domingo, 22 de dezembro de 2024

Na Escola Paiva Manso, Lourenço Marques


Na Escola Paiva Manso, Lourenço Marques 
por Eugénio Lisboa 
"Na Escola Paiva Manso, a vida paradisíaca, com a D. Laurinda Magalhães, chegara ao fim. E tudo se tornou menos bom, a partir daí. Na quarta classe, o professor era o sr. Branco, sempre a tossir, a cheirar a vinho tinto e a ralhar. Vivia mais ou menos cafrealmente, na Malhangalene, bebia demais, fumava demais, deslocavase, pesadamente, de bicicleta, e era bastante incompetente em assuntos de aritmética. Como eu levava sempre os problemas bem resolvidos – além do mais, porque tinha um livro que me permitia verificar os resultados – e o sr. Branco se atrapalhava bastante a resolvêlos, o resultado era ele passar a vida a chamarme ao quadro, para mostrar aos meus colegas como aquilo se fazia. O sr. Branco tossia desalmadamente, no meio daquela festa, prometendo que nos rachava de alto a baixo e chamandonos coisas que se não chamam ao Belzebu. E tinha, da pedagogia, umas noções herdadas, provavelmente, dos visigodos: quando um aluno não sabia responder a uma pergunta e outro aluno respondia, este era, contra vontade, obrigado a castigar o colega, dandolhe as palmatoadas indicadas pelo professor. Isto revoltava toda a gente, quase até ao ponto da agonia. E, se o segundo mostrava relutância em aplicar o castigo, apanhavam os dois – e com que fúria redobrada o sr. Branco impunha então a sua “autoridade”! Havia ali frustrações acumuladas e uma recalcada consciência do seu falhanço como professor. Em todo o caso, brutinho como era, não atingia os furores jupiterianos da Amena Cassanhe! Ao lado da fúria sanguinária dela, ele era quase aceitável... quase um  borrego!
A segunda causa da nossa queda do paraíso foi a anunciada visita presidencial a Moçambique (o Presidente era, nessa altura, o marechal Carmona). Passámos a pertencer à Mocidade Portuguesa, com exercícios e treino paramilitar, naquilo que fora, antes, o átrio do recreio, com pãezinhos fofos e garrafas de “Toddy”! Vinha darnos instrução um tenente de cavalaria, muito militar e garboso, a tal ponto, que deixava a D. Amena a salivar de volúpia e admiração.Literalmente, a babarse! Eu odiava tudo aquilo: as berratas, a rigidez militar, o hino nacional, as ameaças, a baba da D. Amena e, às vezes, os sábados estragados, com “ordem unida” no Largo João Albasini! O que aqueles sacanas andavam a fazer ao meu Largo... A visita presidencial eranos prometida como algo que, se falhássemos no nosso esperado garbo, nos lixaria a vida para todo o sempre. O pobre do Carmona, coitado, era todo sorrisos fofos, mas mal sabia o que, por detrás de tudo aquilo, havia de militares entesados a assustar as crianças!
Mas, enfim, sempre houve uma compensação: cada aluno teve direito, durante a visita, a um brinquedo e, como, lá em casa, nunca tinha havido dinheiro para brinquedos e, pelos anos, as visitas, recomendadas pela minha mãe, nos traziam apenas “coisas úteis” (peúgas, camisas, lenços, porcarias que não interessavam nem à vaquinha do presépio), rejubilei com a ideia do presente, embora não deva ter rejubilado por aí além com ele, porque me não lembro de todo do que foi que me calhou em sorte... A memória deve ter achado que não valia a pena registar. Havia também uma grande profusão de bandeirinhas portuguesas, de papel, com uma haste de arame, muito disputadas pelos que faziam colecções de bugigangas. E serviam também para trocar por berlindes ou caixas de fósforos: nada de muito sagrado ou patriótico (tremo só de pensar no que faria a D. Amena se lesse isto!)
Fiquei, a partir desta visita presidencial, a odiar visitas de “altas personalidades” e a odiar ainda mais a Mocidade Portuguesa – a ideia macabra de “acertar o passo” dava comigo em doido: humilhavame, pareciame grotesco, apeteciame desacertar e mandar o tenente garboso à merda, levando com ele a D. Amena e mais os gritos todos com que se embeveciam, à falta de melhor... Ainda hoje, detesto encontrarme junto ao poder. E não percebo como é que se pode gostar de ser ministro. Pagaria caro, dinheiro contado, para não ser. Quando, nos cargos que, depois, desempenhei, me vi perto dos poderosos, sentime com falta de ar e não descansei enquanto me não pus a andar. É que o poder, além do mais, é inestético, é vulgar, torna as pessoas empertigadas, “importantes”, ciosas de pequenos privilégios que, em geral, pouco rimam com o valor real dos detentores deles. Gostar de ser ministro é o mesmo que ser desprovido de sentido estético. Ser ministro é não gostar de ir ao cinema. É não gostar de comer mangas verdes com sal. É não perceber que uma ida à praia com o “Nero” vale mais que um despacho ou mesmo um decreto. Ser ministro é não estar na vida e estar a lixar a vida aos que estão nela. Que bom nunca ter sido ministro e, melhor ainda, nunca ter querido ser ministro! A elegância que há em não ser ministro!"
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula Memórias- I - Lourenço Marques (1930-1947), Editora Opera Omnia, Novembro 2012, pp.36-38

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