domingo, 26 de janeiro de 2025

Ao Domingo Há Música

27 de Janeiro de 1752 - 5 de Dezembro de 1791

MOZART

O génio musical no estado puro.
Como se a música fosse só ele,
dando, sem esforço, o mais fino apuro,
com notas que lhe saíam da pele.

Criador abundante, a qualidade,
nunca ferida pela quantidade,
quase parecia uma maldade,
aos que a não sofriam com humildade.

A música dele pode ser sublime
ou deliciosamente faceira,
mas nunca por nunca ela deprime,

fluindo airosa e feiticeira.
Meteoro breve da criação,
nos mostrou a via da perfeição
                    26.06.2022                      
Eugénio Lisboa , in Poemas em Tempo de Guerra Suja, Editora Guerra & Paz, 2012, 
pág. 110  


Livres Pensantes vai fazer uma pausa. Neste domingo, celebra a música de um génio, um sublime compositor. Três excelentes peças de um grande acervo que será sempre intemporal, como são as obras-primas.
Eugénio Lisboa tinha, em Mozart,   o  seu mais apreciado compositor.
Tenho, para mim,  os dois, como os meus mais apreciados vultos, que sempre me tocam pela excelência  e contemporaneidade dos respectivos e diferentes legados.
Que vos toquem também. 
Até sempre.
                                                                  
Wolfgang Amadeus Mozart - Concerto para clarinete em lá maior, K. 622 - Adagio. Escrito em 1791, para o clarinetista Anton Stadler , está composto em  três andamentos, numa forma rápida-lenta-rápida (Allegro-Adagio-Rondo). Foi uma das últimas obras concluídas de Mozart e a sua última obra puramente instrumental (morreu em 5 de Dezembro de 1791,  após a sua conclusão). O concerto é notável pela sua delicada interacção entre solista e orquestra e pela ausência de uma exibição demasiado extrovertida por parte do solista. Foi escolhido por Sydney Pollack para  fazer  parte da banda sonora do filme Out of Africa  de 1985, com Robert Redford e Meryl Streep, que legendam este registo. 
 
Wolfgang Amadeus Mozart - Requiem em Ré menor K. 626, pela Orquestra Nacional de França e o Coro da Rádio França, sob a direcção do Maestro  James Gaffigan, com a notável interpretação da  soprano Marita Solberg, da mezzo-soprano Karine Deshayes, do tenor Joseph Kaiser e do baixo Alexander Vinogradov. 
O Concerto foi gravado, ao vivo, em 29 de Junho de 2017,  na Basílica de Saint-Denis, no âmbito do Festival de Saint-Denis.
  
Wolfgang Amadeus Mozart -  Symphony No. 25 in G minor, K. 183/173dB,  pela Vienna Philharmonic Orchestra (Wiener Philharmoniker), sob a direcção do genial Maestro Leonard Bernstein.
00:30 I. Allegro con brio 
08:46 II. Andante 
15:09 III. Menuetto 
19:09 IV. Allegro

sábado, 25 de janeiro de 2025

Visão da Madeira

Da viagem que Raul Brandão realizou de Junho a  Agosto de 1924,  de Lisboa  ao encontro do Arquipélago dos Açores, a bordo do navio S. Miguel, registou  o que viu no  maravilhoso livro As Ilhas Desconhecidas.  No regresso,  passou pela Ilha da Madeira , constituindo as notas sobre esta ilha,   o último capítulo do livro.
No início desta obra,  o autor apresenta-a, em poucas linhas, ou seja, em três linhas, apelando os seus amigos dos Açores:
AOS MEUS AMIGOS DOS AÇORES
EM TRÊS LINHAS
"Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha... Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nas leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!... "
   1926
Raul Brandão

VISÃO DA MADEIRA
por Raul Brandão
13 de Agosto
"Nunca mais me esqueceu a manhã virginal da Madeira, e as cores que iam do cinzento ao doirado, do doirado ao azul-indigo – nem a montanha entreaberta saindo do mar diante de mim, a escorrer azul e verde...
Levanto-me a bordo, à procura da luz – de outra luz em que fui nascido e criado e de que começo a sentir cada vez mais a falta. Anseio por a tornar a ver, a luz sem nuvens, a luz doirada, a luz pura e viva. Mas o dia está ainda nublado: as mesmas nuvens, talvez mais leves, em pequenos toques delicados de pincel, e no mar pálido bóiam riscos esbranquiçados. Quatro da tarde: – suponho que vejo lá para o fundo, sobre as ondulações da vaga, uma faixa de outro azul – do azul que se respira. Como despedida, caem ligeiros chuviscos. Para os Açores continuam a amontoar-se nuvens mais escuras: – correm todas, atraídas para as ilhas, como quem tem um destino a cumprir...
Ao fim da tarde começa a erguer-se diante de mim uma coisa azulada e indistinta com uma grande nuvem cinzenta acachapada em cima. O sol que bate nos altos ilumina o cone dum monte e esguicha de entre as névoas sobre a extremidade dum morro quase negro. Já se distinguem as nodosidades disformes da terra e paredões, envoltos em fumaça que entra em rolos pelas fendas abertas da pedra; destacam-se, com majestade, do horizonte plúmbeo. Acentua-se a dureza, as chapadas, as ravinas, os cortes perpendiculares e cor de ferro, adivinha-se o drama que deve ter sido este parto, cheio de convulsões e de desmoronamentos, quando o grande cataclismo dilacerou e desmembrou o continente submerso, deixando patentes, neste resto, feridas que ainda hoje sangram. E nos bocados de cisco, que por acaso caíram e alastraram à beira-mar, agarraram-se meia dúzia de casinhas que têm por pano de fundo a massa espessa erguida logo pelo lado de trás. Seis horas: – tudo avança e se impõe em roxo, com riscos verdes de culturas e cumes doirados de montanhas; para o norte fixou-se uma aglomeração de pastas solenes que escondem a terra.
E a costa caminha, direito a mim, cada vez mais violenta e mais negra. Mete medo. Mal se distinguem as florestas nos altos enevoados, e os vales profundos por onde a água no Inverno deve cair em torrentes. O navio segue encostado à falésia, que deste lado da ilha não tem fundo, mostrando-nos a Madeira cortada por um machado que a abriu de lés a lés, atirando com a outra parte para o fundo do mar. É um bronze severo e trágico, que contrasta com a entrada do Funchal e a outra costa da ilha. Vou olhando para as povoações – Jardim do Mar, Paul do Mar, agarradas às muralhas, onde só distingo escorrências de zinavre. Só o homem! só o homem é que se atreve a cultivar socalcos abertos a fogo na perpendicularidade da falésia! (Vamos tão perto de terra que ouço os galos cantar.) Madalena do Mar, esmagada entre dois morros, que se reflectem em negro no veludo da água, Ponta do Sol e Cabo Girão, que a noite torna mais espesso e maior... Todo este panorama, na cinza do crepúsculo, recortado em negro num céu cor de chumbo, transformado pelas nuvens que baixam ainda mais, e desdobrando-se em sucessivos recortes sobre a tinta parada das águas, assume proporções extraordinárias. Já mal distingo a terra até à ponta desmedida da Cruz, por trás da qual nos espera o porto de abrigo. A cada momento que passa, mais alto e mais escuro se me afigura o paredão que nos intercepta o mundo. Só há uma vaga claridade para o lado do mar; o resto é negrume alcantilado e monstruoso colaborando com a espessura da névoa e o indistinto da noite. Uma luzinha se acende na imensa solidão e na mancha cada vez mais opaca. É o homem, subvertido, duas vezes isolado entre a montanha e o mar. É uma alma. E essa pequenina luz humilde chega a ser para mim extraordinária de grandeza: é uma estrela que me faz cismar.
14 de Agosto
De manhã acordo em terra. Abro a janela e entra-me pela janela dentro o cheiro a trufa. Corro tudo no primeiro momento as vielas animadas, as ruazinhas calçadas de seixos ensebados, onde deslizam carros de bois sem rodas, pintados de amarelo, com toldos frescos e cortinas de ramagem apartadas ao meio. Olho para as casas brancas e amarelas, de beirais caiados de vermelho e gelosias pintadas de verde, que dão ao Funchal um carácter familiar e íntimo. Tudo me surpreende: o calor, a luz forte, o jardim com fetos e um grande jacarandá de flores roxas, arbustos penetrados de satisfação, que na imobilidade e no silêncio vão desfolhando sobre a terra e deixando um charco rubro em roda. Uma gota de água cai ali para o fundo sobre outra água imobilizada.
O ar é um perfume gordo. Sento-me sob os grandes plátanos que nos recebem ao desembarcar do porto – mancha impenetrável e deliciosa. Subo: um largo irregular e depois a igreja, grande cofre de sândalo com doirados e incrustações em madre-pérola. Lá dentro cheira a incenso e a madeira preciosa; cá fora, por cima dos telhados, descobre- se sempre a carcaça denegrida da serra. Vou ao mercado – o mercado atrai-me: pequenino, com duas ou três árvores e uma fonte, todo ele transborda de fruta como um cesto cheio – cachos de bananas amarelas, alcofas de vindima a deitar fora, com damascos, figos pretos sumarentos e entreabertos, a destilar sumo. Toda a fruta aqui é deliciosa e a banana deixa na boca um perfume persistente para o resto da vida. Ao som da fonte de mármore que reluz em fios com uma Leda no alto agarrada ao seu voluptuoso cisne, isto forma um quadrinho todo em manchas coloridas, com sol às mãos-cheias por cima. À primeira vista, confunde: tem a gente de colocar-se a distância, como nas pochadas, para distinguir as uvas doiradas, as papaias, o vermelho dos tomates, as araras e as aves exóticas penduradas nos troncos, e sob os toldos, entre guinchos de macacos de S. Tomé e o falatório cantado do povo da Madeira, as mulheres de lenço branco na cabeça e botas de cano alto e rebuço, que preparam farnéis para a festa do Monte, os homens tisnados e secos, as inglesas de cabelo curto, vestidas de branco, cortadas pelo mesmo padrão que a Inglaterra agora fabrica e exporta para todo o mundo. A vista falha e perturba-se, o cheiro entontece. É preciso meter o pincel para aqueles fundos para dar as sombras roxas com muito azul, o verde-negro das couves, o quadro estonteante orvalhado pela fonte. Reparem como a própria sombra é luminosa e palpita. Com ela palpita o doirado das bananas, o amarelo dos melões, o vermelhão intenso das malaguetas enfiadas em rosário. E se um cesto sai da sombra para a luz, então os frutos faíscam, ardem e adquirem transparências extraordinárias. E a água cai aos pingos, a refrescar o quadro, misturada com sol reluzindo, que pincela aqui, pincela ali, por entre as árvores. Mas para ver a cidade e os subúrbios em conjunto sobe-se ao Pico de Barcelos. À medida que me afasto do centro, vão aparecendo casinhas isoladas entre jardins, e as largas folhas das bananeiras, ainda em botão roxo ou onde pende já todo o regime amadurecido. Lá do alto descobre-se enfim o majestoso anfiteatro. É uma grande concha, que termina dum lado no Pico do Garajau e do outro na Ponta de Santa Cruz, com o fundo de serra ondulado. Os vales e as linhas dos talvegues vêm lá de cima rasgados pelos enxurros sobre um leito de pedras em estilhaços, escorregadias e azuladas. Isto escuro, plúmbeo, porque o céu forra-se de nuvens que envolvem os montes. 
Para o espectáculo completo é preciso escolher a manhã, a tarde, ou os dias puros de Inverno, porque o céu da Madeira anda quase sempre nublado, correndo a fumaceira pela barreira imensa que toma todo o horizonte do lado da terra e desce até ao mar em rampa retalhada de culturas e povoada de casinhas que se vão aproximando e apinhando ao chegarem à cidade branca e sensual. Tudo que se avista, à excepção dos cumes denegridos, foi dividido em hortas, em poios de cana muito verdes, em quintalejos de rama, donde irrompem tufos de bananeira, numa amplidão que entontece e deslumbra. São léguas de fertilidade, de jardins, de campos e culturas, que nos impõem o recolhimento e o silêncio. À direita, a serra estende-se até Câmara dos Lobos. Só depois que me afaço – os olhos afogaram-se-me em azul – é que distingo os riscos violetas das encostas, as vivendas lá no alto entre vinhas e pomares, os prédios rústicos pendurados na rocha e agarrados à montanha, aberta ao meio por um rasgão violento e romântico. O carácter desta paisagem bem o procuro... Atrai-nos por todos os sentidos e só tem um desejo – amolecer-nos e decompor-nos... Espreito os jardins dos palácios, onde tudo se conserva alinhado e correcto, e as casinhas rústicas, que são o meu enlevo. Passo e entrevejo um banco. Às vezes basta um muro caiado com meia dúzia de vasos e flores – para ter uma sensação de encanto que não encontro aqui. Falta uma pontinha de melancolia, aquela alma de certos recantos portugueses que, com dois campinhos, uma igreja, um pinheiral e um sopro de erva, nos comunicam uma impressão deliciosa de repouso e saudade. Faltam-me as manhãs enevoadas e pálidas, os dias loiros e desconsolados com algumas sardas. Esta paisagem não se contenta com duas ou três árvores, o ar fino e pouco azul derretido: é exigente e pesada. É materialista e devassa. Ao mesmo tempo é bela.
As palavras pouco exprimem nestes casos: o principal na Madeira é a luz que cria e tanto amadurece o panorama como os frutos, porque a única imagem que encontro para este conjunto é a dum fruto maduro que tomou pouco a pouco, com os vagares de quem não tem mais que fazer, as cores do Sol, as da manhã e do poente, e que chegou a um estado perfeito que delicia e perfuma ao mesmo tempo. A terra emerge da tinta azul com os tons quentes do ananás, que é o morango dos trópicos – paraíso sem frio nem calor, a que se ajunta ainda o sabor dos vinhos bebidos aos golos e cuja transparência se avalia através do vidro erguendo-o para a luz. A luz! dar a luz, seria tudo, mas só um pintor encontra este doirado – azul diluído que envolve toda a paisagem deitada a nossos pés como as mulheres que oferecem os seios duros com impudor e inocência ao mesmo tempo. As próprias árvores que irrompem de todos os lados – estranha vegetação tropical misturada com todas as outras: ciprestes, cactos, plantas envernizadas, entre grupos de pinheiros mansos e grandes seres imóveis e fortes, estendendo a ramaria sobre as ruas, são de carne. Aprendi na escola aquela santa história dos três remos da Natureza – mas aqui as árvores, vigorosas e duma verdura gorda, pertencem sem dúvida nenhuma ao reino animal.
15 de Agosto
Todas as noites não pude pregar olho. Duas, três horas sem dormir. Na rua passam guitarras e rodam automóveis com mulheres. A noite é uma volúpia e o ar deste clima tropical uma carícia logo que desaparece o Sol. De manhã bato para a serra.
O Funchal para o Sul a costa é quase sempre cortada a prumo: Santa Cruz, e lá no alto o Senhor da Serra; uma fenda enorme por onde entra o mar – Machico, e logo o Caniçal à beira de água e o relevo caprichoso da Ponta de S. Lourenço. Para lá do cabo começa a costa norte, a parte mais selvática, mais verde e talvez a mais bela desta ilha tão variada e decorativa. Ao fim da tarde os morros formidáveis, vistos de bordo, sucedem-se num cenário espesso, que se desenrola em manchas escuras, com um resto de fuligem de sol pegada àquela imensidade, que nessa hora ainda parece mais vasta. 
A Madeira é um maciço de serras cortadas a pique na costa oeste, descendo até ao mar na costa norte e mais cultivado nos vales e gargantas inundados pelas águas. O interior da ilha é montanha em osso, com excepção do Paul da Serra. A parte onde se fazem as culturas ricas, a mais agasalhada e onde não cai neve, a que eles chamam folheto, é o Sul, que produz a cana no litoral e a vinha nas encostas. No Curral das Freiras – cordilheira central –curioso vale de erupção, ravina enorme apertada entre vertentes alcantiladas, com profundidades que metem medo e que vão até oitocentos metros, deparam-se povoaçõezinhas perdidas, o Livramento, a Fajã Escura, o Curral, etc. Este sitio revolvido e dilacerado explica talvez a formação da ilha, onde se encontram mais vestígios de crateras, com indícios de erupções relativamente recentes, nos charcos do porto Moniz, na Caniça, no Caniçal, etc. Desfilam ainda diante de mim as gargantas apertadas, só sombra, e uma encosta iluminada a toda a luz – profundas vertentes alcantiladas, num rasgo a prumo – cerros pedregosos gerados pela erupção, a ribeira que escorre no sopé dos picos Ruivo e Canário – aldeiazinhas tão isoladas no alto de morros – o Pico da Figueira, o Curral, a Fajã Escura – barrancos formando o leito de torrentes – terrenos desolados e pedregosos, por onde deve andar o diabo em dias de vento. Depois, outra vez a paisagem se modifica: os montes figuram castelos arruinados e ferozes da Idade Média. É outra a vegetação – loureiros e o til nos fundos onde encharca a humidade. Desolação e surpresa, contrastes, amplos cenários de serra e mar, como no alto do Senhor da Serra, onde os pulmões são pequenos para se encherem daquela atmosfera perfumada. Agora o sítio triste entre penedia negra, e cheirando a peixe, da Câmara dos Lobos, logo algumas aldeias, à beira de pequenos retalhos cultivados, com molhos de lenha secando à porta das choupanas. Às vezes um açude para a rega, a greta donde escorre a água, e lá para o fundo o abismo, com um espigão tremendo ao lado, que faz sombra e pavor: há sítios destes no Curral onde o sol só entra durante cinco ou seis horas por dia.
Percorro as estradas e os caminhos à primeira luz ou à tarde, quando o Sol se afunda atrás dos montes, aureolando-os. Surpreendo os recantos, as casas enegrecidas das aldeias, a vida rural e a vida marítima e as culturas variadas, porque na Madeira todos os climas são possíveis, desde o do Norte, cheio de frio, até ao tropical – e recolho uma variedade de quadrinhos que só eles formariam um volume compacto...
Para viajar no interior da Madeira só há dois processos cómodos – o da rede suspensa por uma vara às costas de dois homens, que caminham apegando-se a paus, e o carro de bois. Mas a rede faz sono, o carro é melhor. Assente em travessas de madeira, os cursões, este lindo meio de transporte tem dois sofás de verga forrados de paninho com pequenas flores azuis e ê protegido do sol e da chuva pelo toldo com cortinas. Ao lado vai o homem, de aguilhão em punho, que fala aos bois, e à frente um pequeno bojeiro. É o meio mais original de correr as ruas e as estradas, e ao mesmo tempo o mais rápido, porque os bois trotam e galopam quando é necessário. Sem a brutalidade inexpressiva da máquina nem a rapidez estúpida do automóvel, o carro do Funchal, que nos permite ver e comentar, dá-me a impressão de que voga e de que regressámos aos tempos primitivos e heróicos – é conjuntamente carro e barca.
Lá vamos pela calçada, subindo sempre entre castanheiros altos como torres. O castanheiro é uma árvore prodigiosa. Sempre que os encontro, estremeço e paro. Castanheiros e água que corre, água que salta e vem ao nosso encontro pela calçada abaixo e nunca mais nos deixa até lá acima, regando ora uma, ora outra quinta, distribuída por canais – água que vem da serra e todas as manhãs dá os bons-dias casa a casa: – olá, olá, olá! – fala a todas as árvores e presta novo viço às flores exaustas. Castanheiros e palmeiras agitam no ar as comas delicadas. Cheira-me tanto a fruta que espreito para dentro das casinhas impenetráveis: só distingo manchas coloridas de flores e pomares de rainhas-cláudias, que o sol amadurece e trespassa. Um muro dum e de outro lado. E isto ainda não basta: gelosias ciumentas tornam ainda mais cerradas e poéticas as habitações solitárias. Que se passa ali dentro? Um grande amor ou um grande sonho? Isto fez-se para se viver isolado com uma mulher e volúpia, entre as paredes das quintas sumptuosas, donde a verdura trasborda, e até nos casebres, tão ricos como palácios. Duns e de outros se assiste ao espectáculo extraordinário do mar e da serra, num cenário luxurioso e sensual. É um panorama que lembra carne viva; é um panorama, Éden de volúpia, que nos entra pelos olhos e pelo nariz ao mesmo tempo. As ramadas baixinhas, vergando ao peso dos cachos, oferecem-nos as telas doiradas, a folha esguia da cana sobre as leiras, a bananeira atira-nos os cachos amadurecidos ao sol vivo e forte que cai a jorros. Lá em cima apetece a gente deitar-se sob as árvores, penetrar em todas as quintas ainda adormecidas, estender-se em todos os esconderijos verdes que agitam as folhas no ar tépido, no ar mágico, que respiro com sofreguidão e onde anda misturado o cheiro a fruta, o pique a mar, a alma dos vegetais e um silêncio cheio de vida.
– Iá! iá!
O cursão desliza sobre os seixos. O rapaz vai adiante dos bois com o enxota moscas na mão, e ao lado caminha o homem, que fala aos bichos:
– Iá! iá!
Não os aguilhoa, nem é preciso: com um cuidado extraordinário, pondo os pés e retesando os músculos, vão subindo os degraus sucessivos da calçada íngreme que é o caminho do Monte. De quando em quando o rapaz mete o rolo de pano ensebado debaixo do cursão, para as travessas da caranguejola deslizarem melhor.
– Iá! iá!
O largo da Fonte, um grande terreiro e meia dúzia de plátanos enormes, que enchem de majestade, de frescura e de sombra este sítio suspenso entre o céu e o mar, onde fica a igreja do Bom Jesus e aos lados os casarões dos sanatórios. Só estas árvores valem um império.. Por ora não quero olhar para trás... Entramos numa região mais severa, escura de pinheiros, e vou reparando em quem passa a esta hora matinal... Nas primeiras tintas da manhã já as inglesas se deixam escorregar a toda a velocidade pela calçada, dentro do cesto de verga que o homem guia, impele ou detém, manobrando com os pés. Passa por mim uma velha levando os frangos para o mercado nos cursões, rapazes com molhos de lenha e lavradores que empregam o mesmo meio de transporte para as carradas de mato. Entre a fita que decorre depara-se-me um casal antigo, ela feia e encarquilhada, com a velha capa de recortes, ele seco, de barrete de borla na cabeça e a volta com que no Inverno agasalha as orelhas, ambos compenetrados e solenes como quem vai cumprir uma missão. São de outros tempos e comovem-me. Encontro depois pela calçada, entre o ruído das regas – as águas correm sempre na va1eta ao lado do
caminho estreito –, mulheres carregadas à cabeça e apegadas a varas, moços com cestas de batata-doce ou de semelhe, leiteiros com o pau que tem o jeito curvo dos ombros e no qual levam duas bilhas, uma a cada ponta...
Chego ao Terreiro da Luta e aí volto-me. A primeira impressão é só de luz, de luz doirada e de montanha verde que emerge do mar violeta. Poucas tintas e êxtase. Nem uma nuvem nem um átomo de poeira. Uma luz delicada e moça, um ar que se bebe a plenos haustos e ao mesmo tempo não sei o quê de puro e de sensual que sobe à cabeça e que a gente olha com receio e ternura. Esta manhã é um momento delicioso na vida, diante do conjunto perfeito que saiu agora das mãos de Deus e que voga extasiado no éter. É imenso e é nada: é um mundo, e a gota de água suspensa, e que reflecte a luz do universo, dura um segundo e vai cair para sempre. A ilha, com a sua verdura tropical, sai do mar violeta e lá no fundo o Funchal, todo branco, acorda e espreguiça-se ainda tonto de sono..."
Raul Brandão, in As Ilhas Desconhecidas, Quetzal Editora

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Winston Churchill faleceu no dia 24 de Janeiro de 1965

 

"Andrew Roberts, autor e biógrafo de Churchill, em Churchill: Walking with Destiny citou Robert Rhodes James ao descrever Winston Churchill: “Era multifacetado. Um dos biógrafos de Churchill, Robert Rhodes James, descreveu-o como um "político, desportista, artista, orador, historiador, parlamentar, jornalista, ensaísta, jogador, soldado, correspondente de guerra, aventureiro, patriota, internacionalista, sonhador, pragmático, estratega, sionista , imperialista, monárquico, democrata, egocêntrico, hedonista, romântico ”. Ele era de facto tudo isso, mas a essas características também poderiam ser adicionados: coleccionador de borboletas, caçador, amante de animais, editor de jornal, espião, piloto, cavaleiro, romancista e chorão (este último foi o apelido dado pelo duque e duquesa de Windsor).
          Andrew Roberts, Churchill (p. 968). Penguin Publishing Group. Edição Kindle. 
    
Winston Churchill nasceu  a 30 de Novembro de 1874, no palácio de uma família abastada. Apesar de Churchill não ser o nome de sua família, pois o verdadeiro nome era    Marlborough,  decidiu adoptar  o nome de um avô distante (tetravô). O pai, lorde Randolph Churchill,  foi um político do Partido Conservador, parlamentar e Ministro das Finanças. A mãe,  Jennie Jerome,  era filha de um financista milionário dos EUA. Apesar de toda a riqueza da família, estavam frequentemente endividados devido aos constantes  gastos muito elevados.
Winston Churchill foi primeiro-ministro da Inglaterra de 1940 a 1945 e de 1951 a 1955. Foi também membro do Parlamento britânico (Câmara dos Comuns) desde 1900 até ao fim da vida, em 1965. É considerado um dos maiores responsáveis pela vitória dos Aliados por ter enfrentado Hitler e aproximado Roosevelt e os EUA do conflito.
Churchill conheceu como poucos, o vício e a virtude, a popularidade e o desprezo. Era um exímio frasista, irónico, sagaz, sucinto a ponto de algumas de suas construções terem entrado para a história – foi ele, por exemplo, o primeiro a definir os países comunistas como aqueles por trás de uma "cortina de ferro". A sua frase mais famosa é o apelo para os britânicos resistirem aos nazis, em que ele dizia não ter nada a oferecer, a não ser sangue, suor e lágrimas (uma frase com ressonâncias bíblicas).
Winston Churchill faleceu no dia 24 de Janeiro de 1965, aos 90 anos de idade, no distrito Kensington, de Londres, Reino Unido. O motivo da morte foi um derrame. Já havia tido outros, e os médicos alertavam-no  quanto à sua forma de vida. Por esse motivo, tinha renunciado,  já há dez anos,   ao cargo de Primeiro Ministro  e, há um  ano,  ao   Parlamento .
No  seu funeral, estavam presentes diversos chefes de Estado, militares e até a rainha Elizabeth II. Foi transmitido pela Televisão e visto por mais 300 milhões de pessoas no mundo. O funeral realizou-se  após seis dias, em 30 de Janeiro de 1965. Os restos mortais navegaram pelo Tamisa, no Havengore, uma barcaça de 26 metros, até à Catedral St. Paul. Foi sepultado no túmulo da família no cemitério de Bladon, Oxfordshire.
Ainda em vida, recebeu diversas honrarias, como a estátua que fica em frente ao Parlamento, inaugurada em 1955. Dos EUA, recebeu o título de cidadão honorário, em 1963, ocasião a que já não pôde ir, devido aos seus problemas de saúde, e foi representado pelo filho.
Em 2015, por conta dos 50 anos de sua morte, o então primeiro-ministro David Cameron preparou uma longa homenagem, que refez a peregrinação no Tamisa. É lembrado como grande chefe de Estado e estratega militar, chamado de Velho Leão pela sua coragem em enfrentar Hitler na Segunda Guerra."
Winston Churchill e Franklin D. Roosevelt

Algumas frases de Churchill:
O vício do capitalismo é a desigual distribuição das riquezas; o do socialismo é a igual distribuição das misérias
Tem inimigos? Bom. Significa que lutou por algo, alguma vez na vida.
+ Os problemas da vitória são mais agradáveis que os problemas da derrota, mas não menos difíceis.
+ Fanático é aquele que não consegue mudar de opinião e não aceita mudar de assunto.
+ Da deputada Nancy Astor, para ele: Se o senhor fosse meu marido, dava-lhe  veneno.
Resposta de Churchill: Se eu fosse seu marido, eu tomava.
+ Se vai passar pelo inferno, não pare de andar.
+ Se tem dez mil regras, destrói todo o respeito pela lei.
+ As árvores solitárias, quando conseguem crescer, crescem fortes.
+ O sucesso consiste em ir de fracasso em fracasso sem perder o entusiasmo.
+ A história será gentil comigo, já que eu pretendo escrevê-la.
+ A política é a habilidade de prever o que vai acontecer amanhã, na semana que vem, no mês que vem e no ano que vem. E ter a habilidade de explicar depois por que nada daquilo aconteceu.
+ Se Hitler invadisse o inferno, eu faria pelo menos uma referência favorável ao diabo na Câmara dos Deputados.
+ Toda a história do mundo pode ser resumida pelo facto de que, quando as nações são fortes, nem sempre são justas, e quando elas querem ser justas já não são mais fortes.
+ Num de seus discursos durante a guerra:
Hitler sabe que terá de nos vencer nesta ilha ou perder a guerra. Se pudermos resistir-lhe toda a Europa poderá ser livre e a vida no planeta poderá seguir adiante para horizontes abertos e ensolarados. Mas, se cairmos, então o mundo inteiro, incluindo os Estados Unidos, incluindo tudo o que conhecemos e do que gostamos, vai afundar no abismo de uma nova Idade das Trevas, ainda mais sinistra e talvez mais prolongada pelo uso de uma ciência pervertida.
Que nós nos unamos para cumprir nosso dever, e desta forma nos elevemos de tal forma que, se o Império Britânico e a sua comunidade britânica durarem mil anos, as pessoas ainda digam: “aquele foi seu melhor momento!”

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Glosa sobre o fanatismo

 

Glosa sobre o fanatismo
 
O fanatismo embrutece
ou a estupidez fanatiza?
A burrice não me enternece
e o fanático barbariza.
 
O fanático tem certezas,
onde certezas não existem:
estão repletas de bichezas
que são nocivas e persistem.
 
A fé não é conhecimento,
pelo menos, até mais ver.
Transforma o mundo em turbulento
e estupora o bom viver.
 
Crê quem desiste de entender,
por isso o crente é perigoso:
quando não sabe convencer,
vira tirano afanoso.
 
O fanático não tolera
aquilo que não compreende:
torna-se logo uma fera,
filha bastarda de duende!
               25.10.2023
Eugénio Lisboa, poema inédito
 
Dou isto à meditação dos actuais “iluministas”, totalmente embevecidos com os fanáticos que por aí proclamam, aos gritos, um óbvio desejo de hegemonização religiosa do planeta, para maior glória de um deus soturno e nada misericordioso, que veneram. Eles nem sequer escondem ao que vêm. E os “iluministas” acolhem-nos de braços abertos, decididos a serem, por eles, devorados. Já se tem visto e a História, afinal, repete-se.
O fanatismo e a ignorância militante são os maiores inimigos actuais deste pobre planeta. E o bem intencionismo enviesado dos “iluministas” dá à catástrofe uma boa ajuda
.

Vida militar

                                  
                A melhor gente que conheci foi na tropa
                         Raul Brandão, Memórias

Revisitámos as "Memórias" de Raul Brandão para extrair, de um dos capítulos, um curioso e ilustrativo excerto sobre a vida militar. Raul Brandão nasceu na Foz do Douro (Porto), em 1867 e morreu em Lisboa, a 5 de Dezembro de 1930. Foi Militar do Exército Português até 1911.

Vida militar
por Raul Brandão
" Durante o tempo que fui à tropa, vivi sempre enrascado, como se diz em calão militar. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam no quartel ( era o Cibrão na secretaria); castigo para um lado, castigos para outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes. Levo para a cova a imagem daquelas retretes como uma das coisas mais infames que conheci na vida. O inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior...
O Cibrão tinha essa ideia da tropa: - Na forma ninguém mexe nem com a ponta do nariz; quando um soldado levanta uma perna, todos os soldados , ao mesmo tempo, levantam a mesma perna com precisão mecânica. Era um exército de relojoaria inútil, com alguns oficiais modestos e pobres soldados bisonhos, que atravessavam o quartel sem entenderem nada, como eu, aterrados. - Às armas! - era o Cibrão que entrava e tudo tremia nos seus fundamentos.
Depois da Escola fui colocado como alferes no 20, Guimarães. Outra louça. Achei-me numa casa de campo sem conforto nenhum, mas a parada da guarda era às onzes - entrada - e tocava à ordem à uma - saída. Meia dúzia de soldados no velho casarão negro e em osso, e oficiais a jogar o gamão , numa sala, ali encantados desde o princípio do mundo.
(...)
Aprendi logo que o importante na tropa era o servicinho, e o servicinho consistia em escrever no relatório de inspecção estas palavras mágicas - Sem novidade. Aprendi à minha custa , porque um dia mandei para o hospital ( o médico Trigo ninguém o apanhava, sempre nas saias da Pavôa!) um soldado a escorrer sangue , a quem um cabo abrira a cabeça com uma lata do rancho, foram elas! Atrapalhação! Auto. Gritaria. A amiga do cabo foi queixar-se à mulher do coronel, que me descompôs, indignado. - Reforme o relatório! Reformei o relatório e apressadamente escrevi : Sem novidade. Jurei que não me metia noutra. Também percebi logo aos primeiros meses de serviço que aquela gente tinha medo de tomar responsabilidade dos seus actos. Do cabo ao comandante , todos sentiam o mesmo horror da responsabilidade. - Meu coronel, amanhã é domingo, peço licença para ir ao Porto ver a família. - Dou-lhe licença, mas se acontecer alguma coisa não tomo a responsabilidade. Conhecidos estes dois fracos e com o almanaque do exército na algibeira, a vida era cómoda e o futuro seguro: quem vivesse cem anos chegava, pelo menos, a major. Quer isto dizer que não houvesse oficiais excelentes? Havia-os , mas levavam ou uma vida ignorada ou uma vida dos diabos. Um comandante sério , digno, sabedor, que tive logo no princípio da carreira ( era um prático), foi reformado pelo Pimentel Pinto. Em Guimarães conheci vários exemplares de chefes curiosos. Um, pedia dinheiro a torto e a direito, aos oficiais, aos sargentos e aos cabos, tendo começado por pedi-lo a um ministro estrangeiro, ao Assis Brasil ( seiscentos mil reis ou um tiro na cabeça!). Outros não passavam de manequins , analfabetos e cheios de medalhas. Mas também convivi com oficiais simples, pobres e modestos. A melhor gente que conheci foi na tropa.
(...)
Resumindo: eis alguns tipos de oficiais que conheci: 1º. , o oficial modesto, apagado cumpridor dos seus deveres, com um pequeno soldo e uma vida difícil e honrada. Ninguém fazia caso dele. Havia-os em todas as armas - conheci um do estado-maior no quartel -general de Lisboa, que se deitou dum quarto andar à rua por dificuldades de vida. 2º. , o oficial que não queria responsabilidades . - O que é preciso , meninos, é que o servicinho corra! E fazia o menos que podia, fugindo do quartel como da peste. 3º. , o oficial parlapatão, almoçando regularmente e ceando regularmente. 4º. , o oficial político, que vivia nas antecâmaras dos ministros ou deputados nas cortes, cheio de comissões e medalhas. O menino bonito da tropa. Mas diga-se : alguns desses tipos modestos, a quem um pataco desequilibrava o orçamento, e que andavam de guarnição em guarnição, com as mulheres e os filhos vestidos e calçados, fazendo milagres para que o soldo lhes chegasse, foram do mais digno que encontrei por esse mundo.
(...)
Nos quartéis-generais e nos ministérios conheci outra gente mais complicada e pior, e entre outros, o general Sepúlveda , no Porto e, em Lisboa o Pimentel Pinto. Sepúlveda era um homem de bigode e pera e pernas arqueadas, com a luneta acavalada no nariz e a chibata na mão. Queria saber tudo, espiolhava tudo e até altas horas da noite dava ordens à guarnição aterrada.(...) Pouco miolo lhe restava no caco - pouco é favor - e esse empedernido. Ai de quem lhe caísse no desagrado! Andavam os oficiais transferidos por dá cá aquela palha. (...)
No quartel-general de Lisboa fui encontrar um chefe de estado-maior no mesmo género. Chamavam-lhe o Burro, não porque a sua estupidez fosse por demais notória , mas porque a sua má-educação deixava a perder de vista a das alimárias. Levava tudo a coice. Só por castigo se podia servir com ele , que ainda me tratou pior quando soube no desagrado do Pimentel Pinto, que um dia me mandara chamar ao Ministério da Guerra para me dizer o seguinte: - O senhor sabe que o posso transferir para Bragança? Então continue a escrever em tal jornal...
(...)
Que falta? O principal , o soldado, e nestes custa-me a tocar nos pobres soldados portugueses, que formam a parte mais sólida do exército, sem ninguém dar por eles. Ninguém os ouve. Só fazem revoluções quando os oficiais os incitam. Comem o que lhes dão como os filhos de João, e obedecem, servem sem pio, e com o elogio do próprio Napoleão, que devia saber alguma coisa do assunto.
Nunca ninguém os quis elevar e, apesar disso, foram sempre excelentes, duma tranquilidade espessa e material de água choca. Nunca ninguém os quis elevar ? Minto. Homem Cristo tentou, e se o ouvissem, se em cada companhia os oficiais ensinassem a ler os soldados , o analfabetismo levava um golpe certeiro e fundo e o exército tinha-se modificado. Ninguém quis. Acentuou-se nos quartéis um movimento de protesto: acabava a pânria, o gamão e a má-língua - acabava tudo! Era a transformação radical do exército português, porque no dia em que o soldado fosse mais instruído o oficial tinha de ser muito mais instruído ainda , e de saber impor-se para que o respeitassem. Porque o oficial julga o soldado, mas o soldado também o julga, e às vezes com mais justiça. É raro enganar--se. E não são os brandos, os choninhas, de quem ele gosta; os severos não lhe metem medo, se aplicam os castigos na medida da culpa e prontamente. Quase sempre os oficiais mais rigorosos são os que saíram da fileira , carregaram com a mochila e sentem ainda nos ossos a dureza da tarimba. O que o soldado não perdoa é a hesitação dos atarantados, é a injustiça , é o furto do rancho, quase vulgar antigamente e que era talvez a única maneira de alguns oficiais pobres viverem sem dívidas. Havia-os que esperavam o mês do rancho para as pagarem. Dizia-se num tempo pouco anterior ao meu: - Fulano anda tão mal fardado... - Manda-se um mês para o rancho! Vergonha, sim - mas vergonha principalmente para o Estado, que não pagava convenientemente aos que o serviam, e que não acabava com o exército nem sabia dignificá-lo, deixando muitos oficiais quase à fome. Meu pobre soldado português, às vezes batido, às vezes tratado do alto por bonifrates que nem sempre mereciam comandar-te - e tu pronto a obedecer. Nunca faltaste nas horas em que te exigiam a vida. Bem sei que, onde a onde, foi preciso pôr-te à frente oficiais estrangeiros para dares a medida do teu valor. Mas a culpa não foi tua. Quem te procurou encontrou-te e é de ti, meu amigo, que por fim de contas me restam ainda saudades."
Raul Brandão, in Memórias ( Volume III) , Quetzal Editores, 2017, pp. 503, 504, 506, 507, 508, 510, 511

Sobre o autor
A partir de 1912, "Raul Brandão, já reformado no posto de capitão do exército, alternaria entre a sua “Casa do Alto”, na Nespereira (Guimarães), e Lisboa, onde passava parte do inverno.(...).
O primeiro livro de Raúl Brandão surge em 1890: Impressões e Paisagens. Em 1891, talvez por pressão familiar, talvez por sustento, Raúl Brandão troca o curso de Letras pela Escola do Exército. Tinha 24 anos. Viria a ser, sem convicção e com horror à férrea disciplina da caserna, um militar de carreira, reformando-se aos 44 anos. Colaborou com várias publicações: O Século, O Dia, Gente Lusa, Seara Nova entre tantas outras. Conviveu com Sampaio Bruno, Joaquim de Araújo e Basílio Teles, sem esquecer os seus amigos de adolescência: António Nobre e Justino Montalvão. Foi amigo de Columbano Bordalo Pinheiro, que lhe pintou dois quadros. Ele próprio dedicou-se à pintura como amador e dessa sensibilidade dá conta em obras como Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas.
Entre as suas obras avultam títulos como: Os Pobres, Húmus, Os Pescadores, O Pobre de Pedir, e as peças de teatro O Gebo e a Sombra e O Doido e a Morte. Muitas obras seriam dignas de menção, como A Farsa, El-Rei Junot, A Conspiração de Gomes Freire, O Rei Imaginário. As Memórias em três volumes constituem um dos exemplos maiores do género na nossa literatura. Memórias pessoais, memórias do seu tempo político e cultural, memórias das pessoas com quem o autor privou ao longo de uma vida consagrada à literatura e ao conhecimento dos outros - as recordações de Raul Brandão transportam-nos para um tempo, para uma sensibilidade e para um modo de escrita irrepetíveis: condensam um talento e um génio literário único; retratam alguns momentos de grande agitação política (as duas primeiras décadas do século xx)."
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quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Senti‑me, pela primeira vez, underground!

O 7.º ano ia ser o último ano de vida em Lourenço Marques
 por Eugénio Lisboa
"O 7.º ano ia, pois, ser o último ano de vida em Lourenço Marques. Mas, naquelas idades, um ano é muito mais do que um ano: é uma eternidade. No princípio de Setembro (1946), quando as aulas começaram, eu sabia, de um saber que não era bem sentir, que, dentro de 12 meses, partiria para Lisboa. Mas 12 meses, como digo, era muita coisa e portanto eu não sentia ainda a “angústia das partidas”, de que fala o Gide nas Nourritures Terrestres. Lá muito mais para diante, essa coisa horrível iria acontecer. Mas, dali, ainda não conseguia vê‑la com muita nitidez! Havia que fazer o 7.º, com disciplinas novas como Filosofia e Ciências Geográficas (e também Biologia que, com um senhor doutor Rosa Pinto, muito alto, muito forte e muito sério – e com ar de muito estudioso – ameaçava ser coisa de se lhe tirar o chapéu). Felizmente que a Matemática, essa maravilha, continuava com o “Bimbo” – e isso era festa garantida! Nas Fisico‑Quimicas, continuava o “Chinó”, mas perdera‑lhe, por completo o medo e o respeito: não custava nada ser melhor do que ele, todo confinado na mesma rotina estreita e chafurdando sempre nos mesmos problemas, tirados sorrateiramente do livro do Mahler! Por fora, fartava‑me de fazer problemas e ler livros em que o “Chinó” nunca meteria o dente!
Foi um ano bom e cheio e com muita festa intelectual. Com o sumptuário Cardigos em Geográficas e a diserta e bem disposta Maria Luísa Soares em Filosofia, mais a Matemática do “Bimbo” – aquilo não podia ser melhor. Mas não quero ser injusto: o Rosa Pinto, cheio de proa e altura, afigurava‑se antipático, mas era um óptimo professor, extremamente actualizado, no campo da Biologia, que expunha com grande precisão e até sedução. Assumia, porém, sem querer, um ar distante, frio, magistral, de implacável castigador: não dava confiança. Ainda no primeiro período do ano (que terminava em Dezembro, no dia 18), o Rosa Pinto, que tinha ficado interinamente como reitor, introduziu uma novidade alarmante: pontos de apuramento, sem aviso prévio – o professor chegava, um belo dia, e dizia, como quem castiga: hoje há exercício de apuramento! Houve um autêntico levantamento em todo o liceu! Os activistas mexeram‑se e organizaram uma greve, que foi bem sucedida. As aulas paralisaram por completo. Embora a medida decretada não se aplicasse aos alunos do 7.º ano, resolveu‑se que entraríamos na greve, por razões de solidariedade. Embora eu tivesse dúvidas, quanto à metodologia – deveríamos, pensava eu, ter pedido “conversações” com o reitor, antes de se decretar a greve – entrei nela, sem hesitar e até com alguma alacridade. E paguei a factura devida. O reitor recuou (acho que muitos professores eram contra a medida), mas, no final do período, o meu “procedimento” foi classificado como “sofrível”, em vez do “bom” tradicional. Com esta “nódoa” no “comportamento”, ou antes, no “procedimento”, embora, na classificação total das disciplinas, eu tivesse um excedente de 14 valores sobre a soma necessária para o “Quadro de Honra”, aquele “sofrível” impediu‑me, pela primeira e última vez, de fruir essa “honra”. Em 21 períodos obtive essa distinção 20 vezes, tendo falhado uma, por grevista... Confesso que me não sinto mal. O meu pai portou‑se à altura: não me repreendeu, mostrou até um certo orgulho e foi ao liceu manifestar a sua indignação: que tudo aquilo era uma vergonha e uma completa falta de senso. Para uma pessoa pacífica e respeitadora das autoridades, aquela “saída” do meu pai surpreendeu‑me. Também não foi bonito ver a mal disfarçada satisfação de alguns colegas (os clássicos “da corda”), ao verem‑me, ao fim de tantos anos, apeado do pedestal. O rufia do Alto‑Mahé, afinal, não era imbatível... Confesso que tudo isso me afectou pouco: o desprezo que me merecia essa rezinga era total. Por outro lado, o 17 a Matemática e o resto era consolação que bastava! De aí em diante, seria só a subir – e isso me chegava! Nesse primeiro período, o meu “Quadro de Honra” foi outro: ter ido levantar a minha pasta, que ficara encostada à parede da sala de aula, mesmo nas barbas do “Chinó”, que me sorria com um pasmo aparvalhado, enquanto lhe voltava as costas e me reunia aos grevistas (de alguns dos quais nem gostava por aí além, diga‑se de passagem). A greve foi prolongada, pelo número de faltas que vejo na caderneta, embora uma dessas faltas deva corresponder a um dia que fiquei doente com uma otite agudíssima.
Não foi esta a minha primeira greve, mas, na anterior, o reitor, que era o Eurico Cabral e não o Rosa Pinto, não retaliou. Aliás, o motivo foi outro. As agências tinham noticiado o fim da guerra e nós exigíamos feriado comemorativo da vitória dos aliados. O reitor aguardava instruções do Governador‑Geral e, como elas não vinham, nós perdemos a paciência. Eu, em particular: que diabo, sempre contribuíra para a vitória, quando destruíra, à fisgada, a montra da loja do Bonk! Lembro‑me bem – as coisas que a nossa memória regista com particular acuidade! – lembro‑me bem, dizia, de que, nesse primeiro dia de greve, fui para casa com o meu colega Alberto Parente, que me mostrou uma revista, na qual se falava de dois autores que eu não conhecia: Jean‑Paul Sartre e Federico Garcia Lorca. O que se dizia da vida e morte do escritor espanhol e da filosofia do francês, no contexto de uma greve que devia encanitar o governo – trazia‑nos um gostoso sabor de sedição. Senti‑me, pela primeira vez, underground! Por fim, relutantemente, acho eu, lá veio a ordem para tolerância de ponto: com o dia de greve, encaixámos dois feriados. Soube que nem nozes. E desta vez, como disse, não houve punições: o reitor, como nós, gostava de comemorar o afocinhanço das tropas do Eixo!”
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula -  Memórias- I - Lourenço Marques (1930-1947), Editora Opera Omnia, Novembro de 2012, pp. 166-169

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Viajar por um dos países mais bonitos da América Central

Viajar é desaparecer, uma incursão solitária por uma estreita linha geográfica até ao esquecimento. 
                  Paul Theroux, O Velho Expresso da Patagónia
"A Costa Rica é um dos países mais bonitos da América Central. Este filme da Scenic Relaxation em 4k apresenta as paisagens e a vida selvagem da Costa Rica. Da abundância de animais na floresta tropical às praias tropicais, a "Pura Vida" da Costa Rica está à espera de ser vivida. Descubra qual é o seu lugar favorito na Costa Rica?"
 0:00 - Amazing Costa Rica
 8:48 - Coastline & Beaches 
13:20 - Animals of Costa Rica 
18:10 - Volcanoes
 22:21 - Cities 
 23:36 - Waterfalls & Rivers
 28:37 - Rainforests & Nature
 33:00 - Costal Towns & Luxury Real Estate 
 36:29 - "Pura Vida" Costa Rica
 39:56 - Costa Rica's Landscapes
 58:17 - Outro

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

O carro, a jardineira , a calçada

O carro, a jardineira , a calçada
por Carlos Drummond de Andrade
No momento, a situação nas calçadas de Copacabana está mais ou menos refletida neste diálogo de mil vozes:
— Ei, tira essa jardineira daí.
— Pra botar cano no lugar dela?
— Tira também o carro, ué.
— Pra botar aonde? Noutra calçada?
— Melhor deixar a jardineira e o carro, cada um na sua fatia de calçada.
— E o pedestre?
— Esse já foi tirado há muito tempo.
— E por que não o carro, a jardineira e o pedestre, com lugares marcados?
— Precisa deixar espaço pros carrinhos de bebê. Bebê ainda não é pedestre.
— Mas babá é.
— Então vamos repartir a calçada entre o carro, a jardineira, o pedestre, o bebê e a babá.
— Deixando uma área pras cadeiras dos bares de praia, no calçadão.
— Assim não dá. Só se houver revezamento.
— E meu pequinês, onde é que meu pequinês vai parar quando tiver necessidade?
— Afinal de contas, a calçada é ou não é do povo?
— Não. É dos bacanas que moram nos edifícios e não deixam a gente estacionar na calçada.
— Mas o cano também é dos bacanas.
— Só que de outros bacanas que não moram nos edifícios daquela calçada.
— Então é uma guerra entre bacanas.
— Eu não sou bacana. Sou povo e estou pagando meu carro financiado. Onde é que eu vou estacionar?
— Em cima das flores.
— O senhor parece que não gosta de flor. Prefere gasolina.
— Ora, meu amigo, quem gosta de flor plante elas no vaso, dentro de casa. Eu também gosto de música, mas não vou curtir meu som na calçada.
— A jardineira é medonha, o cano é funcional.
— Sem essa. O cano polui, e toda planta é legal.
— Bobagem, a Celurb apreender as jardineiras. Os próprios canos liquidam com elas.
— Se fosse só com as jardineiras. Um deles, em cima do passeio, mandou minha tia para o hospital.
— Eu não digo que calçada é muito perigoso? O mais seguro é não sair de casa, sob pretexto algum.
— É, mas cano na calçada tem uma vantagem. Não deixa bicicleta atacar. Bicicleta é fogo: olha só esta cicatriz na minha canela.
— Não estou interessado na sua canela. Quero saber é quem vence esta parada: a maquina ou o homem?
— A máquina também faz parte do homem, é prolongamento dele, do corpo dele. O homem está dos dois lados, brigando, chateando-se.
— Não terá um terceiro lado, o lado da paz?
— Tem sim, vovó. Tem a Praça da Paz, que fica em Ipanema.
— Engraçadinho. Vê lá se tem paz na Praça da Paz. Tem é cano.
— Viu? Foi a conta de fundir o Estado do Rio com o Rio, e carros de Barra do Piraí vem atochar nossas calçadas. Só carioca é que não tem direito.
— Separatista! As calçadas também devem ser fundidas!
— Ah, meu Deus! Eles estão roubando nossas jardineiras! Essas folhagens! Nossos mini espaços verdes!
— Numa hora dessas, com o rapa levando as jardineiras, médico nenhum é bobo de aparecer!
— As jardineiras estão impedindo o progresso do País!
— Amanhã plantarão bosques na calçada e botarão leões e tigres, jacarés e cascavéis lá dentro, pra devorar a gente!
— Sempre achei que esse negócio de flor na calçada é sabotagem contra a indústria automobilística nacional!
— Perdão, mas alecrim e espada-de-são-jorge são muito mais nacionais do que os automóveis fabricados por aí!
— Pelo visto, a confusão é geral.
— A confusão já era. Isto é a super confusão.
— Qual, o Rio de Janeiro não existe.
— Agora é que você percebeu isso? “
Carlos Drummond de Andrade, in Boca de luar”, Editora Record, Rio de Janeiro (RJ), p 37

domingo, 19 de janeiro de 2025

Ao Domingo Há Música

 

PERDAS
 
Com complacência, falamos
das perdas que fomos tendo,
com os anos: lamentamos
todos que fomos perdendo.
Foram perdas, é um facto.
Mas quando vemos a guerra
e a dimensão das perdas
que ela, à toa, enterra,
de mistura com a merda,
é então que percebemos
como é, por fim, tão nada
tudo aquilo que perdemos,
nesta Terra cancelada!                
                      09.04.2022
Eugénio Lisboa, Poemas em Tempo de Guerra

Os poetas , dizem, são os sábios do mundo. Sintetizam em poucas palavras tudo aquilo que não somos capazes de dizer. Palavras duras, por vezes. Que ferem, que cortam , que dissecam e vão ao âmago da essência que a compõem. E, quando o desejam,  tecem,  também, palavras belas que nos aquecem e iluminam.
Neste tempo conturbado, em que a dilacerante  palavra Perdas domina, tentamos procurar, para lá do que foi, o que tanto desejamos nesta Terra por demais cancelada.
A Música  faz parceria com a poesia. Procurar nela algum alento é talvez  a possibilidade imediata . Há vozes que enchem qualquer momento . A sonoridade que enformam é tão ampla e harmoniosa que nos toma sem resistência.

Eva Buchmann, em My Heart sings. A cantora e o pianista americano de Jazz Jason Moran juntaram-se à Frankfurt Radio Big Band, no Deutsches Jazz festival Frankfurt 2024, para interpretarem este  original de Duke Ellington. O registo foi realizado em 26 de Outubro de 2024, em Frankfurt.
 
Kelela, em Far Away (Official Video).
 

sábado, 18 de janeiro de 2025

Ter lá estado e ter visto


A Europa ficara em cacos
por Eugénio Lisboa
"Acabávamos de sair de uma guerra (lá fora, é certo, mas acompanhada, de perto, “cá dentro”).  Nesse contexto, tocaram‑me, profundamente, dois livros, dos tais que meu pai me trouxe quase à socapa: um deles, Arco‑Iris, de Wanda Wassilewska, sobre a invasão da URSS pelas tropas de Hitler. O livro – um romance – foi galardoado com o “Prémio Staline” de 1943,o que não o impediu de ser traduzido e publicado no Portugal de Salazar, pela “Livraria Tavares Martins”, do Porto, em 1945. E de ser um extraordinário êxito de vendas nos Estados Unidos da América. Wanda Wassilewska era uma jornalista e escritora polaca, nascida em Cracóvia, em 1905, e filha de um ilustre filólogo polaco. Depois de um brilhante curso universitário, dedicou‑se, por algum tempo, ao ensino, mas o jornalismo atraiu‑a definitivamente. Quando os alemães invadiram a Polónia, Wassilewska atravessou o seu país, refugiando‑se na União Soviética. E foi aí, como jornalista, que acompanhou os exércitos russos, como correspondente de guerra. Dessa experiência, nasceu Arco‑Iris, poderoso fresco da tragédia horrorosa que é a guerra e que foi aquela guerra. O livro tem cenas quase intoleráveis, não fugindo a nenhum dos horrores que o homem é capaz de congeminar para lançar os outros homens no inferno. Não sei se terá ficado como um dos grandes “romances de guerra”, como, por exemplo, o Nada de Novo na Frente Ocidental, de Erich Maria Remarque ou o Capitaine Conan, de Roger Vercel, ambos relativos à 1.ª Guerra Mundial. Em mim, o impacto foi fundo e durável. Eis outro livro, que sobreviveu a todos os baldões da sorte, a todas as viagens e tumultos da vida. Tenho‑o aqui, à minha frente, no momento em que escrevo estas linhas. Copio‑vos uma breve passagem, para que fique convosco, qual medalha que fica para a vida:
“No dia do combate em que foi morto nevara abundantemente, um desses nevões que paralisam e petrificam instantaneamente os cadáveres. Nesse dia nada teriam podido arrancar aos mortos. E contudo, tinham‑lhe tirado tudo: o capote, as botas, as calças e até as peúgas; apenas lhe deixaram o dólman e as cuecas azuis, que se tinham fundido de tal maneira com o corpo que dir‑se‑ia serem manchas de giz azul sobre madeira negra; contrastando com a face enegrecida, os pés tinham‑se mantido brancos, duma brancura argilosa, pouco natural.”
Isto não é imaginação de romancista: ninguém é capaz de imaginar estas coisas. É o resultado de se ter estado e de se ter visto."