quinta-feira, 12 de junho de 2025

A casa

Roma
 A Casa
Há uns anos, depois de vendermos um apartamento que tínhamos em Turim, começámos a procurar casa em Roma; e a procura dessa casa durou muito tempo.
 Eu desejava, havia anos, uma casa com jardim. Em criança, tinha vivido numa casa com jardim, em Turim, e a casa que imaginava e desejava era parecida com aquela. Não me teria contentado com um magro jardinzinho, queria árvores, um lago de pedra, arbustos e carreiros: queria tudo o que havia naquele jardim da minha infância. Ao ler os anúncios no Messaggero, à quinta‑feira e ao domingo, detinha‑me naqueles que diziam «villa com amplo jardim de dois mil metros quadrados, árvores de grande porte»; mas, após um tele‑ fonema para o número indicado no anúncio, ficava a saber que «a villa» custava trinta milhões. Todavia, a voz que me atendia o tele‑ fone dizia às vezes «trinta milhões negociáveis»; e aquela palavra, «negociáveis», impedia‑me de renunciar completamente aos dois mil metros quadrados de jardim, que não me atrevera a ir ver, mas que imaginava magníficos: via aquele «negociáveis» como um ter‑ reno escorregadio no qual se podia deslizar até à soma, muito inferior a trinta milhões, que nós tínhamos. Pontualmente, todas as quintas‑feiras e todos os domingos, percorria os anúncios do Messaggero. Saltava os que começavam por «Aaaaa»*: não sei porquê, desconfiava de todos aqueles «a». Não que eu desconfiasse das agências. Havia de recorrer também às agências (aliás, visitei diver‑ sas). Mas, seja como for, saltava os «aaa». Como queria um jardim, isto é, uma casa no rés do chão, saltava também os anúncios que começavam por «último andar», «andar recuado», «panorâmico». Lançava‑me sobre aqueles que começavam por «vivenda», «peque‑ na moradia», «villa». «Villa em zona residencial diplomática acabamentos excecionais grande jardim»; «villa senhorial, imponente, adequada para personalidade, ator, profissional liberal, empresário. Aquecimento central. Parque arborizado». Depois de ter ido ver duas ou três «pequenas moradias» e de ter descoberto que eram bastante miseráveis e que o jardim não era mais do que um estreito passeio de pedra cercado por uma sebe, comecei a descartar as «pequenas moradias» e a sublinhar a lápis as «villas». «Villa de dez assoalhadas amplo salão pátio cerâmicas aquecimento jardim arbo‑ rizado.» «Villa de três pisos ideal para sedes diplomáticas comunidades religiosas baixo custo.» Demorava‑me também um instante em anúncios de casas ou de terrenos fora de Roma, imaginando que poderíamos fixar‑nos no campo. «Zona de Frosinone baixo custo pedreira de cascalho em estrada com olival no cimo ótimo negócio.» O meu marido dava uma vista de olhos aos anúncios que eu tinha sublinhado e perguntava‑me o que faríamos com uma villa para comunidades religiosas, nós, que não éramos uma comunidade religiosa e, sobretudo, o que faríamos com uma «pedreira de cascalho» na zona de Frosinone, nós, que tínhamos de estar em Roma e precisávamos de uma casa.
Nos primeiros tempos, o meu marido absteve‑se de procurar e via‑me a sublinhar anúncios como se eu estivesse dominada por uma calma loucura. Ele costumava dizer que, no fundo, se sentia muito bem na casa arrendada onde vivíamos, embora tivesse de reconhecer que estávamos um pouco apertados. No entanto, por vezes admitia, mas muito debilmente, que talvez fosse oportuno comprar uma casa, porque o dinheiro da renda era dinheiro deitado pela janela; mas, repito, nos primeiros tempos, a minha busca foi solitária, e um tanto louca; eu lia‑lhe em voz alta aqueles anúncios do Messaggero, ele ouvia geralmente num silêncio irónico e desdenhoso, que me desencorajava e que, ao mesmo tempo, me empurrava cada vez mais para o caminho da loucura. Já que comprar uma casa me parecia impossível sem o seu acordo, perseguia sonhos impossíveis e sombras, sabendo que, de qualquer forma, não haveria consequências reais. Cheguei a ir ver algumas das casas daqueles anúncios, e o meu marido sabia que eu ia vê‑las, mas recusava‑se a ir comigo; e eu sentia que me acompanhava, no decurso daquelas expedições, a sua absoluta desconfiança nas minhas capacidades de encontrar uma casa. Depois, de repente, o meu marido dedicou‑se também a procurar casa comigo. Esta imprevista determinação deveu‑se, creio, ao facto de ele se ter aconselhado com um cunhado, que lhe disse que faríamos muito mal em comprar uma casa num momento como aquele, porque dentro de alguns anos as casas desceriam de preço: previsão que mais tarde se revelou errada, porque as casas em Roma são cada vez mais caras. Portanto, para nós era oportuno esperar que os preços baixassem. Já mais do que uma vez me tinha dado conta de que o meu marido costumava pedir conselhos àquele cunhado, para fazer exatamente o contrário do que ele sugeria; embora continuasse sempre, o meu marido, a gabar a grande perspicácia e sabedoria daquele nosso parente, e a afirmar a necessidade de o consultar em todas as circunstâncias de natureza económica e prática, ou seja, em todas as matérias em que ele próprio se sentia insuficiente. O meu pai, por seu lado, escrevia‑me continuamente de Turim, instando‑ nos a comprar uma casa, ou melhor, como ele costumava exprimir‑ se, «um andar», termo que, na linguagem arcaica que ele usava sobretudo por carta, significava um apartamento. No apartamento arrendado onde estávamos, demasiado apertado para nós, tínhamos a empregada a dormir na sala de jantar, o que o meu pai achava anti‑ higiénico, e um dos miúdos no escritório, o que o meu pai considerava muitíssimo inconveniente. Quanto à minha sogra, dissuadia‑ nos de mudar de casa, porque, no apartamento arrendado onde morávamos, o chão era amarelo e, segundo ela, irradiava uma luz que embelezava a tez; além disso, se queríamos realmente comprar uma casa, aconselhava‑nos a convencer o proprietário a vender‑nos aquela: o que era, como várias vezes tínhamos tentado explicar‑lhe, inexequível, porque nem o proprietário desejava vendê‑la, nem nós, por diversos motivos, desejávamos comprá‑la.
A busca teve, portanto, dois períodos: um em que procurei sozinha, com fervor, mas ao mesmo tempo com timidez e desconfiança, porque as dúvidas e a desconfiança do meu marido me tinham contagiado: e porque preciso sempre, nas minhas iniciativas de natureza prática, de ter o acordo de outra pessoa. E houve depois um segundo período, em que o meu marido procurou casa comigo. Quando ele começou a procurar casa comigo, descobri que a casa que ele queria não se parecia em nada com a que eu queria. Descobri que ele, tal como eu, desejava uma casa semelhante àquela em que tinha passado a infância. Como as nossas infâncias não se assemelhavam, a dissidência entre nós era insanável. Eu desejava, como disse, uma casa com jardim: uma casa no rés do chão, talvez um tanto escura, com verde à volta, hera, árvores; ele, por ter passado parte da infância na Via dei Serpenti e outra parte em Prati, sentia‑se atraído por casas situadas nestas duas zonas. Estava‑se nas tintas para as árvores e o verde. Das janelas, ele queria ver telhados: paredes antigas, descascadas, corroídas pelo tempo, roupa remendada a esvoaçar ao vento em becos húmidos, telhas musgosas, algerozes ferrugentos, chaminés, campanários. Começámos, assim, a discutir, porque ele descartava todas as casas que me agradavam, achando que eram demasiado caras, ou que tinham algum defeito; e, como ele também tinha começado a ver anúncios, sublinhava a lápis só as casas que ficavam no centro de Roma. Ia comigo ver as casas em que eu tinha interesse, mas a cara dele, ainda antes de subirmos as escadas, era tão carrancuda, o seu silêncio, tão colérico e desdenhoso, que fazê‑ lo olhar em redor com olhos humanos, trocar algumas palavras com o porteiro ou com o proprietário que nos antecediam, abrindo as portadas, me parecia uma tarefa impossível. Disse‑lhe, então, que achava odiosa a sua maneira de tratar aqueles pobres porteiros, ou aqueles pobres proprietários, que não tinham culpa nenhuma de ele não gostar das casas; e, após esta minha observação, tornou‑se amabilíssimo, cerimonioso, quase servil com os porteiros e com os proprietários: manifestava um profundo interesse pelo apartamento, metia o nariz nos roupeiros de parede, falava até das obras que seria útil fazer; e eu, nas primeiras vezes, deixei‑me induzir em erro, na ilusão de que a casa que estávamos a ver talvez lhe agradasse um pouco; mas não demorei a perceber que aquele seu comportamento amável era irónico em relação a mim, e que a ideia de comprar semelhante casa nem lhe passava pela cabeça. Recordo com extrema precisão a sordidez de certas casas que me interessavam: casas em Monteverdevecchio, amarelecidas, a cair, num estado de profundo abandono; jardinzinhos húmidos, longos corredores escuros, candeeiros de ferro batido com luz fraca, saletas com vidros coloridos onde velhinhas se sentavam à braseira; cozinhas com cheiro a canos. E a sordidez de certas casas que lhe inte- ressavam: fileiras de quartos grandes como celeiros, com chão de tijoleira e paredes caiadas, cachos de tomate pendurados no teto, retretes à maneira turca, varandas estreitas que davam para pátios profundos e húmidos como poços, terraços onde apodreciam montões de trapos. Portanto, nós gostávamos de dois tipos de casas cla- ramente distintos; mas havia uma espécie de casa que detestávamos ambos. Detestávamos ambos, e na mesma medida, as casas do bairro Parioli, seminovas, sumptuosas e geladas, com vista para ruas sem uma única loja e frequentadas apenas por bandos de nurses em véu azul, com carrinhos leves e negros como insetos; e detestávamos ambos as casas do quarteirão Vescovio, apertadas num labirinto de ruas e praças cheias de salsicharias e drogarias, de mercados cobertos e de redes de elétricos. Todavia, íamos ver também esse tipo de casas, que detestávamos. Íamos vê‑las porque estávamos já os dois possuídos pelo demónio da busca; íamos vê‑las para as odiarmos ainda mais, para nos imaginarmos com pavor, por um instante, exilados em Parioli como peixes vermelhos dentro de um aquário, ou assomados àqueles varandins que mais pareciam cestas de flores. Ao regressarmos, cansados, à nossa casa arrendada de chão amarelo, perguntávamo‑nos se nos importava assim tanto, realmente, mudar de casa. No fundo, não nos importava grande coisa. No fundo, até se vivia bastante bem ali. Eu conhecia todas as manchas na parede daquela casa, todas as fendas na construção, os halos escuros que se tinham formado por cima dos radiadores; conhecia o estrondo das chapas de ferro atiradas para a frente do portão, tendo o nosso senhorio, mesmo ao lado, uma oficina; quando íamos pagar‑lhe a renda, recebia‑nos entre as faíscas do maçarico oxídrico e o zumbido dos motores. Cada vez que lhe pagávamos a renda, o nosso senhorio parecia espantado, como que esquecido de nos ter arrendado aquele apartamento; parecia mal nos reconhecer, embora fosse sempre muito gentil: parecia unicamente absorto na sua oficina, e na chegada daquelas placas que ferro, que caíam na calçada com um estrondo surdo. Naquela casa, eu tinha escavado a minha toca. Era uma toca onde, quando me sentia triste, eu me enfiava como um cão doente, bebendo as minhas lágrimas, lambendo as minhas feridas. Dentro dela, sentia‑me como numa meia velha. Porquê mudar de casa? Qualquer outra casa me teria sido hostil, e eu teria lá vivido com aversão. Via desfilar diante de mim, como num pesadelo, todas as casas que tínhamos visto e que, por instantes, tínhamos pensado poder comprar. Todas me inspiravam uma sensação de repulsa. Pensáramos comprá‑las, mas, no momento em que tínhamos decidido renunciar a elas, tínhamos sentido um alívio profundo, uma leveza, como quem escapou, por milagre, a um perigo mortal.
Mas não podia qualquer casa, qualquer uma, com o tempo, transformar‑se numa toca? E acolher‑me na sua penumbra benigna, tépida, tranquilizadora?
Ou não era antes eu que não desejava viver em nenhuma casa, em nenhuma, porque o que sentia odiar não eram as casas, mas sim eu mesma? E não podiam todas as casas, todas, servir, desde que lá morasse outra pessoa, e não eu?
Depois, pusemos nós um anúncio no Messaggero. Ao compô‑lo, discutimos longamente. No fim, o anúncio ficou assim: «Compra‑se apartamento em Prati ou Monteverdevecchio, cinco quartos, terraço de cobertura ou jardim.» Foi o meu marido que quis as palavras «terraço de cobertura», porque ele adorava terraços, e odiava, como pouco a pouco se fora revelando, jardins; os jardins, dizia ele, levam com o pó e o lixo das varandas por cima. Assim, o meu sonho de um jardim despedaçou‑se: porque uma nuvem de lixo cobriu aquelas «plantas de grande porte» e aqueles caminhos sombrios que a minha imaginação embalava. Responderam algumas pessoas a este anúncio: mas as casas que ofereciam não eram nem em Prati, nem em Monteverdevecchio, e não tinham terraço nem jardim. Contudo, fomos vê‑las. Dez dias depois do anúncio, o nosso telefone ainda tocava para nos proporem casas. Uma noite, o telefone tocou às dez: atendi eu, e ouvi uma voz de homem desconhecida, robusta, alegre e triunfante, que dizia:
 «Está lá? É o comendador Piave! Tenho um belíssimo apartamento na praça Balduina! É excelente! Tem intercomunicador! Na casa de banho principal, há uma coluna de mármore negro, com mosaicos que representam peixes verdes! Quando vêm vê‑lo? Telefone‑ me, se eu não estiver, a minha mulher atende! Tem intercomunicador! O seu marido chega a casa à uma com o carro, e da portaria avisa‑a para pôr o esparguete ao lume! Tem também garagem! Quando vêm? Eu e a minha mulher temos todo o gosto em conhecê‑los, podemos tomar um chá juntos, eu levo‑os ao apartamento no meu carro, tenho um descapotável! A minha mulher não conduz, eu conduzo há dezassete anos, mandei construir o apartamento para a minha filha, mas ela mudou‑se para São Paulo, no Brasil, o meu genro é brasileiro, é negociante de têxteis, conheceram‑se em Fregene. Tenho também uma villa em Fregene, uma preciosidade, aquela não a vendo, era o que me faltava, vendê‑la, vamos lá todos os fins de semana, eu e a minha mulher. Tenho um descapotável!» Embora eu morasse em Roma há muitos anos, não sabia onde ficava a praça Balduina. Perguntei ao meu marido e ele disse‑me que era numa zona que detestava. Foram três ou quatro as casas que estivemos prestes a comprar. Habitualmente, a nossa vontade de comprar uma casa durava duas semanas. Naquelas duas semanas, não fazíamos senão ir vê‑la, a qualquer hora do dia; travávamos amizade com o porteiro e dávamos‑lhe gorjetas; levávamos lá os nossos filhos, em seguida a minha sogra, e por fim aquele cunhado, cuja grande sabedoria o meu marido elogiava. “
Natalia Ginzburg, in Nunca me perguntarás, Relógio DÁgua Editores, Maio de 2025 pp.14-21

* Os anúncios de casas nos jornais costumavam estar organizados por ordem alfabética; os que tinham mais «a» apareciam em primeiro lugar, tendo assim mais hipóteses de captar a atenção dos leitores. (N. T.)
Sobre o Livro:
Os ensaios reunidos neste volume assemelham-se às páginas do diário que Natalia Ginzburg afirmava nunca ter sido capaz de escrever. A solidão da infância e o assombro da velhice, os filmes vistos e os livros lidos, o trabalho, a música, a política, a crença ou não em Deus. São textos próximos — tanto pela afinidade temática como pela sabedoria — de Léxico Familiar, e, como em qualquer obra da autora, inseparáveis da vocação para a narrativa na primeira pessoa. Na sua casualidade — na sua tranquila desordem quotidiana —, estes textos revelam questões que pertencem a todos. Um autorretrato singular de uma mulher, Nunca Me Perguntarás torna-se uma experiência familiar e um objeto destinado a fazer-nos companhia dia após dia.
Natalia Ginzburg
Sobre a Autora:
Natalia Levi, que viria a adoptar o apelido Ginzburg do seu primeiro marido, nasceu em Palermo a 14 de Julho de 1916.
Passou grande parte da vida em Turim, para onde o pai, professor universitário de anatomia, foi transferido em 1919. Tanto ele como os irmãos de origem judaica foram presos e acusados devido às suas ideias antifascistas.
Apesar de a sua mãe ser católica, Natalia teve, como toda a família, uma educação laica. Estudou no liceu Alfieri e publicou o seu primeiro livro de contos, I bambini, aos dezassete anos. Cinco anos mais tarde casou com Leone Ginzburg, professor de literatura russa. O casal manteve relações de amizade com Cesare Pavese e Carlo Levi, entre outros escritores.
Em 1940, exilaram-se em Pizzoli. Sob o pseudónimo Alessandra Tornimparte, Natalia publicou, em 1942, O Caminho da Cidade, que seria reeditado em 1945 já com autoria assumida.
O marido foi detido e torturado até à morte na Prisão de Regina Coeli em 1944. Nesse mesmo ano, Natalia Ginzburg deslocou-se para Roma, entretanto libertada, e começou a trabalhar na editora Einaudi, aí publicando os seus livros.
Em 1947, surgiu o seu segundo romance, Foi assim, que obteve ex aequo o prémio Due Cicogne — Il Tempo di Milano.
Em 1950, casa com Gabriele Baldini, especialista em literatura inglesa, de quem terá dois filhos.
Em 1961, publica As Palavras da Noite, que será adaptado ao cinema. Dois anos depois, sai Léxico Familiar, uma novela autobiográfica. Interpreta o papel de Maria de Betânia em Evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini.
A partir do final da década de sessenta, publica vários livros, todos eles abordando relações familiares. Natalia Ginzburg foi também autora de várias comédias teatrais e tradutora de Proust, Flaubert e Maupassant.
Foi eleita para o parlamento italiano em 1983.
Morreu a 7 de Outubro de 1991.

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