por Clarice Lispector
"Meu Deus, como o amor impede a
morte! Não sei o que estou querendo dizer com isso: confio na minha
incompreensão, que tem me dado vida instintiva e intuitiva, enquanto que a
chamada compreensão é tão limitada. Perdi amigos. Não entendo a morte. Mas não
tenho medo de morrer. Vai ser um descanso: um berço enfim. Não a apressarei,
viverei até a última gota de fel. Não gosto quando dizem que tenho afinidade
com Virgínia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o meu primeiro livro): é
que não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até
o fim. E sem contar com ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a
verdade. E, para sofrer menos, embotar-me um pouco. Pois não posso mais
carregar as dores do mundo. Que fazer, se sinto totalmente o que as outras
pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais força. Vou viver um
pouco na minha. Vou me impermeabilizar um pouco mais. – Há coisas que jamais
direi: nem em livros e muito menos em jornal. E não direi a ninguém no mundo. Um
homem me disse que no Talmude falam que há coisas que se podem contar a muitos,
há outras a poucos, e outras a ninguém. Acrescento: não quero contar nem a mim
mesma certas coisas. Sinto que sei de umas verdades. Mas não sei se as
entenderia mentalmente. E preciso amadurecer um pouco mais para me achegar
essas verdades. Que já pressinto. Mas as verdades não têm palavras. Verdades ou
verdade? Não, nem pensem que vou falar em Deus: é um segredo meu.
Está fazendo um dia lindo de
outono. A praia estava cheia de um vento bom, de uma liberdade. E eu estava só.
E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso aprender a não precisar
de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar
estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa calma não
pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.
Com duas pessoas eu já entrei em
comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos
nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu.
É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão
silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É
dificílimo contar: nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns
instantes. Éramos um só ser. Esses momentos são o meu segredo. Houve o que se chama
de comunhão perfeita. Eu chamo isso de: estado agudo de felicidade. Estou
terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano mais alto de
humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais tive. Só que depois… Depois
eu percebi que para essas pessoas esses momentos de nada valiam, elas estavam
ocupadas com outras. Eu estivera só, toda só. É uma dor sem palavra, de tão
funda. Agora vou interromper um pouco para atender o homem que veio consertar o
toca-discos. Não sei com que disposição voltarei à máquina. Música não ouço há
bastante tempo pois estou procurando me dessensibilizar. Mas um dia desses fui
pegada desprevenida, ao ver o filme Cada um vive como quer. Tinha música e eu
chorei. Não é vergonha chorar. É vergonha eu contar em público que chorei.
Pagam-me para eu escrever. Eu escrevo, então.
Pronto, já voltei. O dia continua
muito bonito. Mas a vida está muito cara (isso por causa do preço que o homem
pediu pelo conserto). Preciso trabalhar muito para ter as coisas que quero ou
de que preciso. Acho que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou
escrever para este jornal. Eu queria um emprego de poucas horas por dia,
digamos duas ou três horas, e que me fizesse (o emprego) lidar com pessoas.
Tenho jeito para isso, embora pareça um pouco ausente às vezes. Mas, quando
estou com uma pessoa verdadeira, fico verdadeira também. Se vocês pensam que
vou recopiar o que estou escrevendo ou corrigir este texto, estão enganados.
Vai é assim mesmo. Só que lerei para corrigir erros datilográficos.
A propósito de uma pessoa de quem
estou me lembrando agora e que usa uma pontuação completamente diferente da
minha, digo que a pontuação é a respiração da frase. Acho que já disse uma vez.
Escrevo à medida de meu fôlego. Estarei sendo hermética? Porque parece que em
jornal se tem de ser terrivelmente explícito. Sou explícita? Pouco se me dá.
Agora vou interromper para acender
um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui mesmo.
Voltei. Estou agora pensando em
tartarugas. Quando escrevi sobre bichos, disse, de pura intuição, que a
tartaruga era um animal dinossáurico. Depois é que vim a ler que é mesmo. Tenho
cada uma. Um dia vou escrever sobre tartarugas. Elas me interessam muito.
Aliás, todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de
maravilhamento. Parece que, se fomos modelados, sobrou muita matéria energética
e formaram-se os bichos. Para que serve, meu Deus, uma tartaruga? O título do
que estou escrevendo agora não devia ser “Ao correr da máquina”. Devia ser mais
ou menos assim, em forma interrogativa: “E as tartarugas?” E quem me lê se
diria: é verdade, há muito tempo que não penso em tartarugas. Agora vou acabar
mesmo. Adeus. Até sábado que vem. "
Clarice Lispector, em crónica publicada no Jornal do Brasil, de 17.04.1971 e recolhida no livro "Todas as crónicas", Rocco, Rio de Janeiro, 2018, pp.390-393