quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Duas garrafas de Chianti ou um verso de Racine?

Eugénio Lisboa

É impossível não publicar textos literários sem que Eugénio Lisboa não seja o primeiro grande nome que se insinue. É tal a dimensão da sua obra , que bastava para justificar. Mas não se trata apenas de dimensão, a qualidade mergulhou em toda a sua obra . Trata-se de um escritor maior, multifacetado, que nunca teve pejo de ir onde muitos não foram para abordar qualquer tema e, naquele franco falar, produzir obras de verdadeira genialidade.
O texto, que se apresenta, foi extraído do livro Portugaliae Monumenta Frivola ou As verdadeiras e as Falsas Riquezas, e recebeu o Prémio Jacinto Prado Coelho pela Associação Internacional dos Críticos Literários , em 2000.
 
Duas garrafas de Chianti ou um verso de Racine?
por Eugénio Lisboa
"Não há artes menores, só há artistas menores. Quando Mozart compunha uma música de fundo, para banquetes nos palácios dos seus patronos, não estava a produzir música menor. Quando Rui Coelho escrevia música orquestral séria e ambiciosa, fabricava pastelões abaixo de menores.
Uma cortina , o design de um copo ou de um vaso, uma máquina de fazer  café podem surpreender-nos, desencadeando em nós uma emoção estética tão forte como um alexandrino de Racine.
Julgo ter razões para pensar que, para um espírito como o de Leonardo, nada estava abaixo do seu apetite criador ou do seu olho voraz. " Se Botticelli estivesse hoje vivo " , dizia Peter Ustinov, " estaria a trabalhar para a  Vogue".
Há quem goste de troçar, sem razão, do grande químico inglês Humphry Davy que, ao ser-lhe perguntado que impressão lhe causavam as galerias de arte de Paris, respondeu: " São a melhor colecção de molduras que até hoje vi.". A resposta é menos tola do que possa parecer, porque não só uma moldura  pode ser uma admirável obra de arte como, em muitas galerias, se se não salvam as molduras, pouco se salvará.  Humphry Davy mostrou apenas uma grande e intrépida candura e um espírito esplendorosamente  despido de preconceitos.
Muitas vezes troça-se do que é admirável só porque o que é admirável não é pomposo.  Nada mais ridículo  - ou até odioso - do que pretender-se transformar a arte em Arte.  Um personagem da famosa peça  Equus,  de Peter Shaffer, fala da sua mulher com um desprezo mal fundado: " Tudo quanto a minha mulher  conseguiu trazer do Mediterrâneo - de toda essa vasta cultura  intuitiva - foram duas garrafas de Chianti, para as transformar em candeeiros, e dois burrinhos para condimentos, em porcelana, com os nomes de Sally e Peppy". Pensar que duas garrafas  de Chianti não podem  dar, com imaginação criativa, dois candeeiros elegantes e clássicos, releva daquela estupidez pomposa de quem não gosta de confundir arte com Arte.
Toda a arte começou por não ser pomposa mas arrisca-se a acabar soterrada em pompa. Muita da audiência para que Shakespeare  escrevia as suas peças  era apenas a escumalha de Londres. Thomas Mann via no artista  criador - mesmo no mais insigne - um "entretainer" e até um clown.
O design tem potencial e às vezes tem competência para produzir , em nós, a emoção equivalente à que em nós constrói um verso de Racine.  Comprei em Nápoles e em Barcelona, uma máquina de café e um pequeno bule de bronze, que gosto de revisitar como revisito -  com a mesma emoção - os versos que de há muitos anos nos devolvem , com elegância trágica, a mortal angústia de Fedra.
O moderno design dá à vida um estilo e uma elegância que a vida normalmente não tem. Só isso mostra que o design tem o estatuto de arte, se é verdade, como queria Voltaire, que o segredo das artes está em corrigir a natureza. Acrescentando-a, proporia eu."
Eugénio Lisboa, in Portugaliae Monumenta Frivola ou As verdadeiras e as Falsas Riquezas,  1ª edição,  2000, Universitária Editora, Lda. , pp.135,136.

3 comentários:

  1. Onde há sensibilidade e receptividade, como a de Eugênio Lisboa, sempre haverá a percepção de Arte. Mas há muito mais a dizer sobre o tema. Sobretudo mostrar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sou eu, Frederico Füllgraf, o autor do comentário anterior. Eu tentei, mas não encontrei o indicativo "se inscrever". Meus reiterados parabéns à Maria José pela ampla divulgação da obra de Eugênio Lisboa.

      Eliminar
    2. Os meus agradecimentos pelos votos. Todos pertencem a Eugénio Lisboa, nome maior da nossa Literatura, que faz parte deste blog pelo imenso contributo da sua obra . Até à sua morte , produziu textos singulares que nos remetia e, com grande honra , fomos publicando. Jamais poderemos homenagear, com equiparada dimensão, o valor e a genialidade da sua escrita. É um insigne escritor, um primoroso intelectual e foi sempre um ser humano de grande grandeza e vincada simplicidade. Assim se distinguem os grandes homens.

      Eliminar