segunda-feira, 2 de junho de 2025

No final do ano lectivo

Cão de água
Memórias 
por Eugénio Lisboa
"O final do 1.º ano lectivo, com três inscrições no “Quadro de Honra” (uma em cada um dos três períodos) e a promessa de dois meses e meio de “férias grandes” à minha frente, foram fonte de grande emoção. Ia ser porreiro! Era inverno, claro, mas era um inverno próprio daquela África subtropical: moderado, macio, de temperaturas amenas, dias soalheiros, sem chuvas, bom para a lei tura e para o cinema. Bom para estar. E para sonhar.
Nessa altura, ainda não tinha muita literatura à mão, excepto um ou outro Almanaque Bertrand, um ou outro livro de leitura para crianças ou adolescentes e, sobretudo, na garagem da casa da Estrada do Zixaxa, um baú cheio de selos usados e de números da revista brasileira Vamos Ler! Nesta, havia contos (de todo o mundo (Poe, Anatole France, Machado de Assis, etc.), peças de teatro em um acto de O’Neill, biografias dos grandes escritores, etc. Havia o “Nero” e havia os gatos! E os coelhos, a que dávamos logo nomes e ficavam a ser nossos amigos. E a “Padaria Serrano” e o futebol nos baldios. E as mangas verdes com sal, que o Rui Knopfli mais tarde celebraria num livro seu. Em suma: o Universo todo ali à mão. E tanto tempo livre para tudo aquilo. Aquilo era grande e livre e sem peneiras, caramba! Que se lixassem os maricas da Polana!
A praia era o máximo – muitas vezes, quem nos levava era o sr. Vieira, um solteirão pachorrento, de meia-idade, que vivia em casa das tias, no Alto-Mahé. Tinha trabalhado para os serviços de electricidade da cidade, que estavam entregues a uma empresa inglesa ou sul-africana (já me não recordo bem). Quando os ser viços passaram para a Câmara Municipal, o sr. Vieira deixou de tra balhar: recusou-se a fazê-lo para portugueses... Ele lá sabia das suas razões. Com umas economias construíra uma ou duas casas e vivia frugalmente com as rendas. Tinha um Plymouth de capota de lona e buzina com pera de borracha, no qual fazíamos as nossas praias. O carro era castanho claro, estava muito bem conservado, embora não fosse a última palavra em carro. Às vezes, “não pegava”, não sei se por capricho, se por lhe faltar vontade de sair daquela sorna à sombra de uma árvore, no passeio de areia em frente à casa do Alto-Mahé. O carro era um bocado como o sr. Vieira: difícil de decifrar. Na boa tradição anticlerical da casa das tias (que também era um bocado minha, por via do meu pai), o sr. Vieira, quando se impacientava com os caprichos do carro, berrava: “Ah, Cristo negro! Ah, grande cabrão!” O carro, não sei se por se intimidar, se por não gostar de ouvir aqueles sacrilégios, lá acabava por “pegar”, para grande desa nuviamento, ainda assim mal encarado, do sr. Vieira. E lá íamos a caminho do Palmar, com o “Nero” a tiracolo. Ao aproximarmo-nos do Caracol, com o mar e o Pavilhão lá em baixo, cheirava a mar por todos os lados e o “Nero” (cão de água, tinham-nos explicado) ficava histérico a mais não poder: torcia-se, para se libertar, com uma energia diabólica e eu via-me grego para o segurar – queria saltar do carro e despenhar-se pela rampa abaixo para ir gloriosamente encharcar-se! Aquilo inquietava-me. Eu também gostava de praia e da água do mar, mas gostar tanto como o “Nero” mostrava gostar parecia-me que era passar todas as marcas do razoável. O problema com o “Nero” é que ele desprezava intensamente o reino do razoável. Com a aproximação do mar, o “Nero” ficava literalmente possesso. A única coisa que até hoje vi, parecida com aquilo, foi assistir aos muçulmanos em manifestações de desagravo, por motivo de fervor religioso ofendido por infiéis insensíveis."
Eugénio Lisboa, in Acta est Fabula, Memórias, Lourenço Marques.1930-1947, Editora Opera Omnia., Novembro de 2012, pp.58-60

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