quinta-feira, 26 de junho de 2025

No dia da cor vermelha


No dia da cor  vermelha
por Maria José Vieira de Sousa 
                                      
                          Mistério , vai-te, esmagas-me! Ah, partir
                          Esta cabeça contra aquele muro.
                                   Fernando PessoaFausto  
                                     
                          Faire un bon usage des maladies
                                     Pascal
 
Ainda não tinha vestido totalmente o vermelho , já os gritos lhe chegavam. Ouviam-se distintamente. Seria fácil localizá-los. Gritos estrídulos, misturados com o retinir do metal e o silvo  de imprecações, espalhando-se sem ordem e rigor. E eis que apareciam algumas palavras. Erguiam- se em altaneiro porte, estrebuchando conflito, apesar de  minadas pela doença que lhes deformava o corpo e  dominava a mente.
Volúpia. Dinheiro. Insurreição. Ganância . Soberba. Lucro. Uma plataforma de  palavras  afins , organizada em hordas cruéis a subjugar outras de significantes mais nobres. Esgrimiam-se apesar da beleza que o encarnado, o vermelho pode incorporar.
O tempo da riqueza pela riqueza enchera  as cabeças de cifrões. E era do dinheiro o maior poder. O maior  sortilégio daquele  tempo. Como estancar tal perfume ?
Enquanto discorria, as palavras sucumbiam  em aflitiva luta pela sobrevivência. O jugo das mais fortes oprimia as mais discretas, as mais límpidas, embora estas não se permitissem morrer.  Gritavam em surdina, em nítido contraste com a estridência dos opressores que enchia o ar.
Começaria pela fome, pela pobreza, pelo desespero, pelo desemprego, pelo abandono, pela velhice, pela natalidade, pela saúde, pela paixão, pela  felicidade. Todas eram importantes. Todas acorriam à sua passagem numa súplica justificada . Escapava-lhe, porém, a mais valiosa. Aquela que seria capaz de redimir, aquela cuja força regeneradora era reconhecida : a Dignidade.
Ainda não a vira. Não a distinguira entre os gritos. Onde estaria? Que seria dela? Procurou-a. 
Ofegante, inanimada esmorecia com o peso da ganância que a violentava num esforço heroico, enquanto as forças ainda lhe pertenciam. Numa Travessa  sem nome, estavam em titânica desvantagem. A ganância era um manto púrpura a esmagar  a túnica vermelha da Dignidade.  Que fazer perante tão rude inconformidade?
Socorreu-se dos sons  e fez ouvir Wagner. O triunfo  exige sempre um  faustoso manto. O poder da ilusão prevalece nos espíritos néscios onde reina a ganância.
Fiel à força da sedução, da vã glória, o  manto ergueu-se e a     dignidade libertou-se daquele vil peso. Vinha combalida, desgastada pelo espezinhamento constante dos poderosos que, de ganância em ganância, tinham transformado  o mundo num mercado de agiotas.
Mundo onde os nomes eram  traduzidos por algarismos  e as palavras esqueciam a força da nomeação. Mundo onde os adjectivos se colavam  aos números como cola que pega e se acomoda em  território alheio.
Ao afinar aquela  palavra, seria como recuperar a alma adormecida  da humanidade, como restabelecer  o primeiro direito universal do Homem.
Concentrou-se. Começou a afiná-la. Agora, já era o génio de  Mozart que se ouvia. Quando afinava as palavras trazia a música nos ouvidos. Que  poder tinham os sons. Os movimentos molto allegro e andante da Sinfonia nº 40 ressoavam e imperavam . Como o contagiavam em inspiração e perícia.
Redesenhou, limpou, envernizou, curou  aquela enorme palavra.
Num longo vestido vermelho vivo, ela olhou-o e sorriu-lhe deslumbrante. E  com ela de pé,  firme e robusta , outras vieram animadas pela metafísica, pela semântica, pela música de Mozart ou pela simbologia do vermelho que nunca deixa de acolher  quem vem por  bem.
Todas as palavras que  se solidarizavam , que se irmanavam  chegavam  céleres. Apresentavam-se radiosas , vestidas no mais brilhante  vermelho renovado. Vinham em fraterna celebração,  coligadas por uma profunda comunhão identitária.
Ao restaurar a Dignidade , tudo se precipitara. Tudo se congregara.  
Naquele dia, o caminho estava feito. 
Maria José Vieira de Sousa, in O Afinador de Palavras, 2016, pp.6,7
 
Mozart's Symphony No. 40 in G Minor, K. 550, I.
Molto Allegro pela Tbilisi Symphony Orchestra.

2 comentários:

  1. Minha forma de afinar as palavras, sobretudo na busca da poesia, sempre passaram pelo azul. Essa cor me inspira sentimentos de busca e de encontro com alguma forma de beleza e imensidão seja relembrando o mar, seja contemplando o céu. Nada me conduz ao vermelho e me lembro apenas de Julien Sorel, esse ambicioso personagem em busca de um uniforme vermelho para acender socialmente na França do século XIX.

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  2. Este texto faz parte de um conjunto de textos que , em alegoria, traduz uma cor que veste a(s) palavra(s) em cada dia. Num mundo em agonia, O Afinador de Palavras tenta recuperá-las numa afincada luta contra ao tempo. Trata-se de uma pequena e despretensiosa reflexão. O dia da cor azul também existe como o da cor preta que encerra este conjunto de pequenos textos . É nesse dia que "Le noir et le rouge" de Stendhal é evocado por causa do fascínio de Julien Sorel pelo vermelho da farda militar. Na primeira metade do século XIX, o preto era o irmão do vermelho – a cor da sotaina eclesiástica ou o vermelho da farda militar. Preto como negrume de alma, o ódio que replica da cor do sangue, a cor do amor, da paixão que Stendhal imortalizou.
    No dia da cor azul , o sonho cumpre--se ao ser recuperada a palavra Liberdade.
    Obrigada, poeta, pelas magníficas palavras.

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