quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Breve meditação sobre cultura

Breve meditação sobre cultura
por Eugénio Lisboa
 
Verificaremos sempre que o ódio é mais forte e mais violento, 
onde o grau de cultura é mais baixo.
Goethe
 
No que à cultura diz respeito ,encontramo-nos na situação
de Robinson. Naufragámos. Isto é grave, mas não é uma
catástrofe, desde que não percamos o moral, não entremos
em pânico, sejamos capazes de aprender e tenhamos  de-
terminação e persistência suficiente para nos reorganizarmos.
Dietrich Schwanitz 
 
"Depois de quarenta anos de democracia e de governos de várias cores e formatos, vejo-me obrigado a concluir, com alguma tristeza, que os nossos políticos, na sua esmagadora maioria, não acreditam na cultura nem na utilidade dela. Se calhar porque a não têm e nunca a fruíram a sério. A cultura, para eles, mesmo quando afirmam o contrário, é vista como um mero acessório “chic”, uma espécie de flor na lapela, que dá jeito mas não tem propósito de maior. E tanto faz que sejam socialistas, como sociais-democratas, democratas cristãos ou neoliberais. A prova do bolo está no comê-lo, ou seja, no dinheiro que estão dispostos a investir nela, e o dinheiro até agora investido neste pelouro foi sempre uma autêntica miséria. A Alemanha, por exemplo, soube sempre qual é o valor da cultura e investiu nela sumptuariamente. A França também. A Argentina, igualmente. Tivemos um bom ministro da cultura, Manuel Maria Carrilho, que quase toda a gente odeia, não pelas razões que hipocritamente aduzem, mas por ser mais culto, inteligente e capaz do que a média lusíada e ter forçado o seu governo, no primeiro mandato, a investir naquilo em que dizia acreditar. E tivemos um Presidente da República, Mário Soares, para quem a cultura realmente conta. Tudo isto não conseguiu, quase nunca, elevar o orçamento para a cultura ao pífio 1%  do PIB, encontrando-se actualmente em nível evanescente e nas mãos de um Secretário de Estado dela, que mais se parece, quando fala, com um faniqueiro Secretário de Estado do Orçamento, descendente convicto do Scrooge que Dickens imortalizou.
Quem trabalha nos pelouros onde da cultura se cuida, quer preservando-a, quer acrescentando-a, quer promovendo-a aos olhos dos indígenas e dos de fora, sabe perfeitamente que tudo isto é verdade. Quando vem o tempo das vacas magras – e ele vem muitas vezes – o nosso czar ou czarina das Finanças, com a subserviente e sorridente obediência do primeiro ministro, que olha aterrado para aqueles mapas pejados de artilharia pitagórica, não hesita em meter uma faca mal intencionada no orçamento da cultura, mesmo quando esta já anda de farpela no fio e de alpercatas cheias de buracos. Porque os nossos governantes do pelouro da cultura – e os outros é pior! – têm da cultura uma noção que não deve andar muito longe da definição célebre do infame Lord Raglan: “Cultura é tudo o que nós fazemos e os macacos não fazem.” Foi este mesmo Lord Raglan que descobriu não passar Shakespeare de um sindicato de meia dúzia de escritores, dos quais Shakespeare-ele-mesmo escrevia apenas as partes cómicas das peças que hoje circulam com o seu nome. O nosso actual Secretário de Estado da Cultura, de nome Barreto, fez uma descoberta não menos inovadora: gastar dinheiro com o pelouro que governa não é uma prioridade. Ao lado disto, Vítor Gaspar ou Maria Luísa Albuquerque são quase uma ternura.
Fui, relutantemente, nomeado conselheiro cultural em Londres, como já atrás contei. Nem vontade nem vocação nem competência me faltavam para desempenhar o lugar a contento. Também não sofri, do lado dos meus superiores, do pelouro diplomático, qualquer obstrução ao meu zelo. Do lado das Secretarias de Estado ou dos Ministérios da Cultura, também não, de um modo geral, em termos de apoios institucionais e, quando possível, financeiros. O problema nunca esteve aí. O que não houve, nunca, foi orçamentação  minimamente decente, na área da cultura. O regime mudou, de autoritário ou ditatorial, como se prefira, para democrático, em 1974, mas, nas finanças, os Salazares perpetuaram-se: cultura, sim, mas pouca e devagar. E foi quase sempre assim, durante quarenta anos, e vai continuar a ser assim, por muitos e bons. Os nossos políticos, de uma maneira geral, não têm cultura (nem sequer cultura política), não gostam de cultura, detestam as pessoas cultas e mostram-se, em decisões e tics do dia a dia, irremediavelmente provincianos.
O que mais me tem intrigado não é, até, a fanheirice dos czares das finanças: se calhar, até lhes está nos genes. O que mais me custa a engolir é a aceitação do lugar de Secretário de Estado ou Ministro da Cultura, por parte de figuras que até respeito, mesmo com o pelouro pindericamente orçamentado. Tenho, para dar um exemplo – poderia dar outros – o maior respeito cultural por uma figura como Coimbra Martins, mas não posso deixar de me perguntar: o que terá levado um homem com o seu prestígio a aceitar o lugar de Ministro da Cultura, com o orçamento do pelouro selvaticamente mutilado? Para fazer o quê? Será assim tão importante ser ministro? Alguém ficará na História por ter sido ministro? Não valerão bem mais os Ensaios Queirosianos do que qualquer ministério, ainda por cima pifiamente orçamentado? Valerá a pena vender a alma por um prato de lentilhas? Ter um carro, um motorista, uma verbazinha de representação e uns convites para umas recepções, em geral, chatíssimas – dá para compensar a neura de se não poder fazer nada, por “falta de verba”? Se dois ou três nomes de real prestígio tivessem tido a saúde de só aceitar aquele ministério, mediante condições minimamente decentes de orçamentação do pelouro, os poderes que podem seriam forçados, ao fim de algum tempo, a repensar toda a falta de vergonha que tem presidido à gestão da cultura em Portugal. Gasta-se afrontosamente dinheiro mal gasto em tropelias e “combines” que deviam constituir-se em autênticos casos de polícia. Enchem-se os gabinetes ministeriais de uma fauna partidária e parasitária, mais ou menos iletrada e totalmente desnecessária, mas voraz e opiparamente paga, a pretexto de uma “especialidade” qualquer, que obviamente não possuem (naquelas idades, ninguém é especialista de coisa nenhuma…); enche-se o país de autarquias em número grotesco, de tão desnecessário; apaparica-se um número injustificado de deputados que a si próprios oferecem incrementos salariais, prebendas, confortos e isenções, enquanto, com aparatoso desplante, legislam sacrifícios, congelamentos e austeridades, que esmagam o povo – para tudo isso vai havendo “verba” e até para pagarem os prejuízos que ocorrem em parcerias velhacas entre o Estado e os “privados”, sendo só o Estado a assumir todos os riscos e a pagar todos os prejuízos (ainda aqui, um caso de polícia); vai também havendo verba para se pagar sumptuariamente a “escritórios de advogados” (termo com dignidade suficiente para figurar no famigerado Dicionário Infernal, de Collin de Plancy), cujos oficiantes fazem quadriga romana com um pé no parlamento e outro no gabinete onde se congemina legislação duvidosa ou claramente perniciosa; há dinheiro para tapar buracos negros, em bancos, criados por uma coorte de aventureiros sem escrúpulos, que nunca chegam a ver o sol por entre as grades que, de direito, lhes deviam estar reservadas. Há sempre uma justificação, um pormenor, uma minúcia, uma prescrição que permite a um banqueiro trapaceiro e bilionário não pagar uma multa, que lhe foi, com justiça, aplicada. Para tudo isto, há dinheiro. E até há dinheiro para que os administradores das nossas empresas, mesmo públicas, quanto mais privadas, aufiram salários confortavelmente muito acima do que aufere o Presidente dos Estados Unidos (enquanto se nos diz que devemos aceitar que somos e seremos, de aqui para o futuro, um país pobre…). Há dinheiro para todo este regabofe, Mas nunca há dinheiro para o pífio 1% do PIB que se anda, há tanto tempo a prometer à cultura. Somos, de facto, governados por um bando de gente inculta e que odeia a cultura: toda a cultura, repito, incluindo aquela que devia possuir – a cultura política. Gente que nem sequer percebe o significado subliminar e profundo de uma boa imagem cultural – o que ela pode fazer pela promoção de outras vertentes mais materiais ligadas à economia da nação. Gente que se não questionou, não leu, não se informou, não investigou, não perguntou. E que fica surda, mesmo aos “avisos” dos que acham por bem não temer dá-los, no momento próprio. Um desses “avisos” foi por mim dado, numa conferência que fiz, em Novembro de 1986, na Universidade do Minho, a convite do Professor Vítor Manuel de Aguiar e Silva, a propósito da entrada de Portugal na CEE. Dela, enviei, na altura, uma cópia à Dra. Teresa Patrício de Gouveia, que tenho por amiga e que nunca deslustrou a cultura, nos altos cargos que desempenhou. Mais tarde (1999) publiquei-a no meu livro O Objecto Celebrado, publicado na prestigiosa colecção “Acta Universitatis Conimbrigensis", pelo meu saudoso amigo Aníbal Pinto de Castro. Como uma edição desta natureza não tem, necessariamente, muita circulação, e dado que o ali dito continua, infelizmente, a ser actual, permito-me transcrever aqui algumas passagens daquela conferência, que levava, não inocentemente, o título camoniano “Cantar a gente surda e endurecida”:
“Harold Nicholson (…) atribuía o fracasso inglês [na promoção, no estrangeiro, da cultura inglesa] no século XIX «a uma arrogante reticência [relativa a essa divulgação] baseada no hábito adquirido de se olhar todas as formas de autopromoção como odiosas: ‘Se os estrangeiros não conseguem apreciar ou sequer notar os nossos dons de invenção ou o nosso esplêndido poder de adaptação, então não há nada que possamos fazer para mitigar a sua obtusidade. O génio da Inglaterra, ao contrário do génio de outros países menores, fala por si próprio.’» Dotados de uma língua universalmente conhecida e, até há pouco tempo, de um poder económico imponente, os britânicos quase se puderam dar ao luxo desta arrogância ou desta espécie de amuo, como se lhe queira chamar.
“Outro factor que esteve na origem desse recuo dos britânicos, relativamente à diplomacia cultural, terá sido, segundo alguns autores, a conotação algo sinistra que se colou à palavra propaganda, a seguir à 1ª guerra mundial. Uma das efectivas armas de guerra criadas pelos britânicos durante esse destrutivo conflito foi o Ministério da Informação, presidido por Lord Beaverbrook e encarregado de disseminar propaganda pelos países aliados e neutrais. Tratava-se, é claro, de «levantar o moral», de um lado, e fazê-lo baixar, do outro.  O objectivo visado não tinha necessariamente que coincidir sistematicamente com a verdade. O senador americano Hiram Johnson observou um dia, com ironia e tristeza, que, «quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade.» Os processos de Beaverbrook, no sentido de levar a bom termo a sua missão, foram, salvo melhor opinião, particularmente implacáveis e pouco escrupulosos, havendo quem diga ter Hitler ficado por tal forma impressionado com tais processos, que viria mais tarde a copiá-los, requintando-os. Tudo isto daria à palavra propaganda um cheiro que não era propriamente de santidade e que esteve na origem do reflexo de recuo que viria a reflectir-se, de futuro, no comportamento dos britânicos, em tudo quanto se tratasse de autopromoção. Durante arrastados anos, ficaram-se a ver os franceses avançar, galhardamente, com a sua diplomacia cultural, bem financiada e triunfante, enquanto eles se retiravam, pundonorosos, altivos e…frustrados.  Só nos anos trinta, tendo finalmente percebido que o recuo da sua imagem cultural lhes afectava o êxito no sector do comércio externo, se resolveram a conjurar o fantasma associado à palavra propaganda, tomando as diversas medidas que levaram finalmente à criação do British Council, periodicamente contestado, ocasionalmente ferido nos seus meios de acção, mas hoje prodigiosamente existente, necessário, procurado, afluente e produtor de uma imagem que o Reino Unido ganha em ver assim promovida. Na origem desta mudança, esteve, segundo pensa a historiadora do British Council, Frances Donaldson, o relatório de D’Abernon, que chefiou, em 1929, uma missão comercial à América do Sul. D’Abernon verificou que, apesar dos milhões de libras investidos em antigos negócios, os britânicos não estavam a fazer quaisquer progressos em sectores novos como a aviação, a construção de estradas ou o transporte a motor, nos quais, outros países mais aventurosos e de imagem menos anquilosada lhes estavam a levar a dianteira. Mas a parte que nos interessa aqui desse relatório sensacional é o capítulo intitulado «A importância comercial da influência cultural». Nesse ponto, os autores do relatório sublinham, com vigor, que se não pode inteiramente afirmar que os britânicos «tenham suficientemente entendido a relação directa [que existe] entre cultura e comércio», dedicando, a seguir, bastante espaço do referido texto a descrever e analisar a influência cultural da França, da América, da Alemanha e da Itália. Não vou aqui gastar a vossa paciência com minúcias do influente texto de D’Abernon, mas não resisto a transcrever, pelo seu teor, a conclusão-advertência desta sua incursão nas relações entre cultura e comércio: «Àqueles que dizem não ter esta extensão da nossa influência [i. e., a cultural] qualquer relação com o comércio, respondemos que estão totalmente errados; a reacção do comércio à mais deliberada inculcação da cultura britânica, que nós advogamos, é definitivamente certa e deverá ter lugar com a maior rapidez.» Deixo aqui para meditação e digestão, esta jóia de reflexão, oriunda de gente reputada por ter os pés bem chegados ao chão e conhecida, na sabedoria corrente, por ter uma espécie de horror sagrado a termos assustadores, como é, por exemplo, o de «cultura». Note-se que as passagens citadas se encontram num relatório de uma missão comercial e não cultural. Foram os promotores do comércio a fazer apelo à cultura e não esta a propagandear os seus próprios méritos…”
 
O texto do qual transcrevi as palavras acima é mais longo e, no seu conjunto, talvez mais eloquente. Mas o que aqui deixo registado parece-me suficiente para quem o queira ver com olhos de ver."
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula - Memórias - Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres. (1976-1995), Opera Omnia  Editora, Outubro de 2014.

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