quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

A isca narrativa

“Os leitores não estão, muitas vezes, atentos aos truques que usam os oficiantes da ficção, para seduzirem os leitores. Este texto, que repesco de um passado remoto, tenta espionar a oficina dos narradores.”
Eugénio Lisboa
 
A isca narrativa
por Eugénio Lisboa
“Desde tempos muito remotos, os escritores usam truques para captarem a atenção dos leitores. Truques, diga-se de passagem, nem sempre muito subtis e até, por vezes, francamente grosseiros. São aquilo a que podemos, com alguma razão, apelidar de “isca narrativa”. A construção de um mistério, a criação de uma expectativa, um momento de “suspense”, uma pontinha de sexo ou de pornografia, há muitas maneiras de captar a atenção do leitor. A peça de Sófocles, Rei Édipo, mantém o espectador ou o leitor suspenso até ao último minuto, sem por isso descer da sua majestade trágica. Charles Dickens, quando escrevia os seus romances extremamente populares, usava de imensos truques para manter o leitor cativo. Conta-se que, ao publicar, em fascículos, o seu romance Old Curiosity Shop (A Loja de Antiguidades), à medida que o romance se aproximava do fim, os leitores viviam cada vez mais ansiosos por saber se a pequenita Nell, personagem do romance, morreria ou não. E, um dia, quando, em Nova Iorque, no cais, muitas pessoas aguardavam a chegada de um barco que trazia os últimos fascículos do romance, quando o navio finalmente se preparava para encostar ao cais, alguns dos presentes não se contiveram e gritaram para bordo, para o comandante: “A pequenita Nell morreu ou não morreu?”
Não é a existência ou não existência de uma isca narrativa que torna a narrativa menos nobre ou mais nobre. Os romances policiais de Simenon, Chandler, Hammett ou Robert B. Parker usam de isca, sem pudor, e nem por isso perdem seja o que for em qualidade literária. O que pode afectar essa qualidade literária é o uso mais ou menos indiscreto da isca. Quando a isca narrativa é o principal ingrediente da atracção do livro, temos então o caldo entornado. O meu amigo (já falecido) Fernando Namora, que era, aliás, amigo e admirador do escritor brasileiro Jorge Amado, contou-me um dia, acerca deste, uma história que me arrepiou. Jorge Amado veio a Lisboa e trouxe consigo o manuscrito do seu, à data, último romance. Deu-o a ler ao autor de Retalhos da Vida de um Médico, com a seguinte recomendação: que o Fernando lesse o livro com muita atenção e que, no fim, lhe dissesse, com muita franqueza, se o romance tinha ou não sexo suficiente. Se achasse que não tinha, que lho dissesse e ele, nesse caso “botava mais”. Não podia ter sido mais claro. Mas também não podia ter revelado, de modo mais grosseiro, “ao que ia”: a venda alargada da sua mercadoria, alterando-lhe a composição dos ingredientes, ao gosto do leitor.
Frequentemente, é o editor ou o agente literário quem exerce pressão sobre o autor, de modo a incentivá-lo a acrescentar o teor de isca narrativa. O conhecido autor de livros de ficção científica, Isaac Asimov, conta a história do autor cujo agente lhe disse que os seus livros não se vendiam porque, neles, não havia sexo em quantidade suficiente. Não havia sexo suficiente?, repontou o autor indignado. “De que é que V. está a falar? Olhe, logo aqui, na primeira página do livro, a cortesã precipita-se para fora do quarto, completamente nua, e corre em direcção à rua, com o herói a persegui-la, tão nu como ela, e num estado explicitamente descrito como de erecção sexual”. “Pois sim”, respondeu o agente, “mas isso vem só no final da página!” Para o agente, todo o interesse do livro estava, não no livro em si, mas apenas nessa isca narrativa, ali posta para captar o olho e a lascívia do leitor. Ora bem: que se use a isca para “segurar” o leitor, vá, mas usar a isca como alimento principal do leitor é uma verdadeira perversão, que a verdadeira grande literatura não acolhe. Só os vendilhões “botam mais”, quando acham que o leitor não tem o suficiente.”
Eugénio Lisboa 

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