“ Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezassete anos.
Amava Simão uma sua vizinha , menina de quinze anos, rica herdeira , regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos.
Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos . O amor aos quinze anos é uma brincadeira; é a última tentativa da avezinha que ensaia o voo fora do ninho (...).
Teresa de Albuquerque devia ser , porventura, uma excepção no seu amor.
O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa , por motivos de litígios , em que Domingos Botelho lhes deu sentenças contra.(…)
E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande património. Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um património!
Na véspera da sua ida para Coimbra , estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexíveis da jaula. (...) com o amanhecer esfriou-lhe o sangue e renasceu a esperança com os cálculos.(…)
Simão, porém, entre mil projectos, achara melhor o de ir para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa.
Descera o académico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs , e beijar a mão do pai, que para esta hora reservara uma admoestação severa, a ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria, se ele caísse em novas extravagâncias. Quando metia o pé no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga, estendendo-lhe a mão aberta como quem pede esmola, e, na palma da mão, um pequeno papel. Sobressaltou-se o moço; e , a poucos passos distante de sua casa, leu estas linhas:
“ Meu pai diz que me vai encerrar num convento por tua causa.. Sofrerei tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e achar-me-ás no convento, ou no Céu, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome hás-de responder à tua pobre Teresa.”
Camilo Castelo Branco, in “ Amor de Perdição”, Porto Editora, Lda, pp.36,37,38,39
"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
domingo, 16 de março de 2025
Ao Domingo Há Música
Camilo Castelo Branco (1825-1890) tinha 35 anos quando foi detido e encarcerado por adultério. Durante um ano, o escritor e a amante, Ana Plácido, esperaram julgamento presos na cadeia da relação, no Porto. Foi neste ano de clausura que Camilo escreveu a obra-prima "Amor de Perdição." Assinalam-se, hoje, os 200 anos de nascimento do escritor.
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu em Lisboa, mas a morte dos pais leva-o a ir viver para Trás-os-Montes, em 1836, ao cuidado de tios que zelam pela sua educação, fazendo-o ingressar no seminário de Vila Real. Não admira, por isso, que venha a ser, mais tarde, prefaciador, tradutor e divulgador de obras de natureza religiosa e apologética.
A sua vida emocional é, desde o início, complicada: casado em primeiras núpcias com uma jovem menina, que viria a morrer na expectativa de voltar a receber o marido nas faldas de Friúme, fica a braços com uma filha de uma segunda relação efémera com D. Patrícia Emília. Não obstante, é a história amorosa partilhada com Ana Plácido, a prisão de ambos na cadeia da Relação e a escrita de Memórias do Cárcere e de Amor de Perdição que dão à sua biografia a feição romântica que o tornou conhecido.
Tentando, sem sucesso nem diligência suficiente, cursar Medicina e, mais tarde, Direito, Camilo viverá sempre da sua pena prolífica e lesta, da ficção, do jornalismo e da crítica literária."
Pedro Abrunhosa e Sara Correia , em Que O Amor Te Salve Nesta Noite Escura. Música e Letra de Pedro Abrunhosa.
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