Quando lemos versos que são realmente admiráveis, realmente bons, temos a tendência para o fazer em voz alta. Um verso bom não permite ser lido em voz baixa, ou em silêncio. Se pudermos fazê-lo, não é um verso válido: o verso exige ser pronunciado. O verso recorda sempre que foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto.
Jorge Luis Borges
A poesia faz parte destas páginas . Vivem de muitos poemas . Os poetas alimentam-nas com pródiga sedução.
É com eles , com quatro grandes poetas , que vamos falar de poesia, numa soberba arrumação de palavras em bela prosa.
A POESIA
por Eugénio Lisboa
“A poesia mente muito, mas diz sempre o que mais a aproxima da verdade. Sabe é dizê-lo, de um modo muito especial, que é não dizer, dizendo, enviesando e despistando. O próprio do poeta é “citar” o leitor, como se “cita” um touro. O poeta não dá respostas: abre pistas. Quem dá respostas são os padres e os charlatães. Os poetas fazem perguntas sugestivas que apontam, nunca para um só caminho, mas para vários. O não responder dos poetas aproxima-se mais da resposta do que o responder dos padres. O não responder dos poetas tem mais resposta do que o responder dos bispos. O poeta pretende que não sabe, o padre finge que sabe. Há mais saber no não responder do que no responder. Mesmo quando o poeta parece que afirma, está só a perguntar. Há mais filosofia no que diz que não sabe do que em todas as religiões somadas e muito cheias de certezas. Não saber, ter dificuldade em compreender, abre-nos mais portas para a verdade do que ter resposta para tudo. Os poetas e os homens de ciência têm, no que não sabem, promessas de tesouros que se furtarão a todas as religiões do mundo. Pensar que ainda se não sabe é a melhor alavanca para algum saber. Pensar que se sabe e que aquele é o único saber admitido convoca a tortura e a fogueira. Os poetas nunca queimaram ninguém, mas alguns deles já foram queimados. O que julga que sabe e não sabe está sempre preparado para eliminar o que quase sabe mas sabe que está ainda longe de saber. A certeza tem horror à dúvida, como antigamente se dizia que a natureza tem horror ao vazio. A dúvida faz avançar o conhecimento. A certeza barra-lhe o avanço. Como os cientistas, os poetas estão vivos e activos porque ainda não sabem: quando muito, desconfiam. Como dizia um filósofo francês, a dúvida pode ser dolorosa, mas a certeza é ridícula.”
Eugénio Lisboa, 09.11.2022
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| Manoel de Andrade |
POESIA E ORALIDADE
por Manoel de Andrade
"A Poesia, ao longo do tempo, foi perdendo a nítida feição com que nasceu: a oralidade. Conta-se que há 2.500 anos, o poeta grego Simónides de Ceos — célebre pelo hino que compôs aos heróis das Termópilas e que treinou sua memória para correr a Grécia declamando os poemas de Homero, de Safo e de poetas que o antecederam — encontrou um dia seu discípulo e conterrâneo Baquílides, escrevendo suas odes sobre uma placa de cera e o acusou de trair a poesia cuja magia e encanto, dizia, estava em sua expressão declamatória e não na palavra escrita. “A Poesia, afirmava ele, é uma pintura que fala”. A poesia oral consta dos mais antigos registros literários da Grécia micênica e embora, no terceiro mundo, ainda se encontrem hoje culturas ágrafas, cuja expressão poética se manifesta apenas pela oralidade, é necessário lembrar que a literatura nasce da littera(letra), como pressuposto da escrita e da leitura. Assim, um fenômeno não pode excluir o outro e é tão importante valorizar a tradição oral da poesia, quanto reconhecer que sem a escrita, parte de todo o seu acervo histórico se perderia com o tempo. Nesse sentido tanto a poesia escrita, como a vocalizada ou dramatizada são expressões por onde permeia a mágica dimensão poética. Nas antigas culturas de tradição oral os poetas eram tidos como os receptores e transmissores do Conhecimento e reverenciados como os guardiões da Sabedoria e por isso considerados tão importantes como os reis, sendo que os reis podiam ser mortos, mas matar um poeta era considerado um sacrilégio. O premiado poeta nicaraguense Ernesto Cardenal, em seu notável Prólogo a la antología de la poesía primitiva, afirma que “ el verso es el primer linguaje de la humanidade. Siempre ha aparecido primero el verso, y después la prosa; y ésta es una espécie de currupción del verso. En la antigua Grécia todo estaba escrito en verso, aun las leyes: y en muchos pueblos primitivos no existe más que el verso. El verso parece que es la forma más natural del lenguaje”.
(…)
Nós, os poetas, temos plena consciência de que não podemos mudar o mundo, embora nosso DNA seja feito de sonhos. Por isso somos tão poucos e estamos cada vez mais sozinhos. Quem sabe por sermos os herdeiros solitários de tantas utopias!? A pós-modernidade aniquilou o homem. Tentou matar Deus, tentou matar a Verdade, está tentando matar a Arte e a Poesia. Na década de 70 perguntaram a Pablo Neruda o que aconteceria com a poesia no ano 2000. Ele respondeu que, com certeza, não se celebraria a morte da poesia. Que em todas as épocas deram por morta a poesia, mas que ela está sempre ressuscitada e que parece ser eterna. O grande poeta e revolucionário argentino Juan Gelman, prémio Cervantes de 2007, afirma que “Lo extraordinário es como la poesía, pese a todo, a las catástrofes de todo tipo, humanas, naturales, viene del fondo de los siglos y sigue existiendo. Ese es el gran consuelo para mí. Va a seguir existiendo hasta que el mundo se acabe si es que se acaba alguna vez”.
(…)
A poesia está inscrita no âmago da alma humana e ela é de todos os tempos. Desde Homero, há 3.000 anos, cantando as peripécias de Ulisses e os combates de Aquiles; desde Camões cantando a saga dos grandes descobrimentos, até Castro Alves cantando a liberdade para os escravos e Drummond de Andrade, dizendo-nos, poeticamente, que há sempre “uma pedra no caminho” de nossas vidas. A palavra, na poesia, foi e será sempre a mais bela forma de resistência contra um mundo desumano, e um profético aceno para um tempo melhor.
(…)
Eis porque nós, os poetas, sentimos que só resta a nossa própria plenitude, esse misterioso monólogo com a história e o incognoscível, porque habitamos o território do encanto e do amanhecer. Cantamos porque vivemos dessa partícula de sonho que nos sobrepõe ao real, como disse Ingenieros. Cantamos porque acreditamos na missão imperecível da beleza, apesar de todo esse desamparo e essa perplexidade ante um mundo cada vez mais violento e cruel. Cantamos “porque a canção existe” e essa é a nossa fortuna. Cantamos para dizer nossas verdades e repartirmo-nos em cada verso. Cantamos porque cada palavra, cada poema nosso é uma esperança de busca e de encontro, um mágico roteiro para a liberdade, uma proposta de diálogo com o mundo, um gesto de amor para legitimar a condição humana e também nossa gota de lirismo para salvar a poesia de sua angustiante agonia. (...)”
Manoel de Andrade, poeta brasileiro, em ensaio publicado no Blog Palavras todas as palavras, 4 Novembro 2008.
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| Pablo Neruda |
O Meu Primeiro Poema
por Pablo Neruda
"Têm-me perguntado muitas vezes quando escrevi o primeiro poema, quando nasceu a minha poesia. Tentarei recordá-lo. Muito para trás, na minha infância, mal sabendo ainda escrever, senti uma vez uma intensa comoção e rabisquei umas quantas palavras semi-rimadas, mas estranhas para mim, diferentes da linguagem quotidiana. Passei-as a limpo num papel, dominado por uma ansiedade profunda, um sentimento até então desconhecido, misto de angústia e de tristeza. Era um poema dedicado à minha mãe, ou seja, àquela que conheci como tal, a angélica madrasta cuja sombra suave me protegeu toda a infância. Completamente incapaz de julgar a minha primeira produção, levei-a aos meus pais. Eles estavam na sala de jantar, afundados numa daquelas conversas em voz baixa que dividem mais que um rio o mundo das crianças e o dos adultos. Estendi-lhes o papel com as linhas, tremente ainda da primeira visita da inspiração. O meu pai, distraidamente, tomou-o nas mãos, leu-o distraidamente, devolveu-mo distraidamente, dizendo-me:
— Donde o copiaste?
E continuou a falar em voz baixa com a minha mãe dos seus importantes e remotos assuntos. Julgo recordar que nasceu assim o meu primeiro poema e que assim tive a primeira amostra distraída de crítica literária.
Entretanto, progredia no mundo do conhecimento, no desordenado rio dos livros, como um navegante solitário. A minha avidez de leitura não se saciava, nem de dia nem de noite. Na costa, no pequeno Puerto Saavedra, topei uma biblioteca municipal e um velho poeta, Augusto Winter, que se admirava com a minha voracidade literária. «Já os leu?», inquiria, passando-me um novo Vargas Vila, um Ibsen, um Rocambole. Como uma avestruz, eu engolia tudo sem discriminações.
Por aquela época, chegou a Temuco uma senhora alta, com vestidos bastante largos e sapatos de tacão raso. Era a nova directora do liceu feminino. Vinha da nossa cidade austral, das neves de Magallanes. Chamava-se Gabriela Mistral.
Eu vi-a passar pelas ruas da minha povoação com as vestes talares e tinha medo dela. Mas, quando me levaram a visitá-la, achei-a simpática. No seu rosto moreno, em que o sangue índio predominava como numa bela cântara araucana, os dentes branquíssimos despontavam num sorriso largo e generoso que iluminava o aposento.
Eu era demasiado novo para ser seu amigo, era muito tímido e calado . Vi-a poucas vezes - o suficiente para sair de cada vez com a oferta de alguns livros. Eram sempre romances russos, tidos por ela como a coisa mais extraordinária da literatura mundial. Posso afirmar que foi Gabriela quem me lançou nessa série e terrível visão dos romancistas russos e que Tolstoi , Dostoievski, Tchekov, entraram desde ai na minha mais profunda predilecção. E continuam a acompanhar-me. "
Pablo Neruda, in Confesso que vivi, Memórias, Publicações Europa-América,1975, pp. 23, 24.
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| Jorge Luis Borges |
O Credo de um Poeta
por Jorge Luís Borges
"O meu objectivo era falar sobre o credo do poeta, mas, olhando para mim, descobri que tenho um tipo de credo vacilante , nada mais. Esse credo talvez possa ser útil para mim, mas dificilmente o será para os outros.
Com efeito, penso em todas as teorias poéticas como meras ferramentas para a escrita de um poema. Suponho que devia haver tantos credos, tantas religiões, como há poetas. Embora no fim diga qualquer coisa do que gosto e do que não gosto no que se refere à escrita de poesia, acho que vou começar por algumas recordações não só de escritor, mas também de leitor.
Penso-me essencialmente como leitor. Como sabem, aventurei-me na escrita; mas penso que as coisas que li foram muito mais importantes do que as que escrevi. Porque lemos aquilo de que gostamos –mas não escrevemos o que gostaríamos de escrever, apenas o que podemos escrever.
(…)
Encontrei alegria em muitas coisas – nadar, escrever, contemplar um nascer do sol ou um pôr do sol, apaixonar—me etc.. Mas, de certo modo, o facto central de minha vida tem sido a existência das palavras e a possibilidade de as tecer em poesia. A princípio, por certo, era apenas um leitor. Mas penso que a felicidade de um leitor vai além da de um escritor, pois o leitor não precisa de sentir a perturbação, a ansiedade: anda simplesmente à procura da felicidade. E a felicidade, quando se é leitor, é frequente. ”
Jorge Luis Borges , in Este Ofício de Poeta, Relógio D'Água, Lisboa 2017, p. 75, 77





Todos temos nossos bons momentos e, como poeta, já os tive, entre outros, quando escrevi e publiquei este texto em 2008, e hoje, novamente e gratificado, ao vê-lo postado no exterior e entre celebridades como Eugênio Lisboa, Neruda e Borges.
ResponderEliminarDiz o grande ensaista e crítico literário português Eugénio Lisboa que “A poesia(...) diz sempre o que mais se aproxima da verdade.” (...) e que “O poeta não dá respostas: abre pistas. (...) Mesmo quando o poeta parece que afirma, está só a perguntar.”
Considerado um dos maiores escritores do século XX, o poeta argentino Jorge Luis Borges, confessa que: “Encontrei alegria em muitas coisas – nadar, escrever, contemplar um nascer do sol ou um pôr do sol, apaixonar—me etc.. Mas, de certo modo, o facto central de minha vida tem sido a existência das palavras e a possibilidade de as tecer em poesia.”
É tão mágica a criação poética que o pai de Neruda exclamou ao ler seu primeiro poema: — “Donde o copiaste?”
Obrigada Manoel de Andrade pelos muitos e excelentes momentos que nos tem oferecido. Que continue "a abrir pistas" para nosso deleite.
ResponderEliminarMeu querido poeta e amigo Manoel de Andrade.
ResponderEliminarFiquei muito feliz em receber está mensagem.
Quanta reflexão!
Temos cultivados momentos de grande alegria e emoção.
Minha irmã Magali foi uma grande declamadora dos poetas do livro Parnaso de Além -Túmulo e de outros Mestres da poesia.
Convidada principalmente, nas conferências do Divaldo no Norte do Paraná e nos eventos espíritas.
Hoje, aos 86 anos, aínda emociona a todos nós.
Conserva a mesma voz e o encantamento da música da poesia.
Abraço carinhoso.
Laércio