sexta-feira, 18 de outubro de 2024

A descoberta da escola


"Para mim , a  descoberta da escola foi um acontecimento maravilhoso. Havia tantos meninos e meninas de bata branca a chegar naquele primeiro dia, que não me senti diferente de qualquer um deles. A Escola era o lugar  para onde iam as crianças a partir dos seis anos. Era lá que se iniciava o longo caminho da aprendizagem para qualquer um deles. Era esta a percepção que eu tinha nos meus poucos anos de vida : aprender a ler e a escrever eram os primeiros passos de uma grande e jamais acabada  descoberta. E foram realmente. Esses primeiros anos marcar-me-iam para sempre.
Foi um sonho que sobra ainda pelo encanto que me provocou a aprendizagem da leitura e da escrita. Dizia Proust – “ a leitura é uma amizade.(…) Na leitura, a amizade é subitamente reduzida à sua primeira pureza.”
Nunca, então, me acudiu a mais ínfima inquietação de que esse encanto, essa assombrosa aprendizagem não estivesse ao alcance de todos. Quando descobri a verdadeira realidade do meu país, a minha passagem pela Escola Primária já tinha findado  . 
 
A Escola trazia-nos um tempo diferente que nos ia fazer crescer  e  alargar a compreensão do que nos rodeava. Eram estas algumas das palavras que nossos pais nos diziam sobre a necessidade de ir para a Escola. As crianças não têm uma compreensão real  da sociedade. E a sociedade que me rodeava, nesse tempo remoto era muito  limitada. Talvez, nessa  definição do papel da Escola, os meus pais estivessem  a querer dizer-nos , de forma velada, o que  nos competia descobrir no futuro, quando o conhecimento alargasse os nossos horizontes. Que a vida não se confinava àquilo que os nossos olhos de criança viam.
 
Viver numa quinta era viver longe do mundo. E para quem tinha uma família numerosa, o mundo era quase constituído pela gente  que a compunha.
Tudo o que nos rodeava era um aglomerado de campos tão semelhantes ao nosso.  E como gostava deles e da gente que os possuía, lavrava ou habitava. Proprietários, lavradores, trabalhadores, camponeses eram todos pessoas como nós. A ruralidade vestia-nos  a todos.  Era o traço que distinguia e definia os meninos que , tal como eu, iam, nesse  dia, para a Escola. A noção de mundo  resumia-se a essa percepção.
As aulas decorreram, nesse primeiro ano, em  constante e maravilhosa descoberta. Os sons dos ditongos, das sílabas e a respectiva concatenação em palavras que se uniam em frases e fabricavam textos que me levavam para lá de qualquer sala, onde quer que estivesse , foi o despertar mais importante da minha vida. Se pudesse determinar o meu real nascimento, colocá-lo-ia nesse ano. O outro ano, em que se registou  o meu  verdadeiro nascimento, passaria a designar-se como o ano zero, o ano em que me puseram num mundo ainda em trevas.
 
A luz chegava intensa e grandiosa naquele assinalável ano de 1954.
Ano de múltiplos acontecimentos.
Em Janeiro, os ministros  dos Negócio Estrangeiros da  Inglaterra, França,  EUA e URSS reúnem-se em Berlim, para  aprovação da proposta de reunificação da Alemanha, através de eleições livres. A URSS rejeita  a proposta dos países ocidentais. A reunificação da Alemanha só acontecerá trinta e seis anos depois, em Outubro de 1990. Entretanto, Milovan Djilas é  expulso do Partido Comunista Jugoslavo por defender uma maior liberdade de expressão.
A 18 de Maio,  a Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem entra em vigor. Um dia depois, a 19 de Maio, Catarina Eufémia , uma ceifeira  de Baleizão, é morta a tiro pela Guarda Nacional Republica, GNR, quando se manifestava com um grupo de mulheres contra os maus salários. Tornou-se um símbolo da luta rural antifascista.
No dia 2 de Julho,  a França abandona a parte sul do delta  do rio Vermelho , na Indochina e a 20 de Julho  assina o Armistício, em Genebra, pelo qual se retira do Vietname do Norte  e se compromete a respeitar a independência do Cambodja, Laos e Vietname , cujos territórios os comunistas se tinham, também, obrigado a retirar. Nesse mesmo dia, a União Indiana ocupa os enclaves portugueses de Dadrá  e Nagar Aveli.
O Acordo anglo-egípcio sobre a  retirada das tropas da zona do Canal Suez acontece a  19 de Outubro. Eclode o início do terrorismo na Argélia, a  3 de Novembro conduzindo à proibição do Movimento Nacionalista Argelino para o Triunfo das Liberdades Democráticas e ao envio  de um contingente de 20.000 soldados franceses para a Argélia.
Neste ano, Ernest Hemingway recebe o Prémio Nobel da Literatura e alguns escritores lançam obras que perduram até hoje. Entre eles:  Roland Barthes com  “ Michelet por ele mesmo”; William  Golding, “ O Deus das Moscas”; Pablo Neruda, “Odes elementares”; B. Brecht “ O Círculo  do Giz caucasiano”; Françoise Sagan, “Bonjour Tristesse” e Simone Beauvoir , “ Os Mandarins”.
Em  Portugal, José Régio publica “ A Chaga  do Lado” e “ A Salvação do Mundo”; Fernando Namora , “O trigo e o joio”; Vergílio Ferreira, “ Manhã submersa” e  Agustina Bessa-Luís, “ A Sibila” .
Na música, D. Chostakobicht recebe o título de “ Artista do Povo da URSS”. A. Shönberg compõe a ópera “Moisés e Aarão” e Rolf Lierberman  o concerto para banda de jazz e orquestra.
Na Pintura, Picasso apresenta o “Retrato de Mme Jacqueline Roque”; Franz Kline, “Pintura Número 2” e em Portugal, Abel Manta  , “ Praça de Camões” e Almada Negreiros, o retrato de Fernando Pessoa.
No cinema, Frederico Fellini estreia “A Estrada”; Elia Kazan, “Há Lodo no Cais, “A. Hitchcock, “A janela Indiscreta”; Claude Autant-Lara “O negro e o Vermelho” e de O. Preminger, “Rio sem regresso”.
Com 84 anos, Henri Matisse morre a 3 de Novembro .
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que já escrevi - Memórias, Maio de 2018, pp.61-65

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