sábado, 21 de junho de 2025

Homenagear Teresa Rita Lopes

Teresa Rita Lopes (12.09.1937-14.06.2025)
Quatro auto-retratos

2

Porque será que meus olhos tanto necessitam
de ver mar ao longe?
Ou pelo menos a água
de um rio
para aí cheirar a sua raiz
Se calhar foi por tanto apetecer o azul
da água ao longe
que meus olhos são claros
e por tanto amar o mar
que meus desgostos
se tornaram destemidos e salgados
e têm
o voo a pique das gaivotas
e o grito ácido
dos pássaros marinhos
Teresa Rita Lopes, in Afectos, Lisboa, Presença, 2000

O Mar da Memória


Acarinho cada vez mais essas palavras
que se dizem ou diziam na minha terra
e as pessoas da minha cidade nem conhecem de nome
Fecho os olhos
abandono-me
deixo-as vir
ao de cima de mim
como uma onda
Dão à costa do fundo do mar da memória
Oiço-as na voz da minha Mãe
Teresa Rita Lopes, in Afectos, Lisboa, Presença, 2000

Teresa Rita Lopes deixou-nos a 14  deste mês de  Junho. Construiu uma obra valiosa sobre Fernando Pessoa . Era a autoridade mais forte da obra pessoana. 
Neste espaço , editamos muitos dos seus textos e   poemas . É uma notável poeta. 
Hoje , apresentamos um dos muitos artigos que se escreveram sobre a sua morte, antecedido por um registo em vídeo , divulgado  neste espaço , aquando da publicação do Livro(s) do Desassossego , preparada por esta  muito respeitada especialista na obra de Fernando Pessoa. 
Teresa Rita Lopes afrmava  : ‘O Fernando Pessoa anda por aí todo deturpado’. 
A investigadora já estudara,  então,   27 mil documentos do espólio por mais de uma vez.
Teresa Rita Lopes tem  a nossa  sempre respeitosa gratidão.
Teresa Rita Lopes. Livros do desassossego
por Teresa Carvalho
"Foram décadas a conviver com o poeta dos heterónimos, cujo espólio, não fora o seu dinamismo pioneiro, poderia morar hoje entre paredes britânicas. Em Pessoa investiu a destacadíssima investigadora, também ela poeta, uma incalculável soma de energia. Cingiu-lhe o vulto, trouxe-o até nós, recusou-lhe o fato de corte inglês impecavelmente engomado e envolvido em aura mítica. 
Morreu no passado sábado (14 de Junho de 2025), aos 87 anos, Teresa Rita Lopes, algarvia de Faro, personalidade multifacetada bem conhecida do nosso panorama literário e um nome de forte ressonância para todos os que se interessam pela figura e pela obra de Fernando Pessoa, cuja longa e póstuma vida editorial fica em boa parte a dever-lhe, assim como alguns dos melhores ensaios que sobre a sua obra se produziram. Mas deve-lhe mais: Teresa Rita Lopes, ensaísta, poeta e dramaturga, diversas vezes premiada, sempre se preocupou em dar-nos de Pessoa uma imagem literária que se aproximasse, tanto quanto possível, da realidade, afastada daquele interessante produto de exportação cultural que Pessoa também é, da imagem mítica que continua a alimentar o consumo nacional interno de Pessoa, um escritor que curiosamente, e embora prestando trabalho em várias firmas, nunca arranjou dinheiro para adquirir uma máquina de escrever a que pudesse chamar sua. Tão-pouco terá tido dias triunfais.
Os dois volumes de Pessoa Por Conhecer, editados em 1990, pela Estampa, faziam avultar um Pessoa gente-viva, homem múltiplo. Teresa Rita Lopes sempre se manteve longe da tentação de colocar Pessoa numa mesa de anatomia, dissecá-lo, fragmentá-lo. Bem ao contrário. “O que se impõe – sublinhou – se não nos contentarmos apenas com publicações avulsas de inéditos para alimento de uma superficial ânsia de novidade, é ouvir o palpitar da obra pessoana no seu corpo inteiro”.
Atenta ao corpo mas também ao traje, preocupava-a a imagem com que Pessoa pudesse surgir em público; desagradava-lhe a ideia de o expor em vestimentas pouco adequadas à sua natureza pudica. Tanto assim que, contrariando a tendência de alargamento do Livro do Desassossego pelos seus sucessivos editores, dele retirou textos que, em sua opinião, aí tinham sido colocados indevidamente. Mais: excluiu rascunhos lacunares, pedaços de textos, anotações de ideias súbitas a desenvolver depois. “Misturar, no mesmo livro, textos acabados e cuidados pelo autor com rascunhos e notas é comparável a juntar, na exposição de um pintor, esboços incipientes, apontamentos e outras experiências, com quadros acabados, sem sequer os por à parte. Mudando de metáfora – continuava a investigadora – editar, ao lado de textos preparados por Pessoa para aparecer em público, outras manifestações da sua intimidade ainda em trajes menores, causa-me sempre o incómodo de estar a expô-lo em chinelas e pijama.” Por outro lado, na sua edição do Livro(s) do Desassossego (no plural), publicada em 2015, insurgiu-se contra a ideia, defendida nomeadamente por Richard Zenith, de que estamos na presença de um anti-livro, sem estrutura nem a inteireza a que aspirava.
Sobre Pessoa trabalhou, ora em solidão, ora acompanhada por equipas de investigadores que sob sua orientação se dedicaram à obra inédita do poeta dos heterónimos. Os inícios não terão sido fáceis, se pensarmos no processo redatorial de Pessoa, nos seus dactiloscritos e nesses tempos de dossiês às resmas, consultados um a um, folhas soltas, papeis a esmo e ciência informática curta, ainda alheia a micro-filmes que viriam facilitar muito a vida aos estudiosos. Note-se que, a professora começou a frequentar o espólio, e a construir/reconstituir esse “romance-drama-em-gente” ainda em casa da irmã do Poeta, a Sr.ª D. Henriqueta Madalena, corria o ano de 1969.
Dizia-se uma mulher de esquerda interior, uma cidadã militante da pátria de língua portuguesa – a mesma com que Pessoa sonhou. Desta sua orientação falar-nos-iam suficientemente toda uma vida dedicada ao estudo e à Cultura, com intervenções públicas de natureza diversa, a Ordem do Desassossego com que foi agraciada pela Casa Fernando Pessoa, em 2013, mas também a sua obra de criação literária, com zonas onde sobressai uma postura interventiva que se expressa ora através de um olhar feminino aberto à possibilidade de um renascer melhorado (A Proibida Azul Distância, 1991, teatro), ora por meio de uma avaliação decetiva do tempo, cujo rosto não hesitava em pôr a descoberto: «o rosto ranhoso do mundo presente».
Quando, em 1987, Teresa Rita Lopes publica o seu primeiro livro de poemas, Os Dedos os Dias as Palavras, há já muito mantinha um trato intenso com Fernando Pessoa, esse poeta absorvente que faz algumas aparições no muito povoado universo poético da escritora, tendo nele um papel a jogar. Se há poemas em que Pessoa surge aprisionado num parênteses ou num retrato, a servir de mero esconderijo a uma osga, noutros converte-se numa espécie de alvo-móvel da sua impiedosa ironia. É o que sucede num poema do livro Afectos, “Bencinha meus padrinhos brasileiros”, um texto importante por conter a genealogia literária que implicitamente Teresa Rita Lopes elege para si: “Bem que vocês/ podiam ter abrasileirado um pouco o nosso Fernando / Pessoa/  a quem o padrinho Drummond dedicou um soneto./ Isto é: bem que vocês lhe podiam ter tirado aquele/ fato preto/ (ria à vontade, que eu sei que vocês dizem/ «terno» …) […] Talvez/ se tivesse desfeito daquela roupa toda/ com que – demasiado! – se vestia: terno, colete,/ gravata, chapéu – até polainas! […] mas basta de Pessoa!”
A Pessoa cabem ainda outros papéis, nem sempre simpáticos. Da leitura da totalidade dos poemas que acolhem Pessoa, fica a sensação de que ele foi uma espécie de sujeito de culpa, quer da sua tardia revelação poética, quer da intermitência com que os seus livros de poemas vinham a público. Pessoa é responsabilizado pelo facto de as arcas da autora, com muitos inéditos sequer passados a limpo,  terem ficado encostadas por causa da outra  arca.
A sua poesia, preferia-a “caseira/ poesia feita à mão/ como os gestos de minha Mãe/ a fazer fofo pão filhós/ e renda … às vezes”. No poema-posfácio que incluiu numa antologia poética organizada por Catherine Dumas em 2006, lançava a autora, dessa altura da vida, um olhar ao trajecto percorrido, manifestando desprezo por números e montantes, aí confidenciando ao leitor que nunca os seus gestos foram comandados pela “avidez do quanto”, o da sua poesia incluído. Nela o menos é mais: «Os meus versos/ assim os quero:/ um cestinho de figos/ para presentear os amigos».
Também na obra dramática, como testemunha Esse Tal Alguém, Grande Prémio de Teatro da APE 2001, Pessoa faz a sua aparição. O seu Teatro Reunido (IN-CM, 2007) arquiva peças em que as personagens, cada uma a seu modo, “brincam à vida”, a única forma de redenção possível, segundo a autora.
Testemunha resistente da Ditadura que em Portugal viveu até 1963, ano em que, perseguida por ela, se exila em Paris, ao ensino, primeiro na Universidade da Sorbonne Nouvelle, depois na Universidade Nova de Lisboa, em cuja fundação tomou parte, Teresa Rita Lopes aliou harmoniosamente o ensaísmo e a crítica literária, construindo uma obra sólida, de uma comunicabilidade límpida que se tornou num bem escasso em meio académico. Nela avulta a sua personalidade criadora, a sua lucidez e atenção acesa, mas também o seu rigor, presente quer nos estudos de vulto centrados em Pessoa (mas também em Torga), quer nos textos de mais reduzida dimensão, do ensaio à comunicação académica, da recensão ao prefácio, do artigo de jornal ao post.  O mesmo rigor e empenho colocou-os no Instituto de Estudos sobre o Modernismo, que fundou e dirigiu.
Do academismo de “fato escovado, bem posto, bem calçado”, devidamente protegido em protocolar carapaça, tomou sempre a professora conveniente distância. A convivência continuada com Pessoa  terá sido facilitada por um apurado sentido de humor, de nuances várias, e um comum sentido lúdico, que terá levado Pessoa a atribuir a dois dos seus heterónimos nomes que, abreviados, mergulharam os investigadores em equívocos que hoje nos divertem (é o caso de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos – A. C., ambos) e Teresa Rita Lopes a congeminar, num poema de Os Dedos os Dias as Palavras, uma tropelia a essa espécie séria de académicos importantes, e em que talvez Pessoa aceitasse tomar parte : “meter-lhes/ um rato/ no sapato”
Teresa Carvalho,  em artigo publicado no Jornal I, em 17.06.2025

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