[Faro,17.10.1924 - Lisboa, 23.09. 2013]
"António
Ramos Rosa frequentou em Faro os estudos secundários, que não concluiu por
motivos de saúde. Trabalhou como empregado de escritório, desenvolvendo
simultaneamente o gosto pela leitura dos principais escritores portugueses e
estrangeiros, com especial preferência pelos poetas. Em 1945 vai para Lisboa e
dois anos depois volta a Faro, tendo integrado as fileiras do M.U.D. Juvenil,
onde militou activamente. Regressado a Lisboa, foi professor de Português,
Francês e Inglês, ao mesmo tempo que estava empregado numa firma comercial, e
começou a fazer traduções para a Europa-América, trabalho que nunca mais
abandonaria e no qual veio a atingir notável qualidade.
O continuado interesse pela actividade literária levou-o a relacionar-se com um
grupo de escritores que o incentivaram na publicação dos seus poemas e artigos
de crítica, tendo colaborado em numerosos jornais e revistas. Com alguns desses
escritores, fundou em 1951 a revista Árvore, que veio a ser uma das
mais marcantes da década, procurando divulgar os textos dos poetas e prosadores
portugueses mais significativos no tempo, bem como os grandes nomes da
literatura estrangeira. Co-dirigiu também as revistas Cassiopeia e Cadernos
do Meio-Dia.
A crescente importância que a actividade literária foi tomando na sua vida
levou-o a certa altura a abandonar o emprego no escritório em que trabalhava,
para a ela se dedicar exclusivamente, com todas as consequências que tal
decisão acarretava.
A atitude crítica que permanentemente exercitou sobre a sua própria palavra
como sobre a palavra alheia faz de A.R.R. um dos mais esclarecidos críticos
portugueses contemporâneos, o que se manifesta em inúmeros artigos e recensões
sobre poetas portugueses e estrangeiros, bem como na publicação de vários
ensaios centrados na temática da poesia. A.R.R. tem, no entanto, o cuidado de
separar de uma forma muito nítida a sua actividade de crítico, em que não pode
deixar de utilizar critérios e referências racionais, da sua actividade
criadora: enquanto poeta faz da ignorância e da radical suspensão de todos os
saberes e hábitos adquiridos o único método para a eclosão da sua palavra
poética. Na verdade, a procura da palavra justa para dizer as «coisas nuas» e a
reflexão sobre a realidade e a possibilidade dessa palavra é, talvez, o único
tema desta poesia, na qual é, no entanto, possível assinalar diferentes fases:
recortando-se duma problemática neo-realista de solidariedade para com o
destino dos homens e do mundo, O Grito Claro (1958) e Viagem
Através de Uma Nebulosa (1960) utilizam uma linguagem e uma vivência
ainda devedoras dessa estética, combinadas com uma imagética herdada do
surrealismo. Mas encontramos já de uma forma incipiente nessas primeiras
recolhas algumas das constantes da obra do poeta: um enraizamento pelo corpo na
Terra, não numa Terra utópica e futura, mas na materialidade mais
originariamente primitiva da natureza; uma libertação, pela palavra mais
solitária, de todas as prisões e constrangimentos que a poderiam cercear; uma
permanente atenção à materialidade da própria linguagem poética, que a desliga
tanto da sua função representativa como da sua função expressiva (pois não se
trata já de exprimir um real subjectivo, tão caro aos poetas líricos). Esta
particular concepção da Poesia irá ser retomada mais tarde quer pelo grupo
«Poesia 61», quer pelos poetas experimentalistas.
Após um decisivo encontro com a poesia de Éluard, A.R.R. abandona
definitivamente a retórica e a imagística neo-realista e surrealista, para se
concentrar numa palavra solar, pura e rigorosa, podemos dizer mesmo elementar,
à medida que a exigência de um retorno à origem se tornará numa das suas
obsessões. Exigência que lhe pedirá até para substituir à sua própria voz uma
verdadeira voz inicial (título de uma recolha de 1960), memória da criação mais
remota, que se ergue de um território onde se indistinguem sujeito e objecto.
Como nota Eduardo Lourenço, a poesia de A.R.R. nunca mais abandonará esse porto
«anterior a todos os portos». Esta poética do puro início expande-se a todo o
espaço e a toda a matéria, através dum erotismo mediado pelo corpo próprio,
pelo corpo da mulher, pelo corpo da terra, pelo corpo da palavra. Da
apropriação destes espaços através da palavra poética, nunca dada a
priori mas conquistada através de um desejo, de um esforço, de uma
viagem, nasce uma felicidade exultante e viva que frequentemente nos é
transmitida por metáforas de claridade.
O contraponto desta plenitude meridional é a dificuldade com que o poeta se
debate ao tomar consciência da sombra que nasce da raíz de toda a realidade e
da realidade de toda a palavra. A luta entre a luz e as trevas, que é central
em Sobre o Rosto da Terra, vai invadindo gradualmente de
negatividade a poesia subsequente, até lhe ameaçar toda a arquitectura em A
Pedra Nua (1972), onde a plenitude solar dos primeiros livros é
substituída pela inquietante suspeição sobre o poder dessa mesma palavra, num
território cada vez mais calcinado, até ao limite dum dizer que perde o fio e
se transforma num quase ininteligível balbuciar (Declives, 1980).
A partir de Volante Verde (1986) assistimos no entanto a uma
espécie de «reconciliação com as palavras» através duma certa forma de
integração da ausência, já não combatida mas incluída como forma estruturante
da própria poesia. O poeta encontra então um novo fôlego, através da
«enigmática profusão da terra», numa exaltação da natureza que adquire uma
feição animista. O universo poético de A.R.R., jogando com um número
relativamente restrito de vocábulos e de temas, dá predominância às palavras
substantivas e elementares tais como: pedra, água, árvore, cal, mão, muro, e
mesmo às formas mais ínfimas e humildes: unha, insecto, pó, cabelo, sopro,
espuma, baba do caracol. Estes elementos são retomados e combinados
caleidoscopicamente, em ciclos que continuamente se reiniciam. A exploração
ontológica e poética vai-se processando em movimentos cada vez mais lentos e
subtis, num itinerário em que a densidade do espaço e a substância dos objectos
se vai tornando progressivamente mais permeável e transparente. A
desmaterialização das coisas e da língua que as diz liga-se intimamente ao modo
como o poeta apreende o ser do universo – misto de presença e de ausência, de
verdade e não-verdade, de sim e de não (O Não e o Sim é aliás
título de uma recolha de 1990). Criando um campo semântico sobre a finíssima
linha de demarcação entre a afirmação e a negação, o poeta foge da dicotomia,
da disjunção, da determinação, num espaço cada vez mais aberto e ilimitado, que
se adequa cada vez melhor à manifestação «do que não tem nome». O poeta, que
procura entrar em consonância com esse horizonte do real, torna-se também ele
corpo místico e mítico do universo, onde se conciliam por fim todos os
contrários.
Poesia de coordenadas eminentemente espaciais, ela tem evoluído ultimamente no
sentido de uma mais acentuada articulação discursiva, a par de uma aguda
consciência da passagem do Tempo, com as questões que essa consciencialização
coloca: «será ainda possível construir sobre a cinza do tempo / a casa da
maturidade com as suas constelações brancas?»
A. R. R. recebeu vários prémios de poesia, o primeiro dos quais pela obra Viagem
Através de Uma Nebulosa, partilhado ex-aequo com Henrique Segurado. Em
1980, o Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários, pelo
livro O Incêndio dos Aspectos; em 1988, o Prémio Pessoa; em 1989, o
Prémio APE/CTT, pela recolha Acordes, e, em 1990, o Grande Prémio
Internacional de Poesia, no âmbito dos Encontros Internacionais de Poesia de
Liège.”
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998
Não
posso adiar o amor para outro século
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