quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

O Enigma da Poesia

 
O Enigma da Poesia
por Jorge Luis Borges
“Ao começar, gostaria de vos advertir quanto ao que há a esperar — ou melhor, a não esperar — de mim. Vejo que cometi um deslize logo no título da minha primeira palestra. O título é, se não estamos em erro, «O Enigma da Poesia» e o sublinhado vai, evidentemente, para a primeira palavra, «enigma». Portanto, podem pensar que o enigma é que é importante. Ou, o que seria ainda pior, podem pensar que eu criei a ilusão de ter de algum modo descoberto a verdadeira solução do enigma. A verdade é que não tenho revelações a oferecer. Passei a minha vida a ler, a analisar, a escrever (ou a tentar escrever) e a divertir‑me. Acho que esta última coisa é a mais importante. «Bebendo» poesia cheguei a uma conclusão final sobre ela. Na verdade, sempre que se me depara uma página em branco sinto que tenho de redescobrir a literatura por mim. Mas o passado não me vale de nada. Portanto, como disse, tenho apenas as minhas perplexidades para vos oferecer. Aproximo‑me dos setenta anos. Dediquei a maior parte da minha vida à literatura e só dúvidas posso oferecer‑vos. O grande escritor e sonhador inglês Thomas de Quincey escreveu — em alguma dos milhares de páginas dos seus catorze volumes — que descobrir um problema novo é de facto tão importante como descobrir a solução para um problema velho. Isso, porém, não posso eu oferecer‑vos: só posso oferecer‑vos perplexidades de longa data. Mas, para que hei de preocupar‑me com isto? O que é a história da filosofia, senão uma história das perplexidades dos Hindus, dos Chineses, dos Gregos, dos Escolásticos, do bispo Berkeley, de Hume, de Schopenhauer, e por aí fora? Pretendo apenas partilhar convosco estas perplexidades. Todas as vezes que mergulhei em livros de estética tive a sensação desconfortável de ter estado a ler livros de astrónomos que nunca olharam para as estrelas. O que quero dizer é que escrevem sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa e não o que realmente é: uma paixão e uma alegria. Por exemplo, li com grande respeito o livro de Benedetto Croce sobre estética e foi‑me dada a definição de que a poesia e a linguagem são uma «expressão». Ora, se pensarmos na expressão de alguma coisa, vamos cair no velho problema da forma e da matéria; e se pensarmos na expressão de nenhuma coisa em particular, não dá realmente nada. Portanto, recebemos essa definição com todo o respeito e a seguir voltamo‑nos para outra coisa. Voltamos à poesia; voltamos à vida. E a vida é, tenho a certeza, feita de poesia. A poesia não nos é alheia — a poesia espreita, como veremos, a cada esquina. Pode saltar‑nos em cima a qualquer momento. Agora estamos prontos para cair numa confusão vulgar. Pensamos, por exemplo, que, se estudarmos Homero, ou a Divina Comédia, ou Frei Luis de León, ou Macbeth, estamos a estudar poesia. Mas os livros são apenas ocasiões para a poesia. Acho que Emerson escreveu algures que uma biblioteca é uma espécie de caverna mágica cheia de mortos. E esses mortos podem renascer, podem voltar à vida quando abrimos as suas páginas. Por falar no bispo Berkeley (o qual, deixem‑me recordar‑ vos, foi um profeta da grandeza da América), lembro‑me de que ele escreveu que o sabor da maçã não está na própria maçã — a maçã não se saboreia a si própria — nem na boca de quem a come. Requer um contacto entre as duas. O mesmo sucede a um livro ou a uma colecção de livros, a uma biblioteca. Na verdade, o que é um livro em si? Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então chega o leitor certo, e as palavras — ou melhor, a poesia por trás das palavras, pois as palavras em si são meros símbolos — saltam para a vida e temos uma ressurreição da palavra. Recordo agora um poema que todos conhecem de cor; mas talvez nunca tenham reparado como é estranho. Porque as coisas perfeitas em poesia não parecem estranhas; parecem inevitáveis. E por isso não chegamos a agradecer ao poeta o seu esforço. Estou a pensar num soneto escrito há mais de cem anos por um jovem em Londres (em Hampstead, creio), um jovem que morreu de doença dos pulmões, John Keats, e no seu famoso e talvez banalizado soneto «Ao primeiro olhar sobre o Homero de Chapman». O que este poema tem de estranho — e só pensei nisto há três ou quatro dias, quando estava a refletir sobre esta palestra — é o facto de ser um poema escrito sobre a própria experiência poética. Conhecem‑no de cor, no entanto gostaria que ouvissem uma vez mais o impulso e o estrondo dos seus versos finais:
 
Then I felt like some watcher of the skies
 When a new planet swims into his ken:
Or like stout Cortez when with eagle eyes
 He stared at the Pacific — and all his men
 look’d at each other with a wild surmise-
 Silent, upon a peak in Darien.
 
 [Sinto‑me um observador dos céus
 Quando um novo planeta entra no seu campo;
Ou o audaz Cortez mirando com olhos de águia
 O Pacífico — e todos os seus homens
 se entreolhando com tremendo espanto —
 Em silêncio, num cume de Darien.]
 
Temos aqui a experiência poética em si. Temos George Chapman, o amigo e rival de Shakespeare, morto e subitamente regressado à vida quando John Keats leu a sua Ilíada ou a sua Odisseia. Creio que era em George Chapman (mas não posso ter a certeza, pois não sou um shakespeariano) que Shakespeare pensava quando escreveu: «Foi a orgulhosa vela enfunada do seu grande poema / A ti, ao mais que precioso, por prémio destinada …?»
Há uma palavra que me parece muito importante: «Ao primeiro olhar sobre o Homero de Chapman.» Este «primeiro» pode, creio, revelar‑se‑nos muito útil. Ao mesmo tempo que revia estes poderosos versos de Keats ia pensando que talvez estivesse apenas a ser fiel à minha memória. Talvez a real emoção que tirei dos versos de Keats permaneça nesse momento distante da minha infância, em Buenos Aires, quando pela primeira vez ouvi o meu pai lê‑los em voz alta. E quando o facto de a poesia, a linguagem, não ser apenas um meio de comunicação, mas poder ser também paixão e alegria — quando isto me foi revelado, não creio ter compreendido as palavras, mas senti que qualquer coisa me acontecia. Acontecia não apenas à minha inteligência, mas a todo o meu ser, à minha carne e ao meu sangue.
 Voltando às palavras «Ao primeiro olhar sobre o Homero de Chapman», não sei se John Keats sentiu essa emoção depois de ter percorrido os muitos capítulos da Ilíada e da Odisseia. Penso que a primeira leitura de um poema é uma leitura verdadeira e que depois nos iludimos na crença de que a sensação, a impressão se repete. Mas, como ia dizendo, pode ser mera lealdade, uma mera partida pregada pela memória, uma mera confusão entre a paixão e a paixão que outrora sentimos. Por isso podemos dizer que a poesia é uma experiência nova a cada vez. De cada vez que leio um poema, sucede a experiência. E isso é poesia.
Li uma vez que o pintor americano Whistler estava num café em Paris e as pessoas discutiam a maneira como hereditariedade, ambiente, estado político dos tempos, etc. influenciam o artista. Então Whistler disse: «A arte acontece.» Ou seja, há algo de misterioso na arte. Gostaria de dar às suas palavras um novo sentido. Direi: A arte acontece de cada vez que lemos um poema. Ora isto parece afastar a noção já antiga dos clássicos, a ideia dos livros eternos, de livros onde podemos sempre encontrar beleza. Mas espero estar enganado. Talvez deva traçar um breve panorama da história dos livros. Tanto quanto me lembro, os Gregos não viam grande utilidade nos livros. Na verdade, é facto que a maior parte dos grandes mestres da humanidade não foram escritores, mas oradores. Pensem em Pitágoras, Cristo, Sócrates, no Buda e por aí fora. E já que falei de Sócrates, gostaria de dizer alguma coisa sobre Platão. Lembro‑me de que Bernard Shaw dizia que Platão foi o dramaturgo que inventou Sócrates, até que os quatro evangelistas foram os dramaturgos que inventaram Jesus. Talvez seja ir demasiado longe, mas há nisto alguma verdade. Num dos diálogos, Platão fala de livros num tom algo depreciativo: «O que é um livro? Um livro, tal como um quadro, parece um ser vivo; e, contudo, se lhe perguntarmos alguma coisa, não responde. Vemos então que está morto.»  Para tornar o livro uma coisa viva, inventou — felizmente para nós — o diálogo platónico, que enuncia as dúvidas e perguntas do leitor. Mas poderíamos também dizer que Platão tinha saudades de Sócrates. Depois da morte de Sócrates, diria para consigo: «Ora, que teria dito Sócrates a esta particular dúvida minha?» E então, para ouvir uma vez mais a voz do mestre que amava, escreveu os diálogos. Em alguns destes diálogos, Sócrates defende a verdade. Em outros, Platão dramatizou os seus humores variáveis. E alguns desses diálogos não chegam a qualquer conclusão, porque Platão ia pensando à medida que escrevia: não sabia qual seria a última página ao escrever a primeira. Deixava o seu espírito vaguear e teatralizava esse espírito em muitas pessoas. Suponho que o seu principal objetivo seria a ilusão de que, a despeito de ter bebido a cicuta, Sócrates continuava junto dele.”
Jorge Luís Borges, in Este Ofício de Poeta, Relógio D’Água Editores, pp.9-13

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