sábado, 20 de janeiro de 2024

Uma saborosa escrita

Alguns saborosos  trechos, extraídos do livro "Caderno H", de Mario Quintana

Notícias de Bizâncio
"Como distinguir entre “história” e estória”, eu que sempre acredito em tudo? Eu, o leitor modelo. Caso contrário, não seria uma ofensa ao poder criador dos autores? Esse monstrinho foi a última novidade que importamos de Bizâncio, a qual, aliás, acaba de ser bombardeada com a abolição dos acentos discriminatórios, conforme a imprensa amplamente noticiou. Bendito bombardeio que um gramático vigente, no entanto, classificou de “reforminha” e um ex-deputado de “leizinha”... como se nada significasse a morte fulminante dos escavadores de cemitério, dos que desenterraram o verbo “aquelar” enquanto voejava em torno, como um espírito-santo lá deles, o fantasma alado do passarinho “toda”.
 
Do impossível convívio
O mais trágico dessas reuniões sociais é que elas são compostas unicamente de terceiros.
 
De como a história se repete
E eis que ressurge agora o novo homem das Cruzadas, isto é, das palavras cruzadas...
 
Mas seja lá como for
Decifrar palavras cruzadas é uma forma tranquila de desespero.
 
Ela
Mas que haverá com a Lua, que, sempre que a gente a olha, é com um novo espanto?
 
Página de história
De uma História Universal editada no século XXXIII: “Os homens do Século XX, talvez por motivos que só a miséria explicaria, costumavam aglomerar-se inconfortavelmente em enormes cortiços de cimento. Alguns atribuem o facto a não se sabe que misterioso pânico ao simples contacto da natureza; mas isto é matéria de ficcionistas, místicos e poetas... O historiador sabe apenas que chegou a haver, em certas grandes áreas, conjuntos de cortiços erguidos lado a lado sem o suficiente espaço e arejamento, que poderiam alojar vários milhões de indivíduos. Era, por assim dizer, uma vida de insectos – mas sem a segurança que apresentam as habitações construídas por estes”.
 
Seu verdadeiro crime
O que eles jamais perdoaram a Oscar Wilde é que ele era profundo sem ser chato.
 
Fatalidade 
O que mais enfurece o vento são esses poetas inveterados que o fazem rimar com lamento.
 
Camuflagem
A esperança é um urubu pintado de verde.
 
Ser e não ser
Para algo existir mesmo – um deus, um bicho, um universo, um anjo... – é preciso que alguém tenha consciência dele. Ou simplesmente que o tenha inventado.
 
A escrita 
Um trouxe a mirra, o outro o incenso, o terceiro o ouro.
Incenso e mirra evaporaram-se... Mas e o ouro?
Os textos nada dizem quanto à aplicação do ouro!
 
Na solidão da noite 
Os velhos espelhos adoram ficar no escuro das salas desertas. Porque todo o seu problema, que até parece humano, é apenas o seguinte: - reflexos? ou reflexões? 
 
A mestra e os alunos
Dizem que a História é a mestra da vida. Mas como é que os seus protagonistas incorrem sempre nos mesmos erros? Não lhes aproveitou em nada o exemplo dos antecessores reprovados.
É que lhes acontece o mesmo que com os leitores de novelas policiais: cada qual sonha com o crime perfeito. O crime que compensa.
 
Pequena tragédia brasileira
A Bem-Amada queria devorar o coração do Poeta.
- Mas, - disse ele – só terás um pedacinho... Porque noventa por cento pertence aos Editores.
 
Refinamentos
Escrever o palavrão pelo palavrão é a modalidade atual da antiga arte pela arte.

Veneração
Ah, esses livros que nos vêm às mãos, na Biblioteca Pública e que nos enchem os dedos de poeira. Não reclames, não. A poeira das bibliotecas é a verdadeira poeira dos séculos.

O anti-hamlet
O que nos atrai no 007 é que ele é o tipo do herói anti-shakespeariano. Nada de casos de consciência. Não é como esse pobre príncipe Hamlet que, para cometer meia dúzia de crimes, passa todo o tempo falando sozinho...

Mágica divina
O cristianismo acabou com o sofrimento transformando o sofrimento em prazer, como o atesta a alegre legião dos mártires e essa gente que, a cada golpe, exclama: “Seja o que Deus quiser!”

Poesia & lenço
E essas que enxugam as lágrimas em nossos poemas com defluxos em lenços... Oh! tenham paciência, velhinhas... A poesia não é uma coisa idiota: a poesia é uma coisa louca!

Dona Glorinha no circo
Dona Glorinha estava que não podia! Aquele homem que rodava no espaço, cada vez mais rápido, e preso apenas pelos dentes a uma roldana... Dona Glorinha sentia doerem-lhe os dentes, não os de agora, os outros... Dona Glorinha não pôde mais. E bradou, em meio do suspense geral: “Basta, cruel!”

“A poesia é necessária
Título de uma antiga seção do velho Braga na Manchete. Pois eu vou mais longe ainda do que ele. Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus, não tem importância. É preferível, para a alma humana, fazer maus versos a não fazer nenhum. O exercício da arte poética representaria, no caso, como que um esforço de auto-superação.
É fato consabido que esse refinamento do estilo acaba trazendo necessariamente o refinamento de alma.
Sim, todos devem fazer versos. Contanto que não venham mostrar-me.

Contradições
... mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira.
E por isso é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, com toda a sinceridade, as coisas mais opostas.
Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo.

Essa não!
Lili teve conhecimento dos antípodas, na escola. Logo que chegou em casa, começou a deitar sabença pra cima da cozinheira. Falou, falou, e, como visse que Sia Hortênsia não estava manjando nada, ergueu no ar o dedinho explicativo:
– Imagine só que quando aqui é meio-dia lá na China é meia-noite!
– Credo! Eu é que não morava numa terra assim...
– Mas porquê, Sia Hortênsia?
– Uma terra onde o dia é de noite... Cruzes!

Das frases históricas
Desconfio que essas frases históricas foram inventadas pelos historiadores, pois como poderiam os grandes homens ter tido, todos eles, aquele mesmo estilo de dramalhão?

Sonho
Um poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.

Tempo
Coisa que acaba de deixar a querida leitora um pouco mais velha ao chegar ao fim desta linha.
Mario Quintana, em " Caderno H", ‎ Alfaguara Editora, 1ª edição (5 Janeiro 2013)

Sobre o livro
"Ao longo de décadasMario de Miranda Quintana, (Alegrete, 30 de Julho de 1906 — Porto Alegre, 5 de Maio de 1994),   poeta, tradutor e jornalista brasileiro, publicou no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, o seu "Caderno H", feito de poesia, humor, sabedoria. Da crónica ao poema, passando pelas frases cheias de espírito, esses cadernos foram os grandes responsáveis pela consagração popular de sua literatura. A cada novo trecho do Caderno, nos deparamos com a união singular, tão característica de Quintana, da inteligência com a intuição reveladora. Assim como no enquadramento jornalístico original, ao serem colocados em forma de livro, os textos deste Caderno H, por sua própria organização fragmentária, fornecem alimento cotidiano à inteligência do leitor comum, apaixonado por literatura. Um clássico brasileiro. Na era do Twitter, este Caderno H ganha uma atualidade surpreendente. Que a poesia e a prosa de Quintana tinham lugar assegurado no cânone da literatura brasileira do século XX era algo fora de discussão. Mas a comunicação ainda mais veloz do século XXI, comunicação em tempo real, encontra, nestes textos, modelo e inspiração. Os aforismos e prosas curtas do Caderno H, na sua diversidade aberta para o infinito (é o infinito no sucinto), são lições de como conjugar intuição e raciocínio, humor e sentimento, crónica e reflexão, circunstância e perenidade. A presente edição propicia ao leitor contemporâneo, o encontro.  E ao leitor veterano, o reencontro com ideias e histórias que, de tão repetidas e citadas, praticamente já fazem parte de repertório de provérbios e frases feitas da cultura literária brasileira mais ampla. Fruto de erudição e sensibilidade, Caderno H foi o livro de Quintana que mais decisivamente o transformou num escritor popular, aquele cujos escritos se inscrevem no subconsciente de uma língua."
Em 1980, Mario Quintana foi galardoado com o Prémio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras e,  em 1981, com o Prémio Jabuti de Personalidade Literária do Ano.

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