"Uma pena que ainda hoje lhe dói é que quando o comboio chegou ao Porto tinha adormecido tão profundamente que de nada deu conta ; da estação para casa , quase uma hora de caminho, revezaram-se o tio e o primo mais velho a levá-la ao colo. Mas de manhã, ao abrir a janela e esperando uma só rua , por certo mais larga do que aquela em que nascera , que assombrosa surpresa quando o panorama de cidade, a ponta , o rio, os lugares , os cargueiros, que lhe explodiram em formas e movimento defronte dos olhos.
Para ela , e o mesmo aconteceria depois comigo, essa paisagem fixou-se-lhe na retina , é a única de que tem saudade, continua a ser o seu ponto de referência quando quer medir uma alegria ou uma excitação."
J. Rentes de Carvalho, in Ernestina, Quetzal Editores, Outubro de 2009, p 56
A cidade do Porto era a capital da minha infância. Continua a
fascinar-me e a encher-me de nostalgia
sempre que a ela regresso. Há , por toda a parte, a sensação de uns braços que
me apertam em longos abraços como se a saudade me recebesse. E toda essa
magia do retorno a sinto, neste momento, em que me vejo quase a chegar ao Porto,
num grande automóvel cheio de crianças curiosas que anseiam por revisitar a
cidade que lhes é pertença.
Era sempre uma aventura desejada qualquer passeio por esta cidade. Foi lá que fui pela primeira vez ao circo, no Coliseu. Que me estreei numa sala de teatro, no velho Sá da Bandeira e me enchi de fantasia ao ver os primeiros filmes no Rivoli, no Trindade, no Batalha ou no Carlos Alberto. E que me enamorei, irremediavelmente, dos acordes de um piano, de um violino e de uma grande orquestra na versátil sala do Coliseu.
Devo à cidade do Porto o meu
baptismo cultural . Tudo aconteceu nela pela primeira vez. Talvez, por isso, a
sinta como minha, passados tantos anos que foram.
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que já escrevi - Memórias, Maio de 2018, p85
Era sempre uma aventura desejada qualquer passeio por esta cidade. Foi lá que fui pela primeira vez ao circo, no Coliseu. Que me estreei numa sala de teatro, no velho Sá da Bandeira e me enchi de fantasia ao ver os primeiros filmes no Rivoli, no Trindade, no Batalha ou no Carlos Alberto. E que me enamorei, irremediavelmente, dos acordes de um piano, de um violino e de uma grande orquestra na versátil sala do Coliseu.
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que já escrevi - Memórias, Maio de 2018, p85
Porto – Porto
mergulhadas ao contrário
aguarela na corrente
pelo Douro as cores das casas
a cidade e o seu cenário
as janelas querem gente
como os sonhos querem asas
no reflexo da Ribeira
vão as nuvens pelo chão
nada o Duque no seu seio
os rabelos vão nas vistas
amarrados aos turistas
as gaivotas de permeio
sendo outras são as mesmas
as gaivotas e o seu grito
pelo Douro desce o tempo
nossos olhos ao relento
vão mudando na mudança
no granito do teu peito
bate um rio-coração
doces vagas, tempestade
deste Porto fiz meu porto
a caminho do teu corpo
pelo norte da vontade
no meu sonho livres rotas
(há quem diga que exagero)
troco ouro por gaivotas
por tão pouco há logo quem
diga que é porque te quero
noutro vento a mesma dança
como asas de ninguém
João Gigante-Ferreira
Tudo acontecia quase no fim do Verão. A vindima como que encerrava a época estival. Era um tempo que nos ligava fortemente à terra , num processo telúrico de muitas sensações. Após a recolha da uva, que nos permitira enterrar os pés na terra e sentir nas mãos o peso dos frutos, era a vez do olfacto que se alargava na mistura dos vapores que se soltava no pisar da uva até ao mosto. E o festim das cores, que se harmonizava em gradações várias, concomitante com as diferentes etapas , enchia os meus olhos de criança. Um esplendor que exercitava o meu olhar para a descoberta do belo.
Homens de calças arregaçadas e pés descalços saltavam para o lagar e, num ritmo que fora improvisado num passado longevo, pisavam a uva que se liquidificava conforme o tempo se ia diluindo. Ora em rodas circundantes, que se encaixavam umas nas outras , ora em filas paralelas, acertavam-se de braços entrelaçados como que a repartir um movimento que se exercia dinâmico, cadenciado e assertivo em toda a área do lagar.
Chegava , então, o tempo maior do cântico. O cantar à desgarrada impunha-se como o exercício nobre que os homens cumpriam com um saber que lhes era natural.
Para mim , todo este cerimonial era um espectáculo fascinante.
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que já escrevi - Memórias, Maio de 2018,p 36
Gostei muito do texto e da canção!
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