segunda-feira, 30 de junho de 2025

Pensamentos do Filósofo


A verdade vem como conquistador apenas porque nós perdemos a arte de recebê-la como hóspede.
Rabindranath Tagore

Transformai uma árvore em lenha que ela arderá; mas, a partir de então, não dará mais flores, nem frutos.
Rabindranath Tagore

Lemos o mundo às avessas e queixamo-nos de não o compreender.

Rabindranath Tagore

O maior, o poder infinito de Deus, não está na tempestade, mas na brisa.
Rabindranath Tagore


Denean em "Ray of Love" , do Album: The weaving 1993  
 Ray of Love
 Shine through me
 Weave through my being...
 Harmony Make the fiber... 
Strong and pure 
Voice of truth... 
May we hear 
On wings of light... 
May we fly 
Soar with angels... in the sky 
Weaving dreams... 
Behold the sight
 Ray of love 
Shine through me 
Sing sweet Spirit... Harmony.
Denean; Cd: "The Weaving"; Gravadora: Etherean Music

domingo, 29 de junho de 2025

Ao Domingo Há Música

A Paz 

A paz invadiu o meu coração
De repente me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais

(...)

Eu pensei em mim, eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição, só a guerra faz
Nosso amor em paz
Gilberto Gil


Neste tempo tão crispado, trazer a paz nem que  continue a ser  a utopia que , ao longo dos séculos, o Homem perseguiu e arrasou, é um deleite que se impõe.  Colorir um dia de muita esperança  tem sido algumas das apostas que muitos cantores têm feito.
Eis algumas que nos deleitaram.

Marisa Monte e Gilberto Gil , em  A Paz.
 
Noa e Mira Awad,  cantoras e compositoras , uma  israelita e outra árabe-israelita, juntaram- se no concerto de beneficiência “Together for humanity", no Berlin Philharmonica, em  Dezembro de 2023 , para esta belíssima actuação.

A Paz

A paz invadiu o meu coração
De repente me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais

A paz fez um mar da revolução
Invadir meu destino, a paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz

Eu pensei em mim, eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição, só a guerra faz
Nosso amor em paz

Eu vim, vim parar na beira do cais
Onde a estrada chegou ao fim
Onde o fim da tarde é lilás
Onde o mar arrebenta em mim
O lamento de tantos ais

A paz invadiu o meu coração
De repente me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais

A paz fez um mar da revolução
Invadir meu destino, a paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz

Eu pensei em mim, eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição, só a guerra faz
Nosso amor em paz

Eu vim, vim parar na beira do cais
Onde a estrada chegou ao fim
Onde o fim da tarde é lilás
Onde o mar arrebenta em mim
O lamento de tantos ais
A paz
Gilberto Gil/João Donato

sábado, 28 de junho de 2025

América, América


AMÉRICA, AMÉRICA
por Eugénio Lisboa

Eu tremo pelo meu país quando penso que Deus é justo.
          Thomas Jefferson

“O poeta Heinrich Heine disse um dia esta coisa tremenda: “Quando, à noite, penso na Alemanha, perco o sono.” Tinha razão e o que depois foi acontecendo na Europa mostrou que o poeta era também um muito credível profeta. Thomas Jefferson, que cito em epígrafe, parece também ter perdido o sono, ao pensar numa justiça transcendente que porventura visitasse o seu país. Ele lá sabia. Jefferson foi, como se sabe, um estadista americano, advogado, diplomata, arquitecto, filósofo e veio a ser o terceiro Presidente dos EUA, sendo hoje considerado um dos dez melhores, no cargo. Foi também o fundador da Universidade da Virgínia. Na sua redacção da Declaração de Independência condenou o negócio da escravatura e, em 1807, promulgou uma lei proibindo a importação de escravos, apesar de ele próprio ter sido proprietário de escravos e ter tido vários filhos de uma escrava. Eis um dos sinais das profundas contradições que roem as entranhas deste país poderoso e altamente criativo. O qual, seja dito, em abono da verdade, é o primeiro, na sua arte do cinema e da literatura, a fazer uma implacável crítica aos seus deslizes e mesmo aos seus crimes, dentro e fora de fronteiras. Um só exemplo: Archibald Cox, advogado, Professor de Direito, advogado geral do governo de Kennedy e, mais tarde, Procurador Especial, no escândalo Watergate, não hesitou em fazer esta avaliação contundente do seu próprio país: “Confesso que não consigo compreender como podemos intrigar, mentir, fazer batota e cometer assassinatos no estrangeiro e permanecermos humanos, respeitáveis, dignos de confiança e levados a sério, no nosso país.” Outro exemplo é o do muito conhecido Robert Audrey, dramaturgo e ensaísta, no campo das ciências sociais, que deixou dois clássicos – AFRICAN GENESIS e THE TERRITORIAL IMPERATIVE – e fez esta avaliação dolorosa do comportamento americano: “Na América, imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial, o antissemitismo atingiu cumes nunca antes atingidos, apesar de todas as contribuições nazis para a nossa consciência universal; e a literatura desse período dar-me-á razão.” Não só a literatura, mas também o cinema, que deixou poderosos testemunhos desse ódio milenar.
É desta América, grande na literatura, no cinema, na ciência e na tecnologia, nas artes plásticas, na astronáutica, na música, que nos vêm também, para esta Europa, que logo as absorve, gulosamente, as maiores idiotices ligadas ao politicamente correcto, autoproclamado defensor dos direitos e sensibilidades das minorias. Aí, vale tudo. Os maiores desconchavos e atropelos passam a ser alvo do maior carinho. A discriminação positiva, como solução barata e expedita de um problema real que requer solução mais profunda e dispendiosa, a “purificação” dos textos clássicos feita por leitores “sensíveis”, a introdução obrigatória, nos thrillers, de comandantes de polícia negros a darem ordens firmes a brancos obedientes, que são amigos do coração de uma raça que, aparentemente, nunca os incomodou (qualquer dia, temos um Hamlet negro e filho de um governador negro do Mississipi, amante de uma americana loira e irmã de um Laertes paquistanês) – tudo isto é o pão que quotidianamente nos chega da América de Mark Twain, de Henry James, de O. Henry, de Eugene O’Neill, de Faulkner, de Dorothy Parker e Robert Benchley, de Tennessee Williams, de Hemingway, de Phillip Roth, que devem estar a dar voltas no túmulo a pensarem no que esperam as suas obras, entregues às mãos dos “purificadores” castrados. Vou só dar um exemplo muito recente e termino. Um muito conhecido editor americano recusou recentemente publicar um romance, alegando ser impossível fazê-lo pelo facto de o protagonista ser branco e heterossexual. De facto, era uma verdadeira afronta ao politicamente correcto. Já o grande Jorge de Sena, há cerca de cinquenta anos, dizia que a melhor hipótese de um jovem sem grande mérito ter acesso a uma universidade americana, aproveitando da discriminação positiva, era ser negro, zarolho e lésbico. Pascal tinha razão: há que saber fazer um bom aproveitamento das doenças, sendo aqui “doença” pura metáfora operatória para “desvantagem” (não vão os leitores “sensíveis” crucificar-me, e eu não tenho vocação para Cristo!)”
Eugénio Lisboa, em 05.09.2023

Portugueses na Academia do Cinema de Hollywood

Realizador português Miguel Gomes e Fernanda Torres convidados para integrar Academia de Hollywood
"O realizador português Miguel Gomes está entre os 534 mais recentes convidados para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, anunciou a organização que entrega os Óscares em Hollywood.
A Academia - que reúne cerca de 10.500 membros a nível mundial em 19 ramos técnicos - referiu que os convites foram feitos a "artistas e executivos que se distinguiram pelos seus contributos para o cinema".
"Através do seu compromisso para com a criação cinematográfica e para com a indústria do cinema em geral, estes indivíduos excecionalmente talentosos deixaram contributos indeléveis para a nossa comunidade global", afirmaram o presidente executivo da Academia, Bill Kramer, e a presidente da instituição, Janet Yang.
A lista de 534 convidados inclui ainda várias figuras do cinema brasileiro, desde a atriz Fernanda Torres à figurinista Claudia Kopke, passando pelos realizadores Daniel Filho e Gabriel Mascaro ou a produtora Maria Carlota Bruno.
Também o espanhol Albert Serra, que tem realizado vários filmes com coprodução portuguesa, integra a lista de convidados.
Miguel Gomes junta-se a um seleto grupo de portugueses que foram convidados no passado, como a diretora de 'casting' Patrícia Vasconcelos, os produtores Bruno Caetano e Luís Urbano ou os realizadores Abi Feijó, João González, Mónica Santos e Regina Pessoa.
Nascido há 53 anos em Lisboa, Miguel Gomes tem levado o cinema português e os seus retratos de Portugal além-fronteiras, junto da crítica internacional, mas também dos júris dos festivais.
No ano passado, com o filme "Grand Tour", venceu o prémio de melhor realizador no festival de Cannes, distinção conquistada por um cineasta português pela primeira vez.
Miguel Gomes soma vários outros prémios em festivais internacionais, nomeadamente o prémio da crítica do festival de Berlim com "Tabu" (2012), o prémio de melhor realizador (repartido com Maureen Fazendeiro) no Festival Mar del Plata (Argentina) com "Diários de Otsoga" (2021) e o prémio especial do júri em Guadalajara (México) com "Aquele querido mês de agosto" (2009).
Sobre o próximo filme, com produção de Uma Pedra no Sapato, já se sabe que se intitula "Selvajaria" e é inspirado no livro "Sertões", do escritor brasileiro Euclides da Cunha, que Miguel Gomes considera "um dos melhores livros de sempre escritos em português".
Fonte: LUSA | 26 de junho de 2025

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Páginas inéditas de um Diário

A escrita diarística de Eugénio Lisboa , além de pródiga, é um excelente painel de informação sobre o Mundo. Um mundo que Eugénio Lisboa conhecia bem e sabia decifrar. Extremamente culto,  lúcido, meticuloso imprimia a cada apontamento a clareza,  que tanto prezava, numa clarividência de excepcionalidade.
Eis algumas páginas do V volume , dessa magnífica obra diarística, Aperto Libro. 

S. Pedro, 01.06.2019 – O Público anuncia hoje o programa de celebrações do cinquentenário da morte de José Régio. Entre as efemérides anunciadas, figura aquilo a que chama a “biografia” de Régio, de minha autoria. Referem-se ao livro José Régio – A Obra e o Homem, o qual é muito mais e muito menos do que uma biografia. Uma grande fatia do livro é uma análise profunda da obra e pouco tem que ver com biografia, a qual ocupa um espaço pequeno do livro. Mas agora que alguém lhe chamou, desastradamente, “biografia”, o livro passará a ser, para sempre, biografia. Uma vez posta a circular a asneira, esta faz lei e passa a vigorar como verdade aceite. Não há volta a dar-lhe.
(...)

S. Pedro, 09.06.2019 – Obiang, o energúmeno da Guiné Equatorial, diz que não vai abolir a pena de morte “de uma penada”. O que quer dizer, em bom português, que vai arrastar os pés indefinidamente e não a vai abolir de todo. Em face desta óbvia bofetada, a missão de acompanhamento fez uma avaliação dos progressos feitos pela Guiné Equatorial “entre o satisfatório e o bom”. É o que se chama ser cuspido e agradecer. A CPLP devia ter vergonha do que se está a passar. Nunca tive grande respeito por esta organização. Actualmente, não tenho nenhum.

S. Pedro, 10.06.2019 – Parece que, neste 10 de Junho, celebrado em Portalegre, nem o orador oficial (João Miguel Tavares), que é natural daquela cidade, nem o Presidente da República fizeram a mais pequena alusão a José Régio que, além de ali ter sido professor, é um grande poeta, que nos deu a belíssima “Toada de Portalegre” e o grande poema camoniano, “Sarça Ardente”. É o que se chama perder uma bela oportunidade.

(...)

S. Pedro, 19.06.2019 – Vitor Constâncio foi ontem ouvido, pela segunda vez, pela Comissão Parlamentar de Inquérito. E, como é seu costume, argumentou que, em relação às actuações de Berardo, no sentido de comprar acções do BCP com um empréstimo de 350 milhões de euros feito pela CGD, ele, Constâncio não podia fazer nada porque a lei o não permitia. Já quando foi do caso escandaloso do BPN, Constâncio não fez nada – e o resultado foi uma colossal catástrofe, que ainda hoje estamos a pagar. Constâncio nunca pode fazer nada, a não ser, segundo diz, cumprir escrupulosamente a lei. Ontem, o deputado Duarte Alves, do PCP, observou com alguma justiça: “O senhor acaba de nos dar uma interpretação muito eloquente da inutilidade da supervisão.” A regra de conduta de Constâncio é esta: não fazer nada, não actuar, não se comprometer. Quando eu estava para ser nomeado conselheiro cultural da embaixada de Portugal, em Londres, e Constâncio era Ministro das Finanças, só faltava a assinatura dele no processo da minha nomeação. Pois ele preparava-se para não assinar, deixando passar 30 dias, acabando eu por ser nomeado por omissão. Foi preciso um funcionário superior daquele ministério, meu amigo, ter feito ver a Vitor Constâncio que um conselheiro de embaixada não se nomeia por omissão. E lá assinou. Constâncio é assim mesmo: um timorato, um homem que prefere sempre não fazer nada.
 
S. Pedro, 23.06.2019 – Ontem, lá fui levar um livro e um abraço de parabéns ao meu amigo Brotas, pelos 89 anos dele. Continua alerta, embora ligeiramente tocado pela doença de Parkinson. Andámos juntos no Instituto Superior Técnico e, depois, pela vida fora, cada um com a sua diáspora, fomos mantendo o contacto que foi possível. Agora, com 89 anos, estamos ambos “à espera”.
 
S. Pedro, 24.06.2019 – Vem-me à lembrança o meu velho amigo, Alberto Parente, dos velhos tempos de Lourenço Marques. Vi-o, algumas vezes, depois do nosso regresso de Londres. Depois, nunca mais conseguimos contactar com ele, por mais que tentássemos. Terá morrido? Mais do que provavelmente. Sofria de algumas doenças graves e levava uma vida solitária e triste. Assim vamos largando, pela vida fora, os marcos da nossa existência. O Alberto Parente! Que, em Lourenço Marques, aluno do liceu e meu colega de turma, tinha uma produção poética abundante, diária, e certificadamente “modernista” (quando me dava a ler um novo poema, no final de o ter lido, perguntava-me, ansioso: “É modernista, não é?”) Casou com uma prima, que conheceu em Lisboa, quando para cá veio estudar e que namorou longa e arrastadamente. Muito mais tarde, já de regresso a Lourenço Marques, já médico e com filhos, verificou que ela era psicótica. Acabaria por se suicidar, depois de ter dado ao Alberto uma vida infernal. Um filho de ambos, também psicótico, acabaria igualmente por se suicidar. Pergunto: terá isto alguma coisa que ver com os nossos tempos felizes de Lourenço Marques? Trocando livros, descobertas e emoções? Prevendo, desenvoltamente, um futuro de êxitos, triunfos e glórias?... Será que os deuses se divertem connosco?
 
S. Pedro, 26.06.2019 – Cada vez me entendo menos com a linguagem abstrusa dos nossos líteras encartados. No último número do JL, esta pérola do prolífico e muito festejado Gonçalo M. Tavares: “Em Maria Velho da Costa vemos outra coisa, algo da ordem da altitude: o colocar da linguagem a sobrevoar os acontecimentos.” Dou um doce ou mesmo um saco de doces a quem me explicar o que é isto da “linguagem a sobrevoar os acontecimentos”. O imensamente galardoado e traduzido Gonçalo é pródigo em “trouvailles” deste jaez: coisas imensamente inesperadas e imensamente despidas de qualquer sentido. Aliás, muitos dos nossos literatos dizem abundantemente n’importe quoi sur n’importe qui à propos de n’importe quoi. Vale tudo – o importante é ser “giro” e “original”. Fazer sentido é irrelevante – e antiquado. No fim, até há muitos autógrafos.
Um estudo revela que os filhos de pais mais afluentes e com mais estudos dominam os melhores cursos. Há sempre, é claro, excepções. Em Lourenço Marques, embora eu viesse de uma família de parcos meios financeiros, fui sempre um dos melhores alunos e, a partir de certa altura, o indiscutível “urso” de todo o liceu. O curioso e, para mim, um pouco doloroso, foi a atitude de alguns colegas de curso que dificilmente aceitavam que um aluno “pobre” (sem dinheiro para comprar bons equipamentos e livros) pudesse ser o “urso” do curso e do liceu. Se fosse “rico” ainda se podiam agarrar ao conforto de uma “explicação”: a de que a afluência financeira poderia ajudar a compreender os melhores resultados, devido à excelência dos materiais escolares e do auxílio dos “explicadores”. Mas que um aluno obviamente desprovido desses meios se alcandorasse ao lugar mais alto – incomodava alguns dos meus colegas. Olhavam-me com evidente desconfiança e algum rancor. O género humano, em geral, não é amável.
Ando a reler a correspondência entre Jorge de Sena e Eduardo Lourenço. O que Sena e Lourenço dizem, muito contentes, da Presença – é profundamente errado e facilmente contestável. Tudo motivado, no caso de Sena, por um irreprimido ciúme e algum ressentimento, e, no caso de Lourenço, por um infeliz oportunismo. Sena, com toda a sua grandeza, nunca perdoou a Régio a celebridade que este gradualmente conquistara; Lourenço atacou a Presença, numa altura em que renderia juros fazê-lo. Em qualquer dos casos, a motivação não foi bonita. Mas quem disse que o mundo da literatura é um mundo onde sopra o sagrado?

S. Pedro, 27.06.2019 – Hoje, a minha neta Emma – a mais nova das minhas netas – faz 22 anos. Em Londres. Enviei-lhe, de manhã, um mail a dar-lhe os parabéns. Ainda me recordo de a ter ido ver, recém-nascida, em Barcelona. Há 22 anos! A Maria Antonieta encontrava-se lá, a dar apoio à Geninha. Foi sempre uma boa mãe. Nessa altura, a Emma estava, literalmente, presa à vida por um fio. Hoje é uma escorreita e linda menina. Vamos ficando horrorosamente antigos.
Telefonou-me, dos Açores, o Vamberto de Freitas. Terminou a recensão crítica do meu livro Uma Conversa Silenciosa. E diz-me que, inspirado por mim, se meteu à leitura de um “thriller” de não-ficção: O Espião e o Traidor. Este “inspirado por mim” refere-se às passagens (repetidas) do meu diário, em que me meto com o Vergílio Ferreira, de cada vez que enceto a leitura de um policial ou de um “thriller”, notando que era esse um tipo de leitura que o autor de Aparição nunca faria… Para ele, só de Hegel para cima: quanto mais nebuloso, melhor. Para alguns literatos da nossa praça, o nevoeiro é sintoma de profundidade. “
Eugénio Lisboa, in Aperto Libro V 

quinta-feira, 26 de junho de 2025

No dia da cor vermelha


No dia da cor  vermelha
por Maria José Vieira de Sousa 
                                      
                          Mistério , vai-te, esmagas-me! Ah, partir
                          Esta cabeça contra aquele muro.
                                   Fernando PessoaFausto  
                                     
                          Faire un bon usage des maladies
                                     Pascal
 
Ainda não tinha vestido totalmente o vermelho , já os gritos lhe chegavam. Ouviam-se distintamente. Seria fácil localizá-los. Gritos estrídulos, misturados com o retinir do metal e o silvo  de imprecações, espalhando-se sem ordem e rigor. E eis que apareciam algumas palavras. Erguiam- se em altaneiro porte, estrebuchando conflito, apesar de  minadas pela doença que lhes deformava o corpo e  dominava a mente.
Volúpia. Dinheiro. Insurreição. Ganância . Soberba. Lucro. Uma plataforma de  palavras  afins , organizada em hordas cruéis a subjugar outras de significantes mais nobres. Esgrimiam-se apesar da beleza que o encarnado, o vermelho pode incorporar.
O tempo da riqueza pela riqueza enchera  as cabeças de cifrões. E era do dinheiro o maior poder. O maior  sortilégio daquele  tempo. Como estancar tal perfume ?
Enquanto discorria, as palavras sucumbiam  em aflitiva luta pela sobrevivência. O jugo das mais fortes oprimia as mais discretas, as mais límpidas, embora estas não se permitissem morrer.  Gritavam em surdina, em nítido contraste com a estridência dos opressores que enchia o ar.
Começaria pela fome, pela pobreza, pelo desespero, pelo desemprego, pelo abandono, pela velhice, pela natalidade, pela saúde, pela paixão, pela  felicidade. Todas eram importantes. Todas acorriam à sua passagem numa súplica justificada . Escapava-lhe, porém, a mais valiosa. Aquela que seria capaz de redimir, aquela cuja força regeneradora era reconhecida : a Dignidade.
Ainda não a vira. Não a distinguira entre os gritos. Onde estaria? Que seria dela? Procurou-a. 
Ofegante, inanimada esmorecia com o peso da ganância que a violentava num esforço heroico, enquanto as forças ainda lhe pertenciam. Numa Travessa  sem nome, estavam em titânica desvantagem. A ganância era um manto púrpura a esmagar  a túnica vermelha da Dignidade.  Que fazer perante tão rude inconformidade?
Socorreu-se dos sons  e fez ouvir Wagner. O triunfo  exige sempre um  faustoso manto. O poder da ilusão prevalece nos espíritos néscios onde reina a ganância.
Fiel à força da sedução, da vã glória, o  manto ergueu-se e a     dignidade libertou-se daquele vil peso. Vinha combalida, desgastada pelo espezinhamento constante dos poderosos que, de ganância em ganância, tinham transformado  o mundo num mercado de agiotas.
Mundo onde os nomes eram  traduzidos por algarismos  e as palavras esqueciam a força da nomeação. Mundo onde os adjectivos se colavam  aos números como cola que pega e se acomoda em  território alheio.
Ao afinar aquela  palavra, seria como recuperar a alma adormecida  da humanidade, como restabelecer  o primeiro direito universal do Homem.
Concentrou-se. Começou a afiná-la. Agora, já era o génio de  Mozart que se ouvia. Quando afinava as palavras trazia a música nos ouvidos. Que  poder tinham os sons. Os movimentos molto allegro e andante da Sinfonia nº 40 ressoavam e imperavam . Como o contagiavam em inspiração e perícia.
Redesenhou, limpou, envernizou, curou  aquela enorme palavra.
Num longo vestido vermelho vivo, ela olhou-o e sorriu-lhe deslumbrante. E  com ela de pé,  firme e robusta , outras vieram animadas pela metafísica, pela semântica, pela música de Mozart ou pela simbologia do vermelho que nunca deixa de acolher  quem vem por  bem.
Todas as palavras que  se solidarizavam , que se irmanavam  chegavam  céleres. Apresentavam-se radiosas , vestidas no mais brilhante  vermelho renovado. Vinham em fraterna celebração,  coligadas por uma profunda comunhão identitária.
Ao restaurar a Dignidade , tudo se precipitara. Tudo se congregara.  
Naquele dia, o caminho estava feito. 
Maria José Vieira de Sousa, in O Afinador de Palavras, 2016, pp.6,7
 
Mozart's Symphony No. 40 in G Minor, K. 550, I.
Molto Allegro pela Tbilisi Symphony Orchestra.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Viajar até Madagascar

A África tem isto  é enorme:
ali, nunca se fica apertado.
Mesmo quando parece que ela dorme,
há nela um grande fogo agastado!
Eugénio Lisboa, África Minha - Sonetos Modo de Usar

  
Wonders of Madagascar | The Most Amazing Places in Madagascar | 4K

Independência de Madagáscar
(26 de Junho de 1960)
"Madagáscar foi colonizado por humanos pela primeira vez há cerca de 2,000 anos atrás. Os colonos eram ou Indonésios ou pessoas de descendência mista Indonésia e Africana. Os comerciantes Árabes chegaram ao país em meados de 800 ou 900 anos DC, quando se começou a realizar comércio ao longo da costa do norte.
.
O primeiro europeu a chegar a Madagáscar foi o capitão Português Diogo Dias, que encontrou a ilha a 10 de Agosto de 1500, depois de ter perdido o seu curso marítimo para a Índia devido aos ventos. Deu o nome de São Lourenço à ilha. Ao longo desse século, os Portugueses, os Franceses, os Alemães e os Ingleses todos tentaram estabelecer colónias mercantis em Madagáscar. Todos eles falharam devido às condições hostis e devido à defesa feroz dos guerreiros locais Magalasy.
Os Europeus só conseguiram uma posição firme em Madagáscar nos anos tardios do século XVI, quando os piratas governavam a costa leste da ilha. Estes piratas usavam Madagáscar como uma base para atacar navios que traziam mercadorias de volta para a Europa da Índia. No século XVII, os Franceses tentaram estabelecer posições militares na costa leste da ilha, mas falharam de novo. Pelo início do século XIX, a única colónia que os Franceses possuíam
era na ilha de Sainte Marie.
.
Entretanto, durante o século XVII, os Sakalavas da costa do ocidente consagraram o primeiro reino de Madagáscar. Em 1810, os seus rivais, os Merina, fundaram um reino que abrangia a maioria do resto de Madagáscar. O seu rei, Radama I, estabeleceu relações com os ingleses e abriu o país a missionários Ingleses que vieram espalhar a fé cristã pela ilha e que transcreveram para a escrita a língua Malagas. No reinado de Radama, uma espécie de revolução industrial em miniatura trouxe a indústria para a ilha. Após a morte de Radama, foi sucedido pela sua viúva, Ranavalona I, que aterrorizou país durante 33 anos, perseguindo Cristãos, expulsando estrangeiros, executando rivais políticos, e trazendo de volta o costume de matar bebés nascidos em dias considerados de pouca sorte. Depois da sua morte, as relações com a Europa foram restabelecidas
 .
Em 1883, França invadiu Madagáscar e a 1896 já tinha estabelecido por toda a ilha, tendo-se esta tornado numa colónia Francesa. França usou Madagáscar como uma fonte de madeira e especiarias exóticas, como baunilha. Os Malagasy fizeram duas grandes rebeliões contra os Franceses, em 1918 e em 1947, mas o país só voltou a ganhar a sua independência a 26 de Junho de 1960.
Em 1975, Didier Ratsiraka ganhou controle do país. Ele governou Madagáscar como um ditador até ser derrubado em 1991 em consequência de um colapso económico. Ganhou a presidência pouco depois e governou até perder a eleição de 2001. O novo presidente, Marc Ravalomanana, prometeu trazer democracia ao país. Tendo começado por vender iogurtes nas ruas de bicicleta, Ravalomanana construiu um império comercial e tornou-se no homem mais rico de Madagáscar. Em 2005, ainda é presidente e a economia continua a melhorar."
Artigo retirado do "Cais da Memória"

terça-feira, 24 de junho de 2025

Majestosa Angola

Majestic Africa: Angola
Dádiva

Sou mais forte que o silêncio dos muxitos
mas sou igual ao silêncio dos muxitos
nas noites de luar e sem trovões.


Tenho o segredo dos capinzais
soltando ais
ao fogo das queimadas de setembro
tenho a carícia das folhas novas
cantando novas
que antecedem as chuvadas
tenho a sede das plantas e dos rios
quando frios
crestam o ramos das mulembas.


...e quando chega o canto das perdizes
e nas anharas revive a terra em cor
sinto em cada flor
nos seus matizes
que és tudo o que a vida me ofereceu.
Costa Andrade, in Todos os sonhos. Antologia da Poesia Moderna Angolana, Luanda: União dos Escritores Angolanos "Guaches da Vida", 2005
WONDERS OF ANGOLA | Os lugares mais fascinantes de Angola, por Gabe do "Explore Nature Today".

segunda-feira, 23 de junho de 2025

O Mar




O mar


Conheço teu agitado marulho
tua voz de barítono
conheço tua zangada pronúncia
tuas lanças arrojadas pelos braços da tormenta
conheço tua suave dança
na onda calma e inumerável
na crista transformada em súbita canção de espumas
conheço-te na beleza da baía amanhecida
na hora melancólica do crepúsculo
e no teu dorso enluarado.


Me deste a paisagem das águas litorâneas
e a espuma se estendendo sobre a areia
me mostraste a nudez e o encanto das praias solitárias
a preamar e a vazante
e o teu perfil de mastros e gaivotas
me deste a magia do horizonte
uma vela solta ao vento
e um barco de papel para os meus sonhos
mas nunca me mostraste
a extensão azul dos teus domínios
e nem um indício sequer dos teus enigmas.


Marinheiro sem mar e sem destino
nunca pude navegar tuas distâncias.
Deste banquete
me deste apenas o paladar salgado dos meus versos
minha sílaba de sal
e a tua própria essência salpicada entre meus dedos
molécula elementar
unânime cristal
para que na minha dieta imprescindível
eu possa provar teu sabor todos os dias.
                Curitiba, Abril de 2004
Manoel de Andrade, in Cantares, Editora  Escrituras, São Paulo, Brasil

domingo, 22 de junho de 2025

Ao Domingo Há Música

Que é isto que aperta meu peito? Minha alma quer sair para o infinito ou a alma do mundo quer entrar em meu coração?
Rabindranath Tagore

As palavras de Tagore sempre foram sábias. Hoje têm a mesma actualidade. O mundo não deixa de nos apertar o coração. Talvez , por isso,  a música nos faça sonhar, como diz a canção de   Aretha Franklin.
Voltar às grandes vozes e às canções que  nos encantaram é a proposta para este domingo quente de Junho. 

Aretha Franklin,   em I Dreamed A Dream.
Etta James, em  I'd Rather Go Blind (Live).
 
Ray Charles, em A Song for You, acompanhado pela Frankfurt Radio Big Band | Jazz | Soul

sábado, 21 de junho de 2025

Homenagear Teresa Rita Lopes

Teresa Rita Lopes (12.09.1937-14.06.2025)
Quatro auto-retratos

2

Porque será que meus olhos tanto necessitam
de ver mar ao longe?
Ou pelo menos a água
de um rio
para aí cheirar a sua raiz
Se calhar foi por tanto apetecer o azul
da água ao longe
que meus olhos são claros
e por tanto amar o mar
que meus desgostos
se tornaram destemidos e salgados
e têm
o voo a pique das gaivotas
e o grito ácido
dos pássaros marinhos
Teresa Rita Lopes, in Afectos, Lisboa, Presença, 2000

O Mar da Memória


Acarinho cada vez mais essas palavras
que se dizem ou diziam na minha terra
e as pessoas da minha cidade nem conhecem de nome
Fecho os olhos
abandono-me
deixo-as vir
ao de cima de mim
como uma onda
Dão à costa do fundo do mar da memória
Oiço-as na voz da minha Mãe
Teresa Rita Lopes, in Afectos, Lisboa, Presença, 2000

Teresa Rita Lopes deixou-nos a 14  deste mês de  Junho. Construiu uma obra valiosa sobre Fernando Pessoa . Era a autoridade mais forte da obra pessoana. 
Neste espaço , editamos muitos dos seus textos e   poemas . É uma notável poeta. 
Hoje , apresentamos um dos muitos artigos que se escreveram sobre a sua morte, antecedido por um registo em vídeo , divulgado  neste espaço , aquando da publicação do Livro(s) do Desassossego , preparada por esta  muito respeitada especialista na obra de Fernando Pessoa. 
Teresa Rita Lopes afrmava  : ‘O Fernando Pessoa anda por aí todo deturpado’. 
A investigadora já estudara,  então,   27 mil documentos do espólio por mais de uma vez.
Teresa Rita Lopes tem  a nossa  sempre respeitosa gratidão.
Teresa Rita Lopes. Livros do desassossego
por Teresa Carvalho
"Foram décadas a conviver com o poeta dos heterónimos, cujo espólio, não fora o seu dinamismo pioneiro, poderia morar hoje entre paredes britânicas. Em Pessoa investiu a destacadíssima investigadora, também ela poeta, uma incalculável soma de energia. Cingiu-lhe o vulto, trouxe-o até nós, recusou-lhe o fato de corte inglês impecavelmente engomado e envolvido em aura mítica. 
Morreu no passado sábado (14 de Junho de 2025), aos 87 anos, Teresa Rita Lopes, algarvia de Faro, personalidade multifacetada bem conhecida do nosso panorama literário e um nome de forte ressonância para todos os que se interessam pela figura e pela obra de Fernando Pessoa, cuja longa e póstuma vida editorial fica em boa parte a dever-lhe, assim como alguns dos melhores ensaios que sobre a sua obra se produziram. Mas deve-lhe mais: Teresa Rita Lopes, ensaísta, poeta e dramaturga, diversas vezes premiada, sempre se preocupou em dar-nos de Pessoa uma imagem literária que se aproximasse, tanto quanto possível, da realidade, afastada daquele interessante produto de exportação cultural que Pessoa também é, da imagem mítica que continua a alimentar o consumo nacional interno de Pessoa, um escritor que curiosamente, e embora prestando trabalho em várias firmas, nunca arranjou dinheiro para adquirir uma máquina de escrever a que pudesse chamar sua. Tão-pouco terá tido dias triunfais.
Os dois volumes de Pessoa Por Conhecer, editados em 1990, pela Estampa, faziam avultar um Pessoa gente-viva, homem múltiplo. Teresa Rita Lopes sempre se manteve longe da tentação de colocar Pessoa numa mesa de anatomia, dissecá-lo, fragmentá-lo. Bem ao contrário. “O que se impõe – sublinhou – se não nos contentarmos apenas com publicações avulsas de inéditos para alimento de uma superficial ânsia de novidade, é ouvir o palpitar da obra pessoana no seu corpo inteiro”.
Atenta ao corpo mas também ao traje, preocupava-a a imagem com que Pessoa pudesse surgir em público; desagradava-lhe a ideia de o expor em vestimentas pouco adequadas à sua natureza pudica. Tanto assim que, contrariando a tendência de alargamento do Livro do Desassossego pelos seus sucessivos editores, dele retirou textos que, em sua opinião, aí tinham sido colocados indevidamente. Mais: excluiu rascunhos lacunares, pedaços de textos, anotações de ideias súbitas a desenvolver depois. “Misturar, no mesmo livro, textos acabados e cuidados pelo autor com rascunhos e notas é comparável a juntar, na exposição de um pintor, esboços incipientes, apontamentos e outras experiências, com quadros acabados, sem sequer os por à parte. Mudando de metáfora – continuava a investigadora – editar, ao lado de textos preparados por Pessoa para aparecer em público, outras manifestações da sua intimidade ainda em trajes menores, causa-me sempre o incómodo de estar a expô-lo em chinelas e pijama.” Por outro lado, na sua edição do Livro(s) do Desassossego (no plural), publicada em 2015, insurgiu-se contra a ideia, defendida nomeadamente por Richard Zenith, de que estamos na presença de um anti-livro, sem estrutura nem a inteireza a que aspirava.
Sobre Pessoa trabalhou, ora em solidão, ora acompanhada por equipas de investigadores que sob sua orientação se dedicaram à obra inédita do poeta dos heterónimos. Os inícios não terão sido fáceis, se pensarmos no processo redatorial de Pessoa, nos seus dactiloscritos e nesses tempos de dossiês às resmas, consultados um a um, folhas soltas, papeis a esmo e ciência informática curta, ainda alheia a micro-filmes que viriam facilitar muito a vida aos estudiosos. Note-se que, a professora começou a frequentar o espólio, e a construir/reconstituir esse “romance-drama-em-gente” ainda em casa da irmã do Poeta, a Sr.ª D. Henriqueta Madalena, corria o ano de 1969.
Dizia-se uma mulher de esquerda interior, uma cidadã militante da pátria de língua portuguesa – a mesma com que Pessoa sonhou. Desta sua orientação falar-nos-iam suficientemente toda uma vida dedicada ao estudo e à Cultura, com intervenções públicas de natureza diversa, a Ordem do Desassossego com que foi agraciada pela Casa Fernando Pessoa, em 2013, mas também a sua obra de criação literária, com zonas onde sobressai uma postura interventiva que se expressa ora através de um olhar feminino aberto à possibilidade de um renascer melhorado (A Proibida Azul Distância, 1991, teatro), ora por meio de uma avaliação decetiva do tempo, cujo rosto não hesitava em pôr a descoberto: «o rosto ranhoso do mundo presente».
Quando, em 1987, Teresa Rita Lopes publica o seu primeiro livro de poemas, Os Dedos os Dias as Palavras, há já muito mantinha um trato intenso com Fernando Pessoa, esse poeta absorvente que faz algumas aparições no muito povoado universo poético da escritora, tendo nele um papel a jogar. Se há poemas em que Pessoa surge aprisionado num parênteses ou num retrato, a servir de mero esconderijo a uma osga, noutros converte-se numa espécie de alvo-móvel da sua impiedosa ironia. É o que sucede num poema do livro Afectos, “Bencinha meus padrinhos brasileiros”, um texto importante por conter a genealogia literária que implicitamente Teresa Rita Lopes elege para si: “Bem que vocês/ podiam ter abrasileirado um pouco o nosso Fernando / Pessoa/  a quem o padrinho Drummond dedicou um soneto./ Isto é: bem que vocês lhe podiam ter tirado aquele/ fato preto/ (ria à vontade, que eu sei que vocês dizem/ «terno» …) […] Talvez/ se tivesse desfeito daquela roupa toda/ com que – demasiado! – se vestia: terno, colete,/ gravata, chapéu – até polainas! […] mas basta de Pessoa!”
A Pessoa cabem ainda outros papéis, nem sempre simpáticos. Da leitura da totalidade dos poemas que acolhem Pessoa, fica a sensação de que ele foi uma espécie de sujeito de culpa, quer da sua tardia revelação poética, quer da intermitência com que os seus livros de poemas vinham a público. Pessoa é responsabilizado pelo facto de as arcas da autora, com muitos inéditos sequer passados a limpo,  terem ficado encostadas por causa da outra  arca.
A sua poesia, preferia-a “caseira/ poesia feita à mão/ como os gestos de minha Mãe/ a fazer fofo pão filhós/ e renda … às vezes”. No poema-posfácio que incluiu numa antologia poética organizada por Catherine Dumas em 2006, lançava a autora, dessa altura da vida, um olhar ao trajecto percorrido, manifestando desprezo por números e montantes, aí confidenciando ao leitor que nunca os seus gestos foram comandados pela “avidez do quanto”, o da sua poesia incluído. Nela o menos é mais: «Os meus versos/ assim os quero:/ um cestinho de figos/ para presentear os amigos».
Também na obra dramática, como testemunha Esse Tal Alguém, Grande Prémio de Teatro da APE 2001, Pessoa faz a sua aparição. O seu Teatro Reunido (IN-CM, 2007) arquiva peças em que as personagens, cada uma a seu modo, “brincam à vida”, a única forma de redenção possível, segundo a autora.
Testemunha resistente da Ditadura que em Portugal viveu até 1963, ano em que, perseguida por ela, se exila em Paris, ao ensino, primeiro na Universidade da Sorbonne Nouvelle, depois na Universidade Nova de Lisboa, em cuja fundação tomou parte, Teresa Rita Lopes aliou harmoniosamente o ensaísmo e a crítica literária, construindo uma obra sólida, de uma comunicabilidade límpida que se tornou num bem escasso em meio académico. Nela avulta a sua personalidade criadora, a sua lucidez e atenção acesa, mas também o seu rigor, presente quer nos estudos de vulto centrados em Pessoa (mas também em Torga), quer nos textos de mais reduzida dimensão, do ensaio à comunicação académica, da recensão ao prefácio, do artigo de jornal ao post.  O mesmo rigor e empenho colocou-os no Instituto de Estudos sobre o Modernismo, que fundou e dirigiu.
Do academismo de “fato escovado, bem posto, bem calçado”, devidamente protegido em protocolar carapaça, tomou sempre a professora conveniente distância. A convivência continuada com Pessoa  terá sido facilitada por um apurado sentido de humor, de nuances várias, e um comum sentido lúdico, que terá levado Pessoa a atribuir a dois dos seus heterónimos nomes que, abreviados, mergulharam os investigadores em equívocos que hoje nos divertem (é o caso de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos – A. C., ambos) e Teresa Rita Lopes a congeminar, num poema de Os Dedos os Dias as Palavras, uma tropelia a essa espécie séria de académicos importantes, e em que talvez Pessoa aceitasse tomar parte : “meter-lhes/ um rato/ no sapato”
Teresa Carvalho,  em artigo publicado no Jornal I, em 17.06.2025

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sexta-feira, 20 de junho de 2025

Aforismos sobre o invejoso



Aforismos sobre o invejoso

                   À memória do grande aforista Cioran. 

O invejoso morre, muitas vezes, não à míngua de excesso, mas à míngua de pouca coisa.

A inveja é uma espécie de impotência.

O invejoso morrerá sempre de não ter comido o que outros comem. Mais do que comer, ele desejaria que os outros não comessem.

Não sendo capaz de fruir, o invejoso quer impedir os outros de fruir. Como o caranguejo, que, vendo outro caranguejo a subir um montículo, em vez de o imitar e subir também, puxa-o para baixo, impedindo-lhe  a subida.

O invejoso odeia o vazio, mas não sabe preenchê-lo.

O invejoso tem fome, mas não sabe mastigar.

O invejoso não procura ter, procura que o outro não tenha.

O invejoso gostaria de irradiar luz, mas irradia peçonha.

O invejoso olha-se ao espelho e não gosta do que vê.

O invejoso, escritor medíocre, incendiaria bibliotecas e livrarias, para evitar comparações.

O invejoso não deseja medir-se com os outros: prefere aniquilá-los. Pereça o universo, mas salve-se o seu orgulho.

O invejoso é um assassino impotente, um criador estéril e um amante sem líbido.

Eugénio Lisboa, 28.07.2023 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Paisagens do Mundo

Se quisermos que o futuro volte a ter futuro, tenhamos a coragem de mudar radicalmente de vida e de aprender a andar mais devagar e com mais ponderação. O sábio Buda deixou-nos uma pequena folha do seu livro de sabedoria, quando disse: “Não importa o quanto tu vás devagar, desde que não pares.” Não estar parado é uma virtude. Desatar a correr, atropelando tudo no caminho, é um crime.
              Eugénio Lisboa, Ano Novo 
 
 Relaxing Landscapes: Healing Escapes in 4K , (Paisagens relaxantes: escapadelas de cura em 4K), pelo My World Circle que formula o seguinte convite:
"Mergulhe no poder curativo da natureza com esta viagem tranquila pela natureza selvagem em 4K. Desde joias escondidas aos lugares mais inacreditáveis ​​do planeta Terra, este filme cénico e relaxante oferece uma fuga relaxante, repleta de beleza natural, música relaxante e vistas panorâmicas deslumbrantes. Testemunhe as maravilhas do planeta captadas com uma nitidez de cortar a respiração com vídeo 4K e descubra os lugares mais bonitos do mundo — desde destinos imperdíveis a belezas selvagens que parecem intocadas pelo tempo. Esta é mais do que apenas uma inspiração de viagem; é uma experiência visual que o coloca frente a frente com os principais locais irreais e os lugares mais incríveis do planeta. Explore lugares incríveis e lugares maravilhosos que reflectem a alma do nosso mundo. Deixe que a música relaxante o envolva enquanto passeia por paisagens que convidam à paz, à atenção plena e à reflexão. Seja para encontrar imagens relaxantes de drones em 4K, sonhar com os melhores lugares para visitar no mundo ou explorar a cultura e a serenidade natural, esta viagem tem algo para todos os corações. Encontre calma, encontre admiração e reconecte-se com a essência do nosso planeta em 4K."

quarta-feira, 18 de junho de 2025

A voz da terra

"The Voice of the Earth ", A Voz da Terra,  é uma belíssima composição musical com a grandeza sonora  de vozes magníficas e o som mágico da flauta.

terça-feira, 17 de junho de 2025

De que é que têm medo?

Uma grande parte da infelicidade no mundo tem sido causada por confusão e fracasso de se dizer a palavra certa no momento certo. Uma palavra que não é proferida no momento certo é prejudicial, e tem sido sempre assim. Porque é que uma classe da população deveria ter medo de ser honesta com outra? De que é que têm medo?
                              Fiodor Dostoievski

Até Amanhã

Até Amanhã

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.
Eugénio de Andrade, in Até Amanhã ,Assírio & Alvim Editores, Outubro de 2012, p 45

Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade, in As Palavras Interditas, Assírio & Alvim Editores, Outubro de 2012, pp 33-34

segunda-feira, 16 de junho de 2025

A avaliação redutora

Ernest Hemingway (1899-1961 ,USA)
A avaliação redutora
por Eugénio Lisboa
“Os ideólogos absolutos simples têm o hábito nefasto de avaliar o talento e as obras de escritores, artistas e cientistas, não por esse talento, mas por razões em tudo exteriores ao valor intrínseco dessas obras. Um cientista não é válido porque é judeu, um escritor é descartável porque é de direita ou porque é de esquerda ou porque não “se compromete”. Outro é lançado ao inferno porque tem vícios sexuais. Por dá cá aquela palha, lança-se o labéu de “fascista” a gente que simplesmente “se acomodou” como se acomodaram tantos que se dizem de esquerda. É uma avaliação assanhada, intolerante, a preto e branco, como se um grande artista tivesse de ser, ao mesmo tempo, uma virgem impoluta em busca de canonização.
Do que estes robespierres se esquecem é de que, a utilizar esta escala de valores, muito do património cultural da humanidade vai pelo esgoto abaixo, porque, afinal, os heróis eram também vilãos. Os exemplos abundam e temos de viver com eles. Jean-Jacques Rousseau, que nos legou duas joias literárias – LES CONFESSIONS e RÊVERIES D’UN PROMENEUR SOLITAIRE – foi o mesmo que pôs cinco filhos na roda. Voltaire, destemido combatente pelos direitos humanos e notabilíssimo ficcionista, poeta, dramaturgo, historiador, e excepcional epistológrafo, que pagou as suas ousadias com a Bastilha e com o exílio, praticava desavergonhadamente a agiotagem. O grande Camilo, em muitas das acções da sua vida, não foi flor que se cheirasse. André Gide era pedófilo. Proust sabujava aristocratas, a quem escrevia intermináveis cartas soporíferas. Hemingway, o grande mestre do conto moderno, era um irredimível misógino e um bom sacana. O grande Faulkner, um dos maiores romancistas que a América produziu, tomou, em relação aos negros, atitudes que lhe valeram o epíteto de “racista silencioso”. Wagner foi o monstro que se sabe. Pirandello, um dos grandes dramaturgos do século XX e não menor contista, vestiu a camisa preta dos fascistas. D’Annunzio foi abertamente fascista. O grande Ibsen, autor de algum do melhor teatro do mundo, era perdido e achado por condecorações e ficava muito zangado quando lhas não davam ou lhas davam de pouco valor. Picasso, como ser humano e cidadão, estava longe de ser flor que se cheirasse. Sartre, durante a ocupação, recusou-se a integrar a Resistência e acomodou-se menos mal com os ocupantes. Céline pactuou abertamente com os nazis e, no final da guerra, para não ser fuzilado, fugiu para o norte brumoso. Que fazer da obra de toda esta gente e de outra que eu aqui não citei? Mandá-la para a lixeira? Os ideólogos, provavelmente, acham que sim. O que prova apenas uma coisa: eles nunca foram realmente capazes de compreender nem apreciar as grandes obras nem o preço alto que se paga a produzi-las.”
Eugénio Lisboa, 26.02.2024

domingo, 15 de junho de 2025

Ao Domingo Há Música

Lastro

Depois da noite, o dia, a claridade!
A bênção de acordar
E de ter vida!
Olhar
E descobrir a eternidade
Em cada contingência renascida.

A música concreta dos ruídos…
A frescura dos frutos orvalhados…
O perfume da brisa que perpassa…
E os sentidos
Felizes, excitados
Como podengos que farejam caça.

Assim dentro de nós o sol nascesse
E apagasse
Nessa madrugada,
A teimosa e penosa consciência
Da existência
Passada!
Miguel Torga , Câmara Ardente


A música acorda em nós o perfume, a frescura da brisa que perpassa pelo amanhecer de um dia que se deseja radioso.
Que seja assim neste domingo e  como início de uma outra semana sem a funda penumbra dos dias conturbados.

Hymn of the Cherubim (Recorded for Sunlight), de Piotr Ilitch Tchaikovski ( 7 de Maio de 1840, Vótkinsk, Rússia - 6 de Novembro de 1893, São Petersburgo, Rússia), pelo premiado coro Kammerkoret Aurum, no palácio do Arcebispo em Trondheim, Noruega. O som parece mesmo o da luz do sol.
 

sábado, 14 de junho de 2025

Um pensamento para esta guerra

Frase do dia, proposta por Eugénio Lisboa, em 01.11.2023,  que  serve para este sábado de Junho de 2025.

Um pensamento para esta guerra

More than an end to war, we want an end to the beginning of all wars, yes, an end to this brutal, inhuman and thoroughly unpractical method of settling differences between governments.

(Mais do que um fim da guerra, desejamos um fim do começo de todas as guerras, sim, um fim deste método brutal, inumano e nada prático de resolver diferenças entre governos.)
         Franklin D. Roosevelt

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Celebrar Fernando Pessoa


Não sou nada.Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Fernando Pessoa , Tabacaria

Há 137 anos, no dia 13 de Junho de 1888, nascia Fernando Pessoa em Lisboa. De acordo com a certidão de nascimento, era uma quarta-feira , às 15:20h da tarde. Veio ao mundo, num apartamento do quarto andar, situado num prédio do Largo de São Carlos, em frente ao Real Teatro de São Carlos, no centro de Lisboa. Era filho de Joaquim de Seabra Pessoa, natural de Lisboa, que era crítico musical, e de Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, natural dos Açores. Ficou órfão de pai aos 5 anos de idade.
Fernando Pessoa faleceu no dia 30 de Novembro de 1935, em Lisboa. Através dos heterónimos, que compõem uma lista extensa, Fernando Pessoa conduziu uma profunda reflexão sobre a relação entre verdade, existência e identidade. Uma obra que coube numa vida, mas que passa largamente o que, factualmente, essa vida poderá ter contido.
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus.
Fernando Pessoa/Alberto Caeiro; Poemas Inconjuntos; escrito entre 1913-15, Atena nº 5 de Fevereiro de 1925.

Hoje, em Lisboa,  é também o dia de Santo António , patrono da cidade. Em Portugal é dia de um poeta maior , Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa: O Poeta dos Muitos Rostos
"Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em 1888, em Lisboa, aí morreu em 1935, e poucas vezes deixou a cidade em adulto, mas passou nove anos da sua infância em Durban, na colónia britânica da África do Sul, onde o seu padrasto era o cônsul Português. Pessoa, que tinha cinco anos quando o seu pai morreu de tuberculose, tornou-se num rapaz tímido e cheio de imaginação, e num estudante brilhante. Pouco depois de completar 17 anos, voltou a Lisboa para entrar no Curso Superior de Letras, que abandonou depois de dois anos, sem ter feito um único exame. Preferiu [que cedo abandonou, preferindo] estudar por sua própria conta na Biblioteca Nacional, onde leu livros de filosofia, de religião, de sociologia e de literatura (portuguesa em particular) a fim de completar e expandir a educação tradicional inglesa que recebera na África do Sul. A sua produção de poesia e de prosa em Inglês foi intensa durante este período, e por volta de 1910, já escrevia também muito em Português. Publicou o seu primeiro ensaio de crítica literária em 1912, o primeiro texto de prosa criativa (um trecho do Livro do Desassossego) em 1913, e os primeiros poemas de adulto em 1914.
Vivendo por vezes com parentes, outras vezes em quartos alugados, Pessoa ganhava a vida fazendo traduções ocasionais e redacção de cartas em inglês e francês para firmas portuguesas com negócios no estrangeiro. Embora solitário por natureza, com uma vida social limitada e quase sem vida amorosa, foi um líder activo da corrente modernista em Portugal, na década de 1910, e ele próprio inventou alguns movimentos, entre os quais um «Interseccionismo» de inspiração cubista e um estridente e semi-futurista «Sensacionismo». Pessoa manteve-se afastado das luzes da ribalta, exercendo a sua influência, todavia, através da escrita e das tertúlias com algumas das mais notáveis figuras literárias portuguesas.
Respeitado em Lisboa como intelectual e como poeta, colaborou regularmente [publicou regularmente o seu trabalho] em revistas, algumas das quais ajudou a fundar e a dirigir, mas o seu génio literário só foi plenamente reconhecido após a sua morte. No entanto, Pessoa estava convicto do próprio génio, e vivia em função da sua escrita. Embora não tivesse pressa em publicar, tinha planos grandiosos para edições da sua obra completa em Português e Inglês e, ao que parece, guardou a quase totalidade daquilo que escreveu.
Em 1920, a mãe de Pessoa, após a morte do segundo marido, deixou a África do Sul de regresso a Lisboa. Pessoa alugou um andar para a família reunida – ele, a mãe, a meia irmã e os dois meios irmãos – na Rua Coelho da Rocha, n.º 16, naquela que é hoje a Casa Fernando Pessoa. Foi aí que Pessoa passou os últimos quinze anos da sua vida – convivendo muito com a mãe, que morreu em 1925, e com a meia irmã, o cunhado e os dois filhos do casal (os meios irmãos de Pessoa emigraram para a Inglaterra), embora também passasse longos tempos na casa sozinho. Familiares de Pessoa descreveram-no como afectuoso e bem humorado, mas muito reservado. Ninguém fazia ideia de quão imenso e variado era o universo literário acumulado na grande arca onde ia guardando os seus escritos ao longo dos anos.
O conteúdo dessa arca – que hoje constitui o Espólio de Pessoa na Biblioteca Nacional de Lisboa – compreende mais de 25 mil folhas com poesia, peças de teatro, contos, filosofia, crítica literária, traduções, teoria linguística, textos políticos, horóscopos e outros textos sortidos, tanto dactilografados como escritos ou rabiscados ilegivelmente à mão, em Português, Inglês e Francês. Pessoa escrevia em cadernos de notas, em folhas soltas, no verso de cartas, em anúncios e panfletos, no papel timbrado das firmas para as quais trabalhava e dos cafés que frequentava, em sobrescritos, em sobras de papel e nas margens dos seus textos antigos. Para aumentar a confusão, escreveu sob dezenas de nomes, uma prática – ou compulsão – que começou na infância. Chamou heterónimos aos mais importantes destes «outros eus», dotando-os de biografias, características físicas, personalidades, visões políticas, atitudes religiosas e actividades literárias próprias. Algumas das mais memoráveis obras de Pessoa escritas em Português foram por ele atribuídas aos três principais heterónimos poéticos – Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos – e ao «semi-heterónimo» Bernardo Soares, enquanto muitos poemas e alguma prosa em Inglês foram assinados por Alexander Search e Charles Robert Anon. Jean Seul, o solitário heterónimo francês, era ensaísta. Os muitos outros alter-egos de Pessoa incluem tradutores, escritores de contos, um crítico literário inglês, um astrólogo, um filósofo, um frade e um nobre infeliz que se suicidou. Havia até um seu «outro eu» feminino: uma pobre corcunda com tuberculose chamada Maria José, perdidamente enamorada de um serralheiro que passava pela janela onde ela sempre estava, olhando e sonhando.(...)"
Richard Zenith , publicado pela Casa Fernando Pessoa

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa, in Poesias (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).

Ah, já está tudo lido

Ah, já está tudo lido,
Mesmo o que falta ler!
Sonho, e ao meu ouvido
Que música vem ter?

Se escuto, nenhuma.
Se não ouço ao luar
Uma voz que é bruma
Entra em meu sonhar.

E esta é a voz que canta
Se não sei ouvir...
Tudo em mim se encanta
E esquece sentir.

O que a voz canta
Para sempre agora
Na alma me fica
Se a alma me ignora.

Sinto, quero, sei-me
Só há ter perdido —
E o eco onde sonhei-me
Esquece do meu ouvido.
7-9-1922
Fernando Pessoa,in Poesias Inéditas (1919-1930) (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990).