Na literatura, como no amor, ficamos admiradoscom as escolhas que os outros fazem.André Maurois
“Temos sempre curiosidade de saber o que os outros,
em especial, os nossos amigos ou simples conhecidos, andam a ler. Como se, a
partir de aí, pudéssemos ficar a conhecê-los melhor. Ou por simples
curiosidade, sem segundo sentido. Seja como for, temos frequentemente grandes
surpresas. De algumas dessas escolhas, partilhamos, outras deixam-nos
simplesmente perplexos.
Vejo constantemente, nos jornais, questionários dos
mais variados formatos, nos quais acaba por aparecer a inevitável pergunta
“quais os seis ou os dez livros que o marcaram” ou “quais os personagens de
ficção que mais o impressionaram”. As respostas, na maioria dos casos, são, no
mínimo, inquietantes, não pelo que indicam de leituras feitas, antes pelo que
indiciam de leituras, mais do que provavelmente, não feitas. Outras vezes, as
respostas – as menos interessantes - revelam apenas um exibicionismo provinciano,
como o caso do entrevistado que dá, como personagem de ficção que mais o
marcou, o Bloom, do ULISSES, de James Joyce! Como se alguém pudesse acreditar
em tal tolice! Como se Joyce tivesse jamais pretendido ou conseguido criar
qualquer verdadeiro personagem de ficção! Muito menos, um personagem
minimamente atraente! Como se, de uma tão rica panóplia de gente ficcional
propiciada pelas grandes literaturas de todos os tempos, alguém se pudesse
lembrar de Bloom, como seu personagem preferido!
Mas o que verdadeiramente me surpreende e não pouco
me inquieta são certas escolhas, não só por se referirem a obras mais do que
insignificantes, como, sobretudo, por dizerem respeito apenas a obras
publicadas nos nossos dias: como se o riquíssimo passado não existisse. Como se
a literatura tivesse começado ontem ou anteontem. Quando se interroga toda uma
coorte de notáveis da nossa praça, acerca de poetas preferidos, fica-se com a
ideia perturbante de que a poesia portuguesa começou com a Sophia.: antes dela,
nada houve a assinalar.
Eu tive e tenho ainda hoje um grande problema: tento
acompanhar, o melhor que sei e posso, a literatura do meu tempo, mas sempre com
a angústia de estar a ignorar uma obra-prima do passado, que ainda não tenha
visitado. É talvez isto mesmo que se reflecte no atrevido aforismo do conhecido
ensaísta e moralista francês, Joseph Joubert (Sec. XVIII/XIX), quando diz: “O
pior que há nos livros novos é impedirem-nos de ler os velhos.” Não se diga que
é reacionarismo, porque não é. Quantos nunca tiveram, por exemplo, o prazer de
ler essa extraordinária obra-prima do romance psicológico e autobiográfico, que
é o ADOLPHE, de Benjamin Constant, ou essa perturbante descida aos abismos da
condição humana, que é A CONFISSÃO DE STAVROGUINE, de Dostoiewsky, por não
quererem perder a última novidade, de que "se“fala”. Quantos nunca leram o
sábio, cândido e eternamente saboroso Montaigne, por causa da premência que faz
um best-seller aparecido na semana passada. Eu sei que a tentação é grande,
porque eu próprio a sinto. Mas há que encontrar um “ equilíbrio delicado” entre
as riquezas do passado e as do presente. A pólvora foi inventada pelos
chineses, há muitos séculos, e não por qualquer moderno aprendiz de feiticeiro.”
Eugénio Lisboa, em
11.08.2023
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