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Eugénio Lisboa |
O Dia Mundial da Poesia comemora-se anualmente, a 21 de Março. A data foi instituída na 30.ª Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1999. O objectivo é salientar a importância da poesia, enquanto manifestação artística comum a toda a Humanidade. Celebra-se também a criatividade, a pluralidade linguística e cultural e promove-se o ensino e declamação da poesia.
Neste dia dedicado à POESIA , só Eugénio Lisboa ( 1930-2024), professor , crítico literário, ensaísta , poeta de muito engenho e de laboriosa oficina poética, podia dar o mote a esta tentativa de celebrar a poesia, neste espaço. Ao longo dos anos e diariamente até à sua morte, a 9 de Abril de 2024, brindou-nos com a sua opípara e policromática escrita , onde o poema era rei. É o primeiro ano da sua ausência real, mas ficará para sempre nas páginas da Literatura pela fecunda e excelente produção literária que legou ao mundo.
A boa poesia é aquela,que diz muito, mesmo falando pouco,não vá o bom poeta ficar rouco!Eugénio Lisboa , Poemas em Tempo de Guerra,Guerra & Paz Editores
A POESIA
por Eugénio Lisboa
por Eugénio Lisboa
“A poesia mente muito, mas diz sempre o que mais a aproxima da verdade. Sabe é dizê-lo, de um modo muito especial, que é não dizer, dizendo, enviesando e despistando. O próprio do poeta é “citar” o leitor, como se “cita” um touro. O poeta não dá respostas: abre pistas. Quem dá respostas são os padres e os charlatães. Os poetas fazem perguntas sugestivas que apontam, nunca para um só caminho, mas para vários. O não responder dos poetas aproxima-se mais da resposta do que o responder dos padres. O não responder dos poetas tem mais resposta do que o responder dos bispos. O poeta pretende que não sabe, o padre finge que sabe. Há mais saber no não responder do que no responder. Mesmo quando o poeta parece que afirma, está só a perguntar. Há mais filosofia no que diz que não sabe do que em todas as religiões somadas e muito cheias de certezas. Não saber, ter dificuldade em compreender, abre-nos mais portas para a verdade do que ter resposta para tudo. Os poetas e os homens de ciência têm, no que não sabem, promessas de tesouros que se furtarão a todas as religiões do mundo. Pensar que ainda se não sabe é a melhor alavanca para algum saber. Pensar que se sabe e que aquele é o único saber admitido convoca a tortura e a fogueira. Os poetas nunca queimaram ninguém, mas alguns deles já foram queimados. O que julga que sabe e não sabe está sempre preparado para eliminar o que quase sabe mas sabe que está ainda longe de saber. A certeza tem horror à dúvida, como antigamente se dizia que a natureza tem horror ao vazio. A dúvida faz avançar o conhecimento. A certeza barra-lhe o avanço. Como os cientistas, os poetas estão vivos e activos porque ainda não sabem: quando muito, desconfiam. Como dizia um filósofo francês, a dúvida pode ser dolorosa, mas a certeza é ridícula.”
Eugénio Lisboa, 09.11.2022


Quando vier a Primavera
Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Alberto Caeiro, in Poesia (Poemas Inconjuntos - Fernando Pessoa), ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 109
De poesia falemos
Escrevo poesia, mas não é
só de poesia que me sustento.
Às vezes, prefiro um bom café,
que me fica muito mais a contento.
Poesia, talvez, mas devagar,
com muita boa prosa pelo meio.
O poema entretém-se a emblemar
biscoito leve com pouco recheio.
Nele hesita-se entre o que se diz
e o modo singular de o dizer.
O poema é fértil em ardis,
que ao recheio dão o som que requer.
Mesmo quando o miolo não abunda,
dá-lhe o som uma ajuda fecunda.
17.06.2023
Eugénio Lisboa, ( poema inédito)
Autobiografia
Uma vida escreve-se devagar,
embora se viva muito depressa:
mal se partiu, já se está a chegar,
mesmo que, no meio, muito aconteça!
Escrevê-la é moroso e complicado:
a memória guarda mas também esquece
e, se parte fica resguardado,
o resto, ingloriamente, fenece!
Escreve-se a vida, pra vencer a morte,
para dar à vida uma outra vida,
fechando-a, enfim, num cofre forte.
No cofre guardada e não esquecida,
pensa quem escreve, mal sabendo
quanto tudo o tempo vai roendo!
08.12.2022
Eugénio Lisboa,in Soneto modo de usar, Guerra & Paz Editores, Abril de 2024, p105
Uma vida escreve-se devagar,
embora se viva muito depressa:
mal se partiu, já se está a chegar,
mesmo que, no meio, muito aconteça!
Escrevê-la é moroso e complicado:
a memória guarda mas também esquece
e, se parte fica resguardado,
o resto, ingloriamente, fenece!
Escreve-se a vida, pra vencer a morte,
para dar à vida uma outra vida,
fechando-a, enfim, num cofre forte.
No cofre guardada e não esquecida,
pensa quem escreve, mal sabendo
quanto tudo o tempo vai roendo!
08.12.2022
Eugénio Lisboa,in Soneto modo de usar, Guerra & Paz Editores, Abril de 2024, p105
Pois meus olhos não cansam de chorar
Tristezas não cansadas de cansar-me;
Pois não se abranda o fogo em que abrasar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar;
Não canse o cego Amor de me guiar
Donde nunca de lá possa tornar-me;
Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Enquanto a fraca voz me não deixar.
E se em montes, se em prados, e se em vales
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras, águas;
Ouçam a longa história de meus males,
E curem sua dor com minha dor;
Que grandes mágoas podem curar mágoas.
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos", Bertrand Editores
A defesa do poeta
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
Que favor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.
Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.
Natália Correia, in Poesia Completa: O sol nas noites e o luar nos dias. Lisboa: Editorial D. Quixote, 1999, pp. 330-331Elegia múltipla V
Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam
sobre a minha vida.
Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites
do mundo.
Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção
devastadora. Ó feroz mundo puro,
ó vida incomparável. Cantam, cantam.
Abro os olhos debaixo das águas silenciosas,
e vejo que minha lembrança é mais remota
que tudo. Cantam friamente.
Não posso ouvir cantar.
Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê
como bebe no anónimo da estação.
O sangue escorrega por ti, quando é a altura das rosas.
Ouve: não te maravilha
a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas?
─ Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico
de um nome extremo.
Não cantem, não floresçam.
Não posso sentir encher-se assim a vida
com uma canção fria e uma roseira
tão espalhada em mim.
Pode ser que fosse ilesa esta época do ano,
e minha existência de repente se tomasse
por todo esse fervor.
Vejo minha ardente agudeza escoar-se à maturidade
confluente
de um minuto de verão. - Estaria eu
completo para a morte?
Não, não cantem essa lembrança de tudo.
Nem roseira na sangrenta delicadeza
da carne, nem o verão com seus
símbolos de feroz plenitude.
Gostaria de pensar cada um dos meus dedos,
esta cítara descida da obra.
Toda a tristeza como uma vida admirável
enchendo a eternidade.
As frias canções despovoam-me, e as roseiras
tornam desavindas as rosas
recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme
alui-se-me o uno sangue.
Eu próprio poderia cantar um nome masculino,
a minha vida inteira
tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio
do que se não sabe.
Não se canta e floresce. Ninguém
amadurece no meio da sua vida.
Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo,
e a alta tristeza purifica os dedos.
Porque um homem não é uma canção fria ou
uma roseira. Não
é um fruto como entre folhas inspiradoras.
Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo.
─ Por sobre frias canções e roseiras aterradoras,
minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso
de uma grande vida.
Pode ser que tudo esteja bem no plural
de um mundo intenso. Mas
o amor é outro poder, a carne
vive da sua absorta permanência. Esta vida
de que falo
não se escoa, não alimenta os superlativos
diários. É única
e perene sobre a escondida fluência
dos movimentos.
─ Uma roseira, mesmo
incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha.
Por detrás da noite de pendidas
rosas, a carne é triste e perfeita
como um livro.
Herberto Helder, in Elegia múltipla,Poema v , Poesia toda , Assírio & Alvim,1996
Eu ontem vi-te...
Eu ontem vi-te...
ndava a luz
Do teu olhar,
Que me seduz
A divagar
Em torno a mim.
E então pedi-te,
Não que me olhasses,
Mas que afastasses,
Um poucochinho,
Do meu caminho,
Um tal fulgor
De medo, amor,
Que me cegasse,
Me deslumbrasse,
Fulgor assim.
Ângelo de Lima, in Poesias Completas, Editorial Inova ,1971
Poema do Natal
PARA ISSO fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos ─
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos ─
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai ─
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação na poesia
Para ver a face da morte ─
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem: da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinicius de Moraes, in O poeta apresenta o poeta, Cadernos de Poesia, Publicações Dom Quixote 1969
Morrer de amor
Morrer de amor
ao pé da tua boca
Desfalecer
à pele
do sorriso
Sufocar
de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso
Maria Teresa Horta, in Destino , Livro I , Quetzal Editores , Abril de 1998
Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária
Octavio Paz, in Liberdade sob a Palavra (1949)Beira-mar
Tudo abeirou minha infância
beira do rio, beira-mar,
orla branca de esperança
no leste do meu olhar.
Meu batelão emborcado
à beira de me afogar,
eu sobre a ponte abeirado
puxando minhas puçás.
Beirando todas as rotas,
nas asas das gaivotas
meus olhos cruzavam o mar;
sonhava à beira do caís
com um barco, nada mais,
e eu no mundo a navegar.
Curitiba, Novembro de 2004
Manoel de Andrade, in Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007, p.44
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
Que favor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.
Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.
Natália Correia, in Poesia Completa: O sol nas noites e o luar nos dias. Lisboa: Editorial D. Quixote, 1999, pp. 330-331
Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam
sobre a minha vida.
Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites
do mundo.
Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção
devastadora. Ó feroz mundo puro,
ó vida incomparável. Cantam, cantam.
Abro os olhos debaixo das águas silenciosas,
e vejo que minha lembrança é mais remota
que tudo. Cantam friamente.
Não posso ouvir cantar.
Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê
como bebe no anónimo da estação.
O sangue escorrega por ti, quando é a altura das rosas.
Ouve: não te maravilha
a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas?
─ Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico
de um nome extremo.
Não cantem, não floresçam.
Não posso sentir encher-se assim a vida
com uma canção fria e uma roseira
tão espalhada em mim.
Pode ser que fosse ilesa esta época do ano,
e minha existência de repente se tomasse
por todo esse fervor.
Vejo minha ardente agudeza escoar-se à maturidade
confluente
de um minuto de verão. - Estaria eu
completo para a morte?
Não, não cantem essa lembrança de tudo.
Nem roseira na sangrenta delicadeza
da carne, nem o verão com seus
símbolos de feroz plenitude.
Gostaria de pensar cada um dos meus dedos,
esta cítara descida da obra.
Toda a tristeza como uma vida admirável
enchendo a eternidade.
As frias canções despovoam-me, e as roseiras
tornam desavindas as rosas
recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme
alui-se-me o uno sangue.
Eu próprio poderia cantar um nome masculino,
a minha vida inteira
tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio
do que se não sabe.
Não se canta e floresce. Ninguém
amadurece no meio da sua vida.
Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo,
e a alta tristeza purifica os dedos.
Porque um homem não é uma canção fria ou
uma roseira. Não
é um fruto como entre folhas inspiradoras.
Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo.
─ Por sobre frias canções e roseiras aterradoras,
minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso
de uma grande vida.
Pode ser que tudo esteja bem no plural
de um mundo intenso. Mas
o amor é outro poder, a carne
vive da sua absorta permanência. Esta vida
de que falo
não se escoa, não alimenta os superlativos
diários. É única
e perene sobre a escondida fluência
dos movimentos.
─ Uma roseira, mesmo
incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha.
Por detrás da noite de pendidas
rosas, a carne é triste e perfeita
como um livro.
Herberto Helder, in Elegia múltipla,Poema v , Poesia toda , Assírio & Alvim,1996
Prólogo
Do outono que termina
nenhuma coisa é perto.
Cada uma culmina
em tudo ser aberto
e claro movimento
sem uma qualquer história.
Que ser no pensamento
é obra sem memória.
Ou, se memória fosse,
da longa caminhada
guardaria o que trouxe
- a paz de ser pensada
e uma mágoa doce
de outono e de mais nada.
Aonde formos iremos
pensando esta luz que passa.
Esta luz que, agora, vemos
molhada além da vidraça
mas que, pensada, ilumina
outro rio e outra rua
e muda mesmo à retina
o modo de se ver sua.
Sem que, por isso, no rio
mude, ou na rua, o passar.
Tudo segue o mesmo fio
em retina igual. Só o ar
tem um contorno mais frio
na margem de ver passar.
Fernando Echevarría, in Introdução à Filosofia, Edições Nova Renascença, Porto
Do outono que termina
nenhuma coisa é perto.
Cada uma culmina
em tudo ser aberto
e claro movimento
sem uma qualquer história.
Que ser no pensamento
é obra sem memória.
Ou, se memória fosse,
da longa caminhada
guardaria o que trouxe
- a paz de ser pensada
e uma mágoa doce
de outono e de mais nada.
Aonde formos iremos
pensando esta luz que passa.
Esta luz que, agora, vemos
molhada além da vidraça
mas que, pensada, ilumina
outro rio e outra rua
e muda mesmo à retina
o modo de se ver sua.
Sem que, por isso, no rio
mude, ou na rua, o passar.
Tudo segue o mesmo fio
em retina igual. Só o ar
tem um contorno mais frio
na margem de ver passar.
Fernando Echevarría, in Introdução à Filosofia, Edições Nova Renascença, Porto
1981

Eu ontem vi-te...
ndava a luz
Do teu olhar,
Que me seduz
A divagar
Em torno a mim.
E então pedi-te,
Não que me olhasses,
Mas que afastasses,
Um poucochinho,
Do meu caminho,
Um tal fulgor
De medo, amor,
Que me cegasse,
Me deslumbrasse,
Fulgor assim.
Ângelo de Lima, in Poesias Completas, Editorial Inova ,1971

Poema do Natal
PARA ISSO fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos ─
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos ─
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai ─
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação na poesia
Para ver a face da morte ─
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem: da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinicius de Moraes, in O poeta apresenta o poeta, Cadernos de Poesia, Publicações Dom Quixote 1969
Morrer de amor
Morrer de amor
ao pé da tua boca
Desfalecer
à pele
do sorriso
Sufocar
de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso
Maria Teresa Horta, in Destino , Livro I , Quetzal Editores , Abril de 1998
.
Teus OlhosTeus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária
Octavio Paz, in Liberdade sob a Palavra (1949)Beira-mar
Tudo abeirou minha infância
beira do rio, beira-mar,
orla branca de esperança
no leste do meu olhar.
Meu batelão emborcado
à beira de me afogar,
eu sobre a ponte abeirado
puxando minhas puçás.
Beirando todas as rotas,
nas asas das gaivotas
meus olhos cruzavam o mar;
sonhava à beira do caís
com um barco, nada mais,
e eu no mundo a navegar.
Curitiba, Novembro de 2004
Manoel de Andrade, in Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007, p.44
O teu tesouro
Além, muito além desta paisagem,
numa realidade apenas pressentida
compreenderás ao fim dessa viagem
de onde vens e pra onde vais, na vida.
No torvelinho incessante dos destinos
cada um com seu papel nessa ribalta
semeando a ventura ou os desatinos
colherás o que te sobra ou que te falta.
Viandante dos caminhos milenares
aprendeste na decepção e nos pesares
que “nem tudo o que reluz é ouro”.
Guarda-te pois das ciladas da ilusão
porque “aonde estiver teu coração,
ali estará também o teu tesouro.
Além, muito além desta paisagem,
numa realidade apenas pressentida
compreenderás ao fim dessa viagem
de onde vens e pra onde vais, na vida.
No torvelinho incessante dos destinos
cada um com seu papel nessa ribalta
semeando a ventura ou os desatinos
colherás o que te sobra ou que te falta.
Viandante dos caminhos milenares
aprendeste na decepção e nos pesares
que “nem tudo o que reluz é ouro”.
Guarda-te pois das ciladas da ilusão
porque “aonde estiver teu coração,
ali estará também o teu tesouro.
Manoel de Andrade, poesia
Poesia
Ai deixa, deixa lá que a Poesia
no perfume das flores, no quebrar
das ondas pela praia,
na alegria
das crianças que riem sem porquê
— deixa-a lá que se exprima, a Poesia.
Fica sentado aí onde estás, Poeta,
e não mexas os lábios nem os braços:
deixa-a viver em si;
não tentes segurá-la nos teus braços,
não pretendas vesti-la com palavras...
Se a queres ter,
se a queres sempre ver pairando à flor das coisas, fica aí
no teu cantinho, e nem respires, Poeta, e não te bulas,
p'ra que ela não dê por ti.
Não a faças fugir, toda assustada
com a tua presença...
Deixa-a, nua, pairando à flor das coisas,
que ela não sabe que a viste,
nem sabe que está nua,
nem sequer sabe que existe..
Sebastião da Gama (1924-1952). “Poesia”(2.02.1945) in «Serra-Mãe», 1945
Dito por Carmen Dolores, no CD «Poemas da Minha Vida», Dito e Feito, 2003
Poesia
Ai deixa, deixa lá que a Poesia
no perfume das flores, no quebrar
das ondas pela praia,
na alegria
das crianças que riem sem porquê
— deixa-a lá que se exprima, a Poesia.
Fica sentado aí onde estás, Poeta,
e não mexas os lábios nem os braços:
deixa-a viver em si;
não tentes segurá-la nos teus braços,
não pretendas vesti-la com palavras...
Se a queres ter,
se a queres sempre ver pairando à flor das coisas, fica aí
no teu cantinho, e nem respires, Poeta, e não te bulas,
p'ra que ela não dê por ti.
Não a faças fugir, toda assustada
com a tua presença...
Deixa-a, nua, pairando à flor das coisas,
que ela não sabe que a viste,
nem sabe que está nua,
nem sequer sabe que existe..
Belo!
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