Na Escola Paiva Manso, Lourenço Marques
por Eugénio Lisboa
"Na
Escola Paiva Manso, a vida paradisíaca, com a D. Laurinda Magalhães, chegara ao
fim. E tudo se tornou menos bom, a partir daí. Na quarta classe, o professor
era o sr. Branco, sempre a tossir, a cheirar a vinho tinto e a ralhar. Vivia
mais ou menos cafrealmente, na
Malhangalene, bebia demais, fumava demais, deslocava‑se, pesadamente, de bicicleta, e era
bastante incompetente em assuntos de aritmética. Como eu levava sempre os
problemas bem resolvidos – além do mais, porque tinha um livro que me permitia
verificar os resultados – e o sr. Branco se atrapalhava bastante a resolvê‑los, o resultado era ele passar a vida a
chamar‑me ao
quadro, para mostrar aos meus colegas como aquilo se fazia. O sr. Branco tossia
desalmadamente, no meio daquela festa, prometendo que nos rachava de alto
a baixo e chamando‑nos
coisas que se não chamam ao Belzebu. E tinha, da pedagogia, umas noções
herdadas, provavelmente, dos visigodos: quando um aluno não sabia responder a
uma pergunta e outro aluno respondia, este era, contra vontade, obrigado a
castigar o
colega, dando‑lhe as
palmatoadas indicadas pelo professor. Isto revoltava toda a gente, quase até ao
ponto da agonia. E, se o segundo mostrava relutância em aplicar o castigo,
apanhavam os dois – e com que fúria redobrada o sr. Branco impunha então a sua “autoridade”!
Havia ali frustrações acumuladas e uma recalcada consciência do seu falhanço
como professor. Em todo o caso, brutinho como era, não atingia os furores
jupiterianos da Amena Cassanhe! Ao lado da fúria sanguinária dela, ele era
quase aceitável... quase um borrego!
A
segunda causa da nossa queda do paraíso foi a anunciada visita presidencial a
Moçambique (o Presidente era, nessa altura, o marechal Carmona). Passámos a
pertencer à Mocidade Portuguesa, com exercícios e treino paramilitar, naquilo
que fora, antes, o átrio do
recreio, com pãezinhos fofos e garrafas de “Toddy”! Vinha dar‑nos instrução um tenente de cavalaria,
muito militar e garboso, a tal ponto, que deixava a D. Amena a salivar de
volúpia e admiração.Literalmente, a babar‑se!
Eu odiava tudo aquilo: as berratas, a rigidez militar, o hino nacional, as
ameaças, a baba da D. Amena e, às vezes, os sábados estragados, com “ordem
unida” no Largo João Albasini! O que aqueles sacanas andavam a fazer ao meu
Largo... A visita presidencial era‑nos
prometida como algo que, se falhássemos no nosso esperado
garbo, nos lixaria a vida para todo o sempre. O pobre do Carmona, coitado, era
todo sorrisos fofos, mas mal sabia o que, por detrás de tudo aquilo, havia de
militares entesados a assustar as crianças!
Mas,
enfim, sempre houve uma compensação: cada aluno teve direito, durante a visita,
a um brinquedo e, como, lá em casa, nunca tinha havido dinheiro para brinquedos
e, pelos anos, as visitas, recomendadas pela minha mãe, nos traziam apenas
“coisas úteis” (peúgas, camisas, lenços, porcarias que não interessavam nem à
vaquinha do presépio), rejubilei com a ideia do presente, embora não deva ter
rejubilado por aí além com ele, porque me não lembro de todo do
que foi que me calhou em sorte... A memória deve ter achado que não valia a
pena registar. Havia também uma grande profusão de bandeirinhas portuguesas, de
papel, com uma haste de arame, muito disputadas pelos que faziam colecções de
bugigangas. E serviam também
para trocar por berlindes ou caixas de fósforos: nada de muito sagrado ou
patriótico (tremo só de pensar no que faria a D. Amena se lesse isto!)
Fiquei,
a partir desta visita presidencial, a odiar visitas de “altas personalidades” e
a odiar ainda mais a Mocidade Portuguesa – a ideia macabra de “acertar o passo”
dava comigo em doido: humilhava‑me,
parecia‑me
grotesco, apetecia‑me
desacertar e mandar o tenente garboso à merda, levando com ele a D. Amena e
mais os gritos todos com que se embeveciam, à falta de melhor... Ainda hoje, detesto
encontrar‑me junto
ao poder. E não percebo como é que se pode gostar de ser ministro. Pagaria
caro, dinheiro contado, para não ser. Quando, nos cargos que, depois, desempenhei, me vi perto dos poderosos, senti‑me com falta de ar e não descansei
enquanto me não pus a andar. É que o poder, além do mais, é inestético, é
vulgar, torna as pessoas empertigadas, “importantes”, ciosas de pequenos privilégios
que, em geral, pouco rimam com o valor real dos detentores deles. Gostar de ser
ministro é o mesmo que ser desprovido de sentido estético. Ser ministro é não
gostar de ir ao cinema. É não gostar de comer mangas verdes com sal. É não
perceber que uma ida à praia com o “Nero” vale mais que um despacho ou mesmo um
decreto. Ser ministro é não estar na vida e estar a lixar a vida aos que estão
nela. Que bom nunca ter sido ministro e, melhor ainda, nunca ter querido ser
ministro! A elegância que há em não ser ministro!"
Eugénio
Lisboa, in Acta
Est Fabula Memórias- I - Lourenço Marques (1930-1947), Editora Opera
Omnia, Novembro 2012, pp.36-38
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