quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Sobre Franz Kafka

Franz Kafka, 03.07.1883 - 03.06.1924
I
Franz Kafka
Uma Biografia*
por Max Brod 

Não desesperes, nem sequer por não desesperares. Quando já tudo parece ter chegado ao fim, novas forças avançam, o que significa que estás vivo.
 
Ainda consigo sentir um contentamento ocasional com trabalhos como «Um Médico de Aldeia» […], mas só sinto felicidade quando consigo elevar o mundo à pureza, à verdade, à imutabilidade.
 
Grande chuvada. Oferece‑te à chuva, deixa‑te atravessar pelas fortes bátegas, desliza na água que te quer arrastar, mas mantém‑te e espera assim, de pé, o Sol que há de brilhar com os seus raios infindos. 
Dos Diários de Kafka
 
1 Antepassados e Infância
Franz Kafka, filho de Hermann e Julie Kafka, nasceu em Praga, a 3 de julho de 1883. O apelido Kafka é de origem checa e significa «gralha».
Nos sobrescritos comerciais da firma Hermann Kafka, em que Franz me mandava frequentemente as suas cartas, figura como emblema aquela conhecida ave, de cabeça grosseira e cauda farta. Kafka é nome frequente entre os judeus oriundos de regiões checas e apareceu quando o imperador José II ordenou que todos os judeus passassem a usufruir do direito de registar os seus nomes de origem familiar. O nome, no entanto, não reflete quaisquer tendências políticas ou até nacionalistas, embora constasse que o pai de Franz tivesse simpatizado de maneira um tanto vaga com os partidos checos que combateram na velha Áustria, para o que devem ter contribuído as recordações da sua terra natal. Franz frequentou apenas escolas alemãs, foi educado à alemã e só mais tarde, por sua própria iniciativa, veio a adquirir o domínio perfeito da língua checa, assimilando profundamente a cultura do seu país de origem sem todavia deixar de se interessar pela cultura alemã. (Mais adiante veremos a importância que a influência judaica exerceu na sua formação e da qual só posteriormente se aperceberia.)
Um seu primo em segundo grau desempenhou um papel importante no partido alemão liberal, primeiro como estudante e, depois, como professor universitário e deputado do Parlamento checo. Exteriormente era parecido com Franz, mas um pouco mais forte e robusto.
Franz admirava-o muito por causa da sua energia e capacidade de organização. O professor Bruno Kafka, tal era o seu nome, apesar da sua morte e prematura viveu uma existência fértil: foi editor do legado científico de Krasnopolski, colaborou em diversos estudos legislativos, tendo sido responsável por alguns, assinou valiosos trabalhos jurídicos e notabilizou-se como político e crítico. Os pais de Franz e Bruno eram primos. Sobre os seus antepassados, escreveu Kafka nos seus Diários:

O meu nome hebraico é Amschel, tal como o avô materno de minha mãe, que morreu quando esta contava seis anos. Minha mãe recorda se dele como um homem sábio, impregnado de uma grande devoção e usando uma longa barba branca. Recorda-se de ter sido obrigada a agarrar os dedos dos pés do defunto e a pedir perdão pelas possíveis faltas cometidas contra ele. Recorda-se, também, dos seus numerosos livros, que cobriam as paredes. Todos os dias tomava banho no rio, cujas águas geladas, no inverno, era obrigado a quebrar. A mãe de minha mãe faleceu com tifo, também cedo. A partir dessa data, a minha bisavó tornou-se melancólica: receava a comida e não falava a ninguém. Uma vez, decorrido um ano sobre a morte da filha, saiu e nunca mais voltou. Dias depois, o seu corpo era retirado do Elba.
Um homem ainda mais sábio do que o avô era o bisavô de minha mãe, tão respeitado por cristãos como por judeus. Tão crente que um dia lhe aconteceu um milagre: um incêndio destruiu todas as casas em redor da sua, deixando esta intacta. Tinha quatro filhos, um dos quais se converteu ao cristianismo e se formou em Medicina. Toda a minha família, com exceção do avô de minha mãe, morreu cedo. Esse meu bisavô teve um filho, a quem minha mãe pôs a alcunha de «o doido tio Nathan», e uma filha, que foi a mãe de minha mãe.
 
Recebi mais informações da mãe de Franz, com quem falava frequentemente, até ela morrer em 1934 (sobreviveu ao filho cerca de dez anos). Era uma senhora calma, bondosa, extremamente inteligente e muito culta. Segundo ela afirmava, a família Kafka é oriunda, pelo lado do pai, de Wossek, perto de Strakonic (Sul da Boémia). O pai de Hermann Kafka era carniceiro. A juventude de Hermann foi dura e laboriosa. A sua capacidade de trabalho e a sua tenacidade eram notáveis. Na opinião da Sr.ª Julie Kafka, mãe de Franz, também os seus irmãos (três irmãos e duas irmãs) eram «gigantes». Franz viveu toda a sua vida à sombra do pai, tão poderoso no seu aspeto imponente como forte nos negócios. Era muito alto, de ombros largos, e deixou no fim da sua existência — cheia de trabalho e de grandes sucessos comerciais, mas também marcada por preocupações e doenças — não só uma família numerosa (nutria um orgulho patriárquico pelos filhos e netos), como ainda um prédio de muitos andares no centro de Praga, que adquirira depois de ter vendido a sua loja de vendas por junto que ainda hoje (1937) existe no Altstädter Ring. Na imaginação e nas obras de Franz nota-se sempre a influência exercida, sobre a sua infância, pelas dificuldades inerentes ao sustento de uma família numerosa, a que o esforço, os sacrifícios e fadigas do pai tiveram de providenciar. Tinha pelo pai, neste capítulo, uma grande admiração, e havia mesmo nela alguma coisa de heroico: a um observador neutro, que não estivesse encantado pela magia do lar, como eu o estava, podia parecer que além de louvável era também exagerada. Para a educação sentimental de Franz, essa admiração era fundamental. Que não são fictícios esses seus sentimentos, mostra-nos uma passagem do diário, que eu cito, por nos dar uma ideia exata da juventude do pai. Franz escreve:

É desagradável escutar da boca do pai o que ele tinha de sofrer na sua mocidade, em comparação com a situação feliz dos seus contemporâneos e sobretudo com a dos seus filhos. Ninguém nega que, durante anos, teve feridas abertas nas pernas, por lhe terem faltado roupas em invernos sucessivos; que frequentemente passou fome; que foi obrigado, ainda com dez anos, a atravessar as aldeias empurrando um carro de mão, arrostando o frio das madrugadas de inverno. Todavia, estes factos verdadeiros, comparados com o facto igualmente verdadeiro de eu não ter sofrido nada disso, não são suficientes para o pai poder concluir que eu fui mais feliz do que ele, para se orgulhar de ter tido chagas nas pernas, para afirmar que não sei honrar aqueles seus padecimentos e, ainda, para pretender que eu lhe fique eternamente grato por esse sofrimento. E é isto que não quer compreender. Quanto eu gostava de o ouvir contar incessantemente a sua mocidade e a de seus pais, mas não naquele tom de bazófia e de desafio. Uma vez por outra, bate com as palmas das mãos e grita: «Quem percebe isto hoje!? Que é que sabem as crianças!? Hoje ninguém passa por estas coisas. Há atualmente alguma criança que possa compreender isto?» Hoje, foi novamente esta a conversa travada com a tia Julie, que nos veio visitar. Ela também tem um rosto enorme, como todos os membros da família do pai. Os olhos desagradam por assimetria na posição ou na cor. Aos dez anos, foi contratada como cozinheira. Nessa altura tinha de sair amiúde, para o frio, que lhe gelava a saia molhada e lhe rebentava a pele. Só à noite, na cama, secava a saia.
 
Agora seguirei, de novo, as informações da mãe de Franz. A avó paterna, da família Platovsky, fora descrita como dotada de grande bondade e como sendo muito respeitada entre os aldeões devido aos seus conhecimentos de medicina. Além disso, parecem transmitir-se por toda a linha ascendente paterna a robustez física e as qualidades de luta que forjaram as suas vitórias na vida. Hermann foi soldado durante três anos e, avançado em anos, gostava ainda de falar desses seus tempos e de entoar canções militares, quando estava bem disposto — o que aliás acontecia cada vez menos. O seu pai, isto é, o avô de Franz, conseguia levantar do chão, com os dentes, uma saca de farinha. Quando, uma vez, um grupo de ciganos indesejáveis entrou numa estalagem isolada, o estalajadeiro, receoso, mandou chamar o avô de Kafka, que facilmente afugentou com uma valente sova os hóspedes inoportunos. Tudo é diferente se nos reportarmos aos antepassados da mãe de Franz. Entre estes, há sábios, homens sonhadores, inclinados para o exotismo, para a aventura, para o capricho e para a solidão.
A passagem mencionada no diário de Franz refere-se à piedade e à fama de sábio de que gozavam o avô e o bisavô da mãe. Também os banhos no rio gelado devem ser tomados como ações rituais de uma pessoa fundamentalmente religiosa e não no sentido naturalista, que naquela época ainda não existia ou não era, pelo menos, conhecido entre os judeus. Os homens mencionados pertenciam à família Porias e viviam em Poděbrad.
O avô trazia sempre as  franjas1 que a sua religião impunha fazendo troça. Na escola (cristã), porém, eram admoestadas e ensinadas a não escarnecer de um homem tão piedoso. A única filha do avô, que morreu muito cedo e que terá levado, provavelmente, a avó ao suicídio, chamava-se Esther Porias e era casada com Jakob Löwy. Deste casamento nasceram seis filhos, o segundo dos quais, uma rapariga de nome Julie Löwy, veio a ser a mãe de Franz Kafka. O irmão mais velho (Alfred) emigrou, ainda jovem, para o estrangeiro e chegou a diretor geral dos Caminhos de Ferro espanhóis, onde obteve numerosas condecorações. Morreu solteiro. Visitou Praga várias vezes e exerceu influência sobre a mocidade de Franz, provavelmente por esperar que o tio o introduzisse na vida prática. Franz ansiava por conhecer terras longínquas, aspiração que lhe era sugerida pelo exemplo da carreira de um outro irmão da mãe, Josef, que dirigia uma companhia colonial no Congo e equipara caravanas que, às vezes, contavam cento e cinquenta membros. Mais tarde viveu em Paris, onde casou com uma francesa. O que aqui pertencia à vida real transformou-se, nas suas obras, na poesia com que descreveu as terras exóticas, as quais constituíam o cenário em que decorria a ação dos seus trabalhos. Embora o tio Alfred, de Madrid, fosse tido como reservado, também era afetuoso e dava grande importância à família. (Conheci-o, sem todavia ter conseguido formar uma opinião a seu respeito.) O desapontamento em relação a ele está bem patente numa carta dirigida a Oskar Pollak, amigo de infância. Franz perguntava ao tio se «não me podia ajudar nestas coisas, guiar-me de maneira a que pudesse dedicar‑me, finalmente, a uma obra nova». Franz sempre considerou a sua profissão de jurista como provisória, sonhando por isso com outra atividade. As suas relações com o tio, a quem ele, com certeza, apenas muito vagamente confidenciava os seus desejos juvenis, não eram falhas de afabilidade, apesar da indiferença que marcava as relações de parentesco. Outro irmão da mãe (Rudolf) fazia vida de excêntrico solitário, apesar de ter um emprego insignificante como contabilista na cervejaria de Košíře. Acabou por converter-se, convictamente, ao catolicismo. O irmão mais novo (Siegfried) e fora das roupas e não sob elas. Por causa disso, as crianças corriam atrás dele fazendo troça. Na escola (cristã), porém, eram admoestadas e ensinadas a não escarnecer de um homem tão piedoso. A única filha do avô, que morreu muito cedo e que terá levado,provavelmente, a avó ao suicídio, chamava-se Esther Porias e era casada com Jakob Löwy. Deste casamento nasceram seis filhos, o segundo dos quais, uma rapariga de nome Julie Löwy, veio a ser a mãe de Franz Kafka. O irmão mais velho (Alfred) emigrou, ainda jovem, para o estrangeiro e chegou a diretor geral dos Caminhos de Ferro espanhóis, onde obteve numerosas condecorações. Morreu solteiro. Visitou Praga várias vezes e exerceu influência sobre a mocidade de Franz, provavelmente por esperar que o tio o introduzisse na vida prática. Franz ansiava por conhecer terras longínquas, aspiração que lhe era sugerida pelo exemplo da carreira de um outro irmão da mãe, Josef, que dirigia uma companhia colonial no Congo e equipara caravanas que, às vezes, contavam cento e cinquenta membros. Mais tarde viveu em Paris, onde casou com uma francesa. O que aqui pertencia à vida real transformou-se, nas suas obras, na poesia com que descreveu as terras exóticas, as quais constituíam o cenário em que decorria a ação dos seus trabalhos. Embora o tio Alfred, de Madrid, fosse tido como reservado, também era afetuoso e dava grande importância à família. (Conheci-o, sem todavia ter conseguido formar uma opinião a seu respeito.) O desapontamento em relação a ele está bem patente numa carta dirigida a Oskar Pollak, amigo de infância. Franz perguntava ao tio se «não me podia ajudar nestas coisas, guiar-me de maneira a que pudesse dedicar‑me, finalmente, a uma obra nova». Franz sempre considerou a sua profissão de jurista como provisória, sonhando por isso com outra atividade. As suas relações com o tio, a quem ele, com certeza, apenas muito vagamente confidenciava os seus desejos juvenis, não eram falhas de afabilidade, apesar da indiferença que marcava as relações de parentesco. Outro irmão da mãe (Rudolf) fazia vida de excêntrico solitário, apesar de ter um emprego insignificante como contabilista na cervejaria de Košíře. Acabou por converter-se, convictamente, ao catolicismo. O irmão mais novo (Siegfried) era médico de província em Triesch. Também solteiro, mudou mais tarde para Praga, onde passou a morar na casa da família Kafka. Representou um papel ativo no final da vida de Franz, quando lhe prestou a assistência médica.”
Max Brod, in Sobre Franz Kafka, Relógio D’Água Editores, 2024, pp.13-17
 
* Esta secção baseia-se no seguinte texto: Max Brod, Franz Kafka. Eine Biographie, 5.ª ed., Frankfurt am Main/Hamburgo, Fischer Bücherei, 1963. Texto revisto pelo autor (6.ª ed.).
1-Faixas usadas pelos judeus nas suas orações, em que estão escritas passagens de livros religiosos. (N. T.)

Sobre a Obra:
"Max Brod, autor de uma extensa obra literária, foi amigo de Franz Kafka desde a juventude e permaneceu próximo dele até à sua morte a 3 de junho de 1924.
Foi seu executor testamentário e deve-se a ele a publicação de todos os textos que Kafka lhe pediu para destruir e que foram levados de Praga para Jerusalém.
Foi também Max Brod que se empenhou na divulgação da obra kafkiana, mesmo nos tempos sombrios em que parecia esquecida e só era conhecida de alguns leitores e celebrada por um punhado de escritores e filósofos como Robert Walser, Benjamin, Adorno e Hannah Arendt.
Este livro dá-nos não só uma imagem realista e quotidiana da vida de Kafka tal como foi vista por um dos seus contemporâneos, mas também uma fascinante descrição da interação entre dois escritores de temperamentos diversos, mas com numerosas referências comuns.
Reúne os três escritos mais importantes de Max Brod sobre Franz Kafka: Franz Kafka, Uma Biografia; A Fé e a Doutrina de Franz Kafka e Desespero e Redenção na Obra de Franz Kafka.
As memórias de Max Brod sobre a juventude e a idade adulta que partilhou com Kafka são insubstituíveis. Insubstituível foi também o seu papel na preservação dos seus escritos inéditos. Mas uma visão mais completa, sobretudo no que se refere à importância do humor na obra de Kafka, requer a leitura de toda a sua correspondência e de biografias mais recentes como a de Reiner Stach e mesmo a de Benjamin Balint."
Max Brod, 27.05.1884 - 20.12.1968
Sobre o autor:
Max Brod nasceu a 27 de Maio de 1884, em Praga, então integrada no Império Austro-Húngaro.
Foi autor de numerosas obras, embora tenha ficado sobretudo conhecido como amigo e biógrafo de Franz Kafka.
Brod conheceu o autor de A Metamorfose em Outubro de 1902, quando ambos estudavam na Universidade Carolina de Praga. Brod tinha acabado de dar uma conferência sobre Schopenhauer aos alunos de língua alemã. Kafka, um ano mais velho, abordou-o depois dessa palestra e acompanhou-o a casa. Foi o início de uma longa amizade, muitas vezes com encontros diários.
Kafka nomeou-o executor do seu testamento literário, dando-lhe indicações para destruir as suas obras inéditas depois da sua morte.
Em 1939, quando os nazis ocuparam Praga, Max Brod emigrou para a Palestina, então sob o Mandato Britânico, levando consigo uma mala com papéis com escritos, notas e apontamentos de Kafka.
Max Brod morreu a 20 de Dezembro de 1968, em Telavive, Israel."
Título: Sobre Franz Kafka
Autor : Max Brod
Editora: Relógio D'Água
Categoria: BiografiasEnsaios
Tradução: Ana Falcão BastosSusana Schnitzer da Silva
EAN: 978­989­783­456­1
Data de publicação: 18/06/2024
Nº de páginas: 440
Peso: 634 gramas
Preço:
21,60€

Sem comentários:

Enviar um comentário