – o importante é ser “giro” e “original”. Fazer sentido é irrelevante – e antiquado. No fim, até há muitos autógrafos.
Um estudo revela que os filhos de pais mais afluentes e com mais estudos dominam os melhores cursos. Há sempre, é claro, excepções. Em Lourenço Marques, embora eu viesse de uma família de parcos meios financeiros, fui sempre um dos melhores alunos e, a partir de certa altura, o indiscutível “urso” de todo o liceu. O curioso e, para mim, um pouco doloroso, foi a atitude de alguns colegas de curso que dificilmente aceitavam que um aluno “pobre” (sem dinheiro para comprar bons equipamentos e livros) pudesse ser o “urso” do curso e do liceu. Se fosse “rico” ainda se podiam agarrar ao conforto de uma “explicação”: a de que a afluência financeira poderia ajudar a compreender os melhores resultados, devido à excelência dos materiais escolares e do auxílio dos “explicadores”. Mas que um aluno obviamente desprovido desses meios se alcandorasse ao lugar mais alto – incomodava alguns dos meus colegas. Olhavam-me com evidente desconfiança e algum rancor. O género humano, em geral, não é amável.
Ando a reler a correspondência entre Jorge de Sena e Eduardo Lourenço. O que Sena e Lourenço dizem, muito contentes, da Presença – é profundamente errado e facilmente contestável. Tudo motivado, no caso de Sena, por um irreprimido ciúme e algum ressentimento, e, no caso de Lourenço, por um infeliz oportunismo. Sena, com toda a sua grandeza, nunca perdoou a Régio a celebridade que este gradualmente conquistara; Lourenço atacou a Presença, numa altura em que renderia juros fazê-lo. Em qualquer dos casos, a motivação não foi bonita. Mas quem disse que o mundo da literatura é um mundo onde sopra o sagrado?

S. Pedro, 27.06.2019 – Hoje, a minha neta Emma – a mais nova das minhas netas – faz 22 anos. Em Londres. Enviei-lhe, de manhã, um mail a dar-lhe os parabéns. Ainda me recordo de a ter ido ver, recém-nascida, em Barcelona. Há 22 anos! A Maria Antonieta encontrava-se lá, a dar apoio à Geninha. Foi sempre uma boa mãe. Nessa altura, a Emma estava, literalmente, presa à vida por um fio. Hoje é uma escorreita e linda menina. Vamos ficando horrorosamente antigos.
Telefonou-me, dos Açores, o Vamberto de Freitas. Terminou a recensão crítica do meu livro Uma Conversa Silenciosa. E diz-me que, inspirado por mim, se meteu à leitura de um “thriller” de não-ficção: O Espião e o Traidor. Este “inspirado por mim” refere-se às passagens (repetidas) do meu diário, em que me meto com o Vergílio Ferreira, de cada vez que enceto a leitura de um policial ou de um “thriller”, notando que era esse um tipo de leitura que o autor de Aparição nunca faria… Para ele, só de Hegel para cima: quanto mais nebuloso, melhor. Para alguns literatos da nossa praça, o nevoeiro é sintoma de profundidade. “
Eugénio Lisboa, in Aperto Libro V 

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