Muito se escreveu sobre Eugénio Lisboa , quando faleceu a 9 de Abril deste trágico ano de 2024. Era um ímpar escritor que deixou um valiosíssimo legado. Além da magnânima e desprendida erudição que marca a sua obra , Eugénio Lisboa era um extraordinário comunicador que se deixava abordar por quem o procurava ou lhe colocava qualquer questão. A afabilidade , o franc-parler, a simplicidade marcavam a sua relação com o outro. Era um homem verdadeiramente grande , como afirmava Paul Valéry.
Evocamo-lo hoje, em jeito de uma muito sentida saudade, com um artigo de entre os que foram publicados, no mês do seu desaparecimento.
Eugénio Lisboa. A exuberância de uma vida entre aspas.
1930-2024. Um dos mais cultos, generosos e combativos ensaístas.
por Diogo Vaz Pinto
"Aos
93 anos, um homem não deve grande coisa aos outros. O regateio e a conversa
quotidiana poderão distraí-lo da ideia de que está a competir com tantas outras
solicitações para reservar algum espaço na memória daqueles que talvez venham a
recordar-se dele, e que serão, em suma, os seus coveiros. E, no entanto, com um
gato acostumado a passear entre os livros, cultivado nesses ritmos de uma
atenção funda, Eugénio Lisboa fez saber em algumas ocasiões que se não viajava
nem passava muito tempo fora de casa era por consideração pela gata, Ísis, que
dividia com ele um apartamento muito dado a essas manias sagradas, um espaço
feito exíguo pelas pilhas de livros promovendo essa capacidade de afastamento
altivo e de recreio íntimo “sob o olhar de deuses sem vergonha”. Mas restava
ainda um assunto que poderia ser delicado entre um homem e o seu gato. “Morrer
— isso não se faz a um gato./ Pois o que há de fazer um gato/ num apartamento
vazio”… É provável que Eugénio Lisboa se tenha detido no poema de Wislawa Szymborska,
e também que algum do seu esforço contínuo para não se irritar demasiado com a
vida se tenha ligado a essa decência e ternura pela gata. Agora que este
extraordinário leitor se desligou dos dias para assumir o seu lugar na
correnteza dos textos, o mais custoso será pensar nesse vazio que se instalou
naquele apartamento. “Nada aqui parece mudado/ e no entanto algo mudou./ Nada
parece mexido/ e no entanto está diferente./ E à noite a lâmpada já não se
acende.”
Eugénio
Lisboa nunca se retirou, nunca se absteve de manter algum convívio, mesmo que
fosse através dessa “conversa silenciosa” que a escrita vai permitindo, e que
se mostra tão necessária, especialmente em épocas mais ruidosas. Era um ser
magnificamente convivente, um apaixonado pelas ideias, um homem para quem
comunicar era quase respirar. Sendo duvidoso que a posteridade fosse uma
inquietação sua, com 28 anos considerava que há dois modos bem distintos de se
pensar nela: “ou com a intenção premeditada de se lhe mentir, compondo,
ou com a intenção, também premeditada, mas neste caso honesta, de se lhe impor
uma verdade, ainda que rude e dolorosa”. Depois de uma vida inteira a zurzir
naqueles que gostam de turvar as águas, de complicar desnecessariamente as
frases, Eugénio Lisboa sempre se bateu por um tom de comunicação clara e
directa (“A clareza orna os pensamentos profundos”), até brusca por vezes,
aquilo para que não tinha a menor paciência era para as “manobras,
transigências e pequeninas traições e perfídias, que são moeda corrente na vida
quotidiana da nossa República das Letras”.
Uma
frase de André Gide por que tinha especial predilecção era essa em que o
escritor francês, numa carta a um admirador desconhecido, registava: “Mesmo
connosco próprios, importa não nos demorarmos.” Trata-se, no fim de contas, de
não aborrecer nem impor mais obstáculos ao gozo da vida. Desse mesmo modo,
Lisboa aprendeu a estar-se um pouco nas tintas quanto à fortuna ou ao desaire
que recaía sobre a sua própria obra. Grande parte desta distingue-se, contudo,
pelo empenho e a generosidade em reconhecer o génio dos autores que mais horas
de prazer lhe tinham dado, fosse que género fosse, procurando, tantas vezes,
salvá-los dessas caricaturas preconceituosas que tecem todos esses cuja maior
ficção que produzem é a ideia de que leram tudo, o mito de uma erudição que
facilmente se desmorona. Desde logo arreliava-o sempre que via como um autor
era culpado pelo facto de uma juventude num dado momento o ler ou deixar de o
ler, chamando a atenção para o que há de imponderável, transitório e até
caprichoso naquilo que motiva a juventude à frequentação dos livros. “Um autor
pode cair subitamente no olvido sem que isso nada tenha a ver com o seu valor
intrínseco. De resto, essa espécie de purgatórios, de que poucos escritores se
livram, é característica do período que se segue imediatamente à morte do
autor.” No caso particular de Eugénio Lisboa isto agrava-se pelo facto de há
muito as obras daqueles que se dedicaram a ler os outros, fosse no ensaio ou na
crítica literária, terem sido condenados em bloco a essa indiferença tão
reveladora. Afinal, que os leitores revelem precisamente um desdém por aqueles
que se aplicam a mostrar as múltiplas formas como um texto pode ser lido e
aprofundado diz-nos muito sobre a vulnerabilidade dos leitores que vão
aparecendo. Outra frase de Gide a que Lisboa se aferrou surge quando aquele
diagnosticava o medo de nos deixarmos influenciar como uma doença típica do
nosso tempo: “É que precisamente hoje, mesmo sem fazermos profissão de
individualismo, pretendemos ter cada um a nossa personalidade, e, uma vez que
essa personalidade não é muito robusta, uma vez que ela nos parece, a nós e aos
outros, um pouco indecisa, vacilante ou débil, o medo de a perdermos
persegue-nos e faz-nos correr o risco de estragarmos as nossas alegrias mais
autênticas.”
Não
só este foi um receio de que Eugénio Lisboa nunca padeceu, como, em certo
sentido, a total ausência de qualquer espécie de “angústia da influência” é o
que caracteriza o seu magistério enquanto leitor e crítico. A melhor razão para
procurarmos os volumes em que se reúnem os seus ensaios, crónicas ou os vários
tomos dos seus livros de memórias (sob o título global “Act Est Fabula”) é o
facto de ele nunca se ter permitido abusar da paciência de quem o lia, e em vez
de se iludir com a suposta originalidade dos seus juízos, preferia reconhecer
como o equilíbrio do mundo pode depender de umas quantas noções verdadeiras, e,
em vez de se entregar à verborreia, gostava de flutuar como um corpo entregue
às derivas da sua memória, sendo esta, no seu caso, realmente assombrosa. Num
tempo em que, cada vez mais, como notava Jacques Bainville, os velhos
repetem-se e os novos nada têm para dizer, sendo a chatice mútua, Lisboa não
estava interessado em colaborar nesta “estúpida guerra de surdos que se anda
por aí a fomentar”. Assim, o seu maior talento era a sedução daquele que sabia
entretecer um vastíssimo número de influências, construindo uma perspectiva
sempre lúdica e variada, e deixando atrás de si um largo rasto de generosidade
e de escolhas que permitem a quem vem depois aceder a uma impressão de grandeza
que foi paciente e laboriosamente lapidada por um sagaz artífice, alguém que
nunca perdeu de vista que o mais importante na literatura como no resto é gerar
alento, traduzir seja como for essa matéria que nos fala, sem trair o ânimo. O
apelo a que ao longo da sua vida ele deu expressão é antigo e intenso, e
Eugénio Lisboa foi-lhe fiel desde logo no estilo da sua escrita, caracterizado
pela sua desenvoltura, por aquela urgência que é própria do entusiasmo e por essa
familiaridade abrupta com os autores e os textos, isso que no fim lhe permitiu
assimilar esse registo “ruidoso de segredos e de oráculos”. A literatura para
ele foi sempre, por isso, um testemunho apaixonado, e também isso lhe permitiu
resistir, fazer-se um extraordinário ouvidor do melhor que os séculos foram
transmitindo, para depois, diante da morte, só ter de se preocupar com a gata,
e aquele vazio no apartamento. De resto, e depois de uma vida de encanto e de
empenho nas suas lutas, nem se importaria que o seu próprio epitáfio fosse
recolhido de entre as tantas frases que deixou sublinhadas na obra do seu tão
amado Montherlant: “Felizes os que morrem sem tagarelices e sem choradeiras, na
santa solidão em que morrem os animais e sós soldados no fundo remoto de um
buraco de obus."
Diogo Vaz Pinto , Jornal Sol , 13.04.2024
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