Nomeio o mundo
Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.
Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.
Vitorino Nemésio, in O verbo e a morte, Antologia poética, Asa , 2002
Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.
Vitorino Nemésio, in O verbo e a morte, Antologia poética, Asa , 2002
ANVERSO
Dormias. Eu acordo-te.
A manhã imensa oferece-nos a ilusão de um princípio.
Esqueceras-te de Virgílio. Aqui estão os hexâmetros.
Trago-te muitas coisas.
As quatro raízes dos Gregos: a terra, a água, o fogo, o ar.
Um só nome de mulher.
A amizade da lua.
As claras cores do atlas.
O esquecimento, que purifica.
A memória que escolhe e redescobre.
O hábito, que nos ajuda a sentir que somos imortais.
A esfera e as agulhas que dividem o intangível tempo.
A fragrância do sândalo.
As dúvidas a que chamamos, não sem alguma vaidade, metafísica.
A curva do bastão que a tua mão aguarda.
O sabor das uvas e do mel.
Jorge Luís Borges, in obras completas 1975-1985 vol. III , a cifra (1981), tradução de . Fernando Pinto do Amaral, Editorial Teorema,1998
Reverso
Recordar quem dorme
é um acto vulgar e quotidiano
que poderia fazer-nos tremer.
Recordar quem dorme
é impor ao outro a interminável
prisão do universo
do seu tempo sem ocaso nem aurora.
É revelar-lhe que é alguém ou algo
que está sujeito a um nome que o expõe
e a um acervo de ontens.
É inquietar a sua eternidade.
É carrega-lo de séculos e estrelas.
É devolver ao tempo um outro Lázaro
carregado de memória.
É desonrar a água do Letes.
Jorge Luís Borges, in obras completas 1975-1985 vol. III , a cifra (1981), tradução de Fernando Pinto do Amaral, Editorial Teorema,1998
Vai-se, com o tempo, perdendo tudo.
Perdi já tantos dos que tanto amava,
perdi sítios, perdi sóis, sobretudo,
perdi poderes, ilusões, e brava
força que punha, no lutar, fervor!
Perdi livros e haveres e tudo
o que à vida dá tanto sabor!
Meu canto triste foi ficando mudo,
ao ver, por todo o lado o atropelo,
o assalto ao poder da liberdade,
o pôr, na destruição, tanto zelo!
Por todo o lado, alastra a iniquidade
e a vida cada vez mais fenece,
neste pobre mundo que anoitece.
19.03.2022
Eugénio Lisboa, in Poemas em Tempo de Guerra, Guerra & Paz Editores, 2022, p 36
A OBSCENA ADVERSATIVA
Há uns humanistas de pacotilha,
que usam habilmente a adversativa:
estão sempre providos com a cartilha,
opondo ao fim da guerra a assertiva
adversativa.
Condenam firmemente a guerra, MAS
observam que é preciso ter em conta
outros factos, contextos e problemas:
e disparam a adversativa tonta
e pronta.
É querer a paz, sim, mas devagar,
como em Alcácer Quibir se morria.
Gostam da paz, sim, mas de acautelar
e preservar também a nostalgia
da utopia!
01.04.2022
Há uns humanistas de pacotilha,
que usam habilmente a adversativa:
estão sempre providos com a cartilha,
opondo ao fim da guerra a assertiva
adversativa.
Condenam firmemente a guerra, MAS
observam que é preciso ter em conta
outros factos, contextos e problemas:
e disparam a adversativa tonta
e pronta.
É querer a paz, sim, mas devagar,
como em Alcácer Quibir se morria.
Gostam da paz, sim, mas de acautelar
e preservar também a nostalgia
da utopia!
01.04.2022
Eugénio Lisboa, in Poemas em Tempo de Guerra, Guerra & Paz Editores, 2022, p 49
Aurora
Não direi que me encantas mais do que o silêncio
porque é assim que despertas as aves e os caminhos.
Meus olhos também nascem pelo parto da esperança
porque vivo na imortalidade
renascendo em cada dia.
Deixa-me rever em prece tua face ressurgida
porque tua luz é sempre uma catarse.
Teu olhar estende as linhas do horizonte
e toda a paisagem é então uma ventura
e já não és mais nada
porque desfaleces no seio da beleza.
Repara como sou pequeno diante do teu rosto amanhecido
mas como é grande o que em mim te contempla.
Para renascer basta-me apenas teu momento
tua humilde majestade
tuas pétalas de fogo
e essa corola ardente
porque não peço nada mais que a tua luz
inaugurando o mundo em cada alvorecer
e que nunca me encontres cego ou vencido.
Curitiba, abril de 2004
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, 2007, p 61
Soneto do reencontro
Na primavera tu voltaste de mansinho
finda a tempestade, surgiste na bonança
me conjugando o verbo da esperança
num íntimo gesto de lírico carinho.
Tu foste meu fuzil, o meu canto guerreiro
a voz peregrina acesa no meu peito,
ensina-me a cantar agora de outro jeito
para entoar amor e paz ao mundo inteiro.
Combatente e amordaçada em meu destino
silenciados e por atalhos clandestinos
trinta anos se passaram, dia-a-dia.
Depois a liberdade chegou para o meu povo
mas só agora eu te encontrei de novo
para nunca mais perder-te... ó poesia.
Curitiba, dezembro de 2002
Não direi que me encantas mais do que o silêncio
porque é assim que despertas as aves e os caminhos.
Meus olhos também nascem pelo parto da esperança
porque vivo na imortalidade
renascendo em cada dia.
Deixa-me rever em prece tua face ressurgida
porque tua luz é sempre uma catarse.
Teu olhar estende as linhas do horizonte
e toda a paisagem é então uma ventura
e já não és mais nada
porque desfaleces no seio da beleza.
Repara como sou pequeno diante do teu rosto amanhecido
mas como é grande o que em mim te contempla.
Para renascer basta-me apenas teu momento
tua humilde majestade
tuas pétalas de fogo
e essa corola ardente
porque não peço nada mais que a tua luz
inaugurando o mundo em cada alvorecer
e que nunca me encontres cego ou vencido.
Curitiba, abril de 2004
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, 2007, p 61
Soneto do reencontro
finda a tempestade, surgiste na bonança
me conjugando o verbo da esperança
num íntimo gesto de lírico carinho.
a voz peregrina acesa no meu peito,
ensina-me a cantar agora de outro jeito
para entoar amor e paz ao mundo inteiro.
silenciados e por atalhos clandestinos
trinta anos se passaram, dia-a-dia.
mas só agora eu te encontrei de novo
para nunca mais perder-te... ó poesia.
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, 2007, p 7
Caríssima editora!
ResponderEliminarMe colocas entre Jorge Luís Borges e Eugénio Lisboa e não sei se, pessoalmente, mereço tanto. Prefiro creditar ao milagre da poesia esse momento venturoso, que reúne na magia das palavras todos os que se inspiram na beleza. Obrigado, ontem, hoje e sempre.
Manoel de Andrade
Claro que merece.
ResponderEliminarQuem fica para sempre grata são os amantes de Poesia , como eu. Por isso a nomeio e nomearei ad aeternum.
É por respeito à qualidade do que por aqui leio e ouço que não me atrevo a comentar. Neste fim de ano, limito-me a pedir que este cantinho continue a existir.
ResponderEliminarBom Ano para todos os que por aqui andam com um grande abraço para a Maria José
Albertina Glória Alves
Muito obrigada pelas palavras. São sempre bem vindas . E nunca deixará de ser um imenso prazer ler os teus comentários.
EliminarUm enorme abraço.
Maria José