terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Os poetas não morrem

Manoel de Andrade
Os poetas não morrem  
por Manoel de Andrade
     "Neste mês de janeiro (2015) comemora-se na Nicarágua os 45 anos da morte do poeta e combatente sandinista Leonel Rugama, e no Peru, os 73 anos do nascimento do poeta e guerrilheiro Javier Heraud. Mortos respectivamente aos 20 e 21 anos, Heraud e Rugama são os exemplos mais precoces, na América Latina, de poetas que caíram em combate, dando a vida por um sonho.
Leonel Rugama nasceu no Vale de Matapalos, em março de 1949, e aos 18 anos entra para a Frente Sandinista de Libertação Nacional, quando a Nicarágua vivia sob o tacão perverso da ditadura de Anastásio Somoza Debayle. Era o ano de 1967, quando os sandinistas declararam guerra aberta a Somoza e sob essa bandeira Leonel Rugama interna-se como combatente nas montanhas do país, onde escreve seus primeiros poemas.
     Ingressa depois na Universidade Nacional, passa a dar aulas de matemática e publicar o jornal El Estudiante. Publica seus primeiros versos no Diário La Prensa e seu poema La Tierra es un satélite de la Luna é um dos mais difundidos na poesia latinoamericana. O cineasta e escritor nicaraguense Ricardo Zambrana fez um curta-metragem com o nome do famoso poema, onde mostra os últimos momentos de resistência de Rugama e seus companheiros, antes de caírem, em 15 de janeiro de 1970, cercados e metralhados por um batalhão de elite da Guarda Nacional de Somoza. O grande poeta e sacerdote da Nicarágua Ernesto Cardenal retrata, poeticamente, a imagem de sua inquebrantável bravura e o transe de sua morte em "Reevaluación de Leonel Rugama". Honrou seu nome e a cidade de Manágua num poema chamado “Oráculo sobre Managua”, assim como gravou, declamando os versos de La Tierra es un salétite da la Luna.
   Javier Heraud
 
     Javier Heraud, nasceu em Lima, em 19 de Janeiro de 1942, e desde a juventude passou a tomar consciência de uma pátria ajoelhada ante os intereses imperialistas,  acumpliciados com as burguesias urbanas e as oligarquias agrárias. O avançado ideário político vivenciado na Universidade de San Marcus, o histórico das lutas coloniais marcados pelo heroísmo libertário e o martírio de Túpac Amaru, as massas indígenas sangradas pela usurpação de suas terras, pela servidão desumana do trabalho no campo, o êxodo rural e a marginalização urbana sobrevivendo na miséria e na desesperança foram os ingredientes que determinaram o seu engajamento pelas causas sociais.
     Heraud escreve seus primeiros versos aos 15 anos e aos 18 publica o primeiro livro: El Rio. Nesta mesma época seu segundo livro El Viaje, divide o primeiro prêmio com o poeta Cesar Calvo ao vencerem o concurso “El Joven Poeta del Peru”.
     Em 1961, é nomeado professor de literatura num importante colégio de Lima e no mesmo ano, a convite do Fórum Mundial da Juventude, viaja à União Soviética, estende seu roteiro por países da Ásia, chega à França onde visita o túmulo do poeta peruano Cesar Vallejo e tem um encontro com o jovem escritor Mario Vargas Llosa.
      Depois de passar pela Espanha, volta ao Peru, e no ano seguinte recebe uma bolsa para estudar cinema em Cuba. Nesta época já se encontravam em Havana os revolucionários peruanos que iriam comandar as quatro frentes guerrilheiras que abririam as grandes trincheiras da guerrilha peruana em 1965, entre eles Luis de la Puente Uceda,  Guillermo Lobatón, Gonzalo Fernández Gasco e Hector Béjar. Após percorrer os caminhos da Revolução Cubana pela Sierra Maestra, o grupo de 40 bolsistas, ao qual estava integrado Javier Heraud, decide preparar-se militarmente para voltar ao Peru como combatentes.
    No início de 1963, o grupo, sob o comando de Hector Béjar, deixa Havana e através de Praga e Paris chega ao Rio de Janeiro. No dia 19 de janeiro, Heraud comemora seus 21 anos na passagem clandestina por São Paulo rumo ao Peru, para unir-se às forças de Hugo Blanco no vale de La Convención, em Cusco. Foi durante essa longa caminhada durante cinco meses por cidades, vilarejos e pela selva peruana que o poeta, inspirado pela fé revolucionária e pelo sonho de redenção social dos indígenas e camponeses, secularmente explorados e humilhados em seu país, transforma em versos suas esperanças e sua entrega incondicional à causa revolucionária:
 
                             Porque minha pátria é formosa
                             como uma espada no ar
                             e tão grande agora e ainda
                             mais bela
                             eu canto e a defendo
                             como minha vida.(...)
 
     Em 14 de maio, a vanguarda tática à qual pertencia Javier Heraud chega a Porto Maldonado e lá são abordados pela polícia. Nesse enfrentamento a tiros, um sargento cai morto e os guerrilheiros se dispersam em varias direções. No dia seguinte, fugindo em direção ao rio Madre de Dios, Javier Heraud e Alaín Elías tentam escapar numa canoa, mas são alcançados por uma lancha militar que chega atirando. Ambos levantam as mãos, acenam a rendição com uma camisa, mas são abatidos pelas armas de grosso calibre dos militares e fazendeiros.
     Depois de sua morte, o Exército de Liberação Nacional do Peru (ELN) em que o poeta militava, passou a chamar-se Guerrilha Javier Heraud e retomou a luta em 1965, comandado por Hector Béjar. Laureado como ensaísta com o Prêmio Literário Casa de Las Américas e atualmente sociólogo, catedrático da Universidad de San Marcus e conferencista internacional, Béjar, referindo-se tempos depois ao poeta, declarou:
 (...)"Creio que Javier é um caso extraordinário em que a poesia e a revolução se entrelaçam com uma força sem precedentes na nossa história. Javier continuou a escrever até mesmo na guerrilha (...)
     Um mês depois da morte, em uma homenagem universitária em Lima, feita à memória do poeta, o grande escritor peruano José Maria Arguedas declarou:
(...) “E agora me permitam dizer algumas palavras sobre o puríssimo poeta Javier Heraud, cuja afeição ganhei honestamente.
     Tendo em conta a personalidade de Javier Heraud, apenas duas possibilidades lhe foram oferecidas no Peru: a glória literária, ou o martírio. Preferiu a mais árdua, a que não oferece as recompensas à que humanamente aspiram quase todos os homens. É raro que num país como o nosso  se apresentem  exemplos como este.
      Até o dia de hoje, os que têm a responsabilidade do governo e do destino do Peru, não permitiram um único campo de ação sequer para aqueles que anseiam a verdadeira justiça, ou seja, o caminho aberto para a igualdade econômica e social  que corresponda à igualdade da natureza humana;  esse caminho é o da rebelião, do assédio e o da morte. Javier o escolheu, mas não nos esqueçamos que ele foi forçado a escolher. Talvez tivesse agido de forma diferente em um país sem tanta crueldade para os despossuídos, sem a crueldade que se requer para manter as crianças escravas, "colonos" escravos e “barriadas” onde o cão sem dono e a criança abandonada comem o lixo, juntos.(...)
      Acho que Javier encontrou a imortalidade verdadeira, aquela que a poesia, por si só, quem sabe não lhe teria dado. Não o esqueçamos.” (...)
     No mês seguinte ao seu assassinato, Pablo Neruda escreveu à família do poeta:
 
Universidade do Chile
Ilha Negra, junho de 1963
    Li com grande emoção as palavras de Alejandro Romualdo sobre  Javier Heraud. Também o valioso exame de Washington Delgado, os protestos de Cesar Calvo, de  Reinaldo Naranjo, de Arturo Corcuera, de Gustavo Valcárcel. Também li o comovente relato de Jorge A. Heraud, pai do poeta  Javier.
       Sinto que uma grande ferida foi aberta no coração do Peru e que a poesia e o sangue do jovem caído seguem resplandecentes, inesquecíveis.
      Morrer aos vinte anos crivado de balas "desnudos e sem armas no meio do rio Madre de Dios, quando estava à deriva sem remos ...”  o jovem poeta morto ali, esmagado ali naquelas solidões  pelas forças das trevas. Nossa América escura, nosso tempo escuro.
       Não tive  a ventura de conhecê-lo. Pelo que vocês contam, pelo que choram, pelo que recordam, sua curta vida foi um deslumbrante relâmpago de energia e de alegria.
       Honra à sua memória luminosa. Guardaremos seu nome bem escrito. Bem gravado no mais alto e no mais profundo para que continue resplandecendo. Todos o verão, todos o amarão no amanhã, na hora da luz.
Pablo Neruda
 
     Vale a pena ampliar essa agenda para lembrarmos aqui de outros poetas que, na América Latina, também tombaram, executados cruelmente pelo arbítrio das ditaduras que mancharam com a mais refinada crueldade as trincheiras das lutas libertárias. Entre eles, vale citar os casos mais torturantes do poeta e guerrilheiro  guatemalteco Otto René Castillo e do poeta chileno Ariel Santibañez.
 
  Otto René Castillo
     Otto René Castillo nasceu em 1936, em Quetzaltenango, e pela sua precocidade revolucionária, aos 18 anos teve que asilar-se em El Salvador. Posteriormente, segue para  a Alemanha como bolsista para estudar Letras em Leipzig. Em 1964, volta à Guatemala, reinicia sua vida política e cultural, publica o livro Tecún Umán e é nomeado diretor do Teatro Municipal da cidade de Guatemala. Sofre novo exílio e é escolhido pelas organizações revolucionárias da Guatemala como representante do país, no Comitê Organizador do Festival Mundial da Juventude a realizar-se na Argélia. Com essa missão, percorre a Alemanha, Áustria, Hungria, Chipre, Argélia e Cuba.
      Em 1966, volta clandestinamente ao país e integra-se na luta armada. No ano seguinte, é preso em combate, barbaramente torturado e mutilado na base militar de Zacapa. Ante seu silêncio, seu rosto era cortado com lâmina de barbear, enquanto um capitão do exército da Guatemala recitava com deboche os versos de seu famoso poema Vamos patria a caminar. Seus torturadores, perplexos frente sua inalterável resistência, passaram a queimar seu corpo num inenarrável e mortal suplício, entre os dias 19 e 23 de março de 1967.  
    Seu nome hoje é uma referência histórica na Guatemala, quer pela beleza de sua poesia, quer pela imagem do seu comprometimento político, aureolado com a coroa do martírio. O poeta e ensaísta salvadorenho Roque Dalton descreveu com as seguintes palavras os últimos momentos de seu camarada:
 Seus próprios verdugos testemunharam sua coerência e sua coragem ante o inimigo, a tortura e a morte: morreu como um inquebrantável lutador revolucionário, sem ceder um milímetro no interrogatório, reafirmando seus princípios embasados no marxismo-leninismo, em seu fervente patriotismo guatemalteco e internacional, em seu convencimento de estar seguindo – por sobre todos os riscos e derrotas temporais – o único caminho verdadeiramente libertário para nossos povos, o caminho da luta armada popular.”
 Ariel Dantón Santibañez Estay 
     Ariel Dantón Santibañez Estay nasceu em 15 de novembro de 1948, em Antofagasta. Na adolescência panfletava seus poemas, bem como distribuía, na cidade,  um jornal que ele mesmo datilografava. Cursou Pedagogia, em língua castelhana, na Universidade do Chile, em Arica, onde dirigia a Revista Tebaida e participava politicamente da vida acadêmica e do ambiente literário que contagiava toda a cultura da cidade, no fim da década de 60.
     A partir de 1970, alguns de seus poemas começam a ter destaque internacional, publicados na Argentina pela revista Cormorán y Delfin,  bem como na revista Nuevo Mundo, em Paris. Dois poemas seus, “Ídolo roto” e “Esos viejos” aparecem na Road Apple Review, editada pela Universidade de Wisconsin, e a revista estudantil Oclae, de Havana, também publica seus versos.
     No início de 1973, está em Cuba passando por treinamento militar, como militante do MIR (Movimiento de Izquerda Revolucionario). Volta ao Chile antes do golpe sanguinário contra Allende e em novembro daquele ano, é detido por três dias e torturado em Antofagasta. Entra na clandestinidade e posteriormente é preso em Santiago. Em 22 de dezembro foi visto entre os prisioneiros da Villa Grimaldi, as sinistras dependências usadas para interrogatório e tortura pelos agentes da ditadura de Pinochet. Não é difícil imaginar o que aconteceu a Ariel Santibañez ante a cultura de terror e assassinatos que se instaurou no Chile. Ariel desapareceu para sempre aos 26 anos e a obstinação com que se levanta atualmente a sua memória de poeta e de mártir se compara ao trabalho de pesquisa com que se constrói, no Peru, a imagem do poeta guerrilheiro Javier Heraud, Em dezembro de 2009, o ex-general Manuel Contreras  recebeu a pena de cinco anos de prisão, em segunda condenação,  pelo sequestro e desaparecimento do poeta Ariel Santibañez, em 13 de novembro de 1974.
    
 Mariano Melgar: Mártir da Independência e o primeiro peruano na literatura indigenista
Conta-se que Arequipa nasceu sobre as ruínas de uma antiga cidade inca fundada em 1540 pelo próprio conquistador do Peru, Francisco Pizarro. Berço de notáveis nomes da política e da literatura peruana, nela nasceu Mario Vargas Llosa, no ano de 1936. Sua celebridade como escritor, coroada com o Nobel de Literatura, dispensa aqui qualquer comentário. Devo, entretanto, dizer que quando por lá passei, na virada da década de sessenta, o nome de Vargas Llosa, apesar de seus quatro livros já publicados, ainda não era tão comentado como o do poeta e mártir Mariano Melgar, um dos filhos mais queridos da cidade. Falo de um poeta que empenhou a vida pela independência do Peru, como intelectual e como comba­tente, e com o qual se inicia o Romantismo e o Indigenismo na literatura peruana. Tal como o nosso Castro Alves, também libertário pelo abolicionismo, morre aos vinte e quatro anos.
Mariano Lorenzo Melgar Valdivieso nasceu em Arequipa, em 10 de agosto de 1790 e por sua precocidade foi um verdadeiro prodígio intelectual. Aos três anos já lia e es­crevia, aos oito falava latim e aos nove anos dominava o inglês e o francês. Profundamente identificado com o povo na sua expressão indígena, encontrou no singelo lirismo das canções quechuas a motivação poética para grande parte de seus ver­sos compostos em forma de yaravís, gênero musical de origem incaica, de composição breve e com um caráter elegíaco, amo­roso e melancólico. É o que o poeta expressa neste seu poema chamado Yaraví”:

¡Ay, amor!, dulce veneno,

ay, tema de mi delirio,

 solicitado martirio

 y de todos males lleno.

¡Ay, amor! lleno de insultos,

 centro de angustias mortales,

 donde los bienes son males

 y los placeres tumultos.

           

¡Ay, amor! ladrón casero

de la quietud más estable

        

            ¡Ay, amor, falso y mudable!

              ¡Ay, que por causa muero!

 

¡Ay, amor! glorioso infierno

 y de infernales injurias,

león de celosas furias,

disfrazado de cordero.

 

¡Ay, amor!, pero ¿qué digo,

que conociendo quién eres,

abandonando placeres.

 soy yo quien a ti te sigo? 1

 

José Carlos Mariátegui, em seus Sete ensaios de inter­pretação da realidade peruana, ao analisar a poesia de Melgar ressalta inicialmente o “extremo centralismo” com que Lima dominou a literatura colonial, tida como um “produto urba­no”, e acrescenta:

[...] Por culpa dessa hegemonia absoluta de Lima, nossa literatura não pode se nutrir da seiva indígena. Lima foi primeiro a capital espanhola. Só foi a capital criolla depois. E sua literatu­ra teve essa marca. O sentimento indígena não careceu totalmen­te de expressão nesse período de nossa história literária. Quem primeiro o expressou com categoria foi Mariano Melgar. [...].2

É esclarecedor colocar aqui o exemplo da poesia de Melgar, para avaliar, em dado momento histórico, os dois la­dos com que a crítica peruana encara a sua própria literatura: uma do ponto de vista colonialista e culturalmente precon­ceituosa e outra do ponto de vista legitimamente peruano, ou seja, indigenista, explicitados por duas figuras tão emblemáti­cas na história da intelectualidade peruana, como Mariátegui e o historiador José de la Riva Agüero (1885-1944), com opi­niões tão diversas sobre a imagem literária de Melgar:

Para Riva Agüero, o poeta dos yaravíes não passa de “um momento curioso da literatura peruana”. Retifiquemos esse jul­gamento, dizendo que é o primeiro peruano dessa literatura.8

Comenta Mariátegui o desdém com que a crítica li­menha tratou a poesia popular e indigenista de Melgar, num arraigado preconceito colonial que, um século depois, atin­giria ainda, com o punhal da indiferença, o coração poético e indígena de Cesar Vallejo, a ponto de azê-lo abandonar o Peru para nunca mais voltar. Vallejo é hoje reconhecido como o maior poeta do Peru e, como poeta universal, divide com Pablo Neruda a grandeza da poesia hispano-americana. Mariano Melgar teve sua imagem poética e como prócer da Independência, reconhecida oficialmente pelo governo perua­no, somente em junho de 1964. Apenas nos dois casos aqui citados essa é uma justa, necessária e tardia penitência, mas perguntamos se a cultura limenha já limpou a alma desse an­tigo pecado, porque continua, até os dias de hoje, ditando suas sentenças culturais no exercício de sua explícita hegemonia in­telectual, em detrimento dos valores literários das províncias.

Mariátegui é o que melhor dá a dimensão do poeta de Arequipa, seja como mártir da independência, seja pela poten­cialidade de sua poesia, caso não houvesse morrido tão cedo. Abordando o lado romântico de Melgar, ressalta o grande des­pojamento do jovem poeta pela causa da Independência, com­parando-o ao cacique cusquenho Mateo Pumacahua, que em 1815 tornou-se um dos líderes da revolta contra os espanhóis, sendo preso e fuzilado pelas tropas coloniais.

Melgar é um romântico. Não apenas em sua arte, mas também em toda sua vida. O romantismo ainda não tinha ofi­cialmente chegado a nossas letras. Em Melgar, portanto, não é, como será mais tarde em outros, um gesto de imitação, é um impulso espontâneo. E esse é o dado de sua sensibilidade artísti­ca. Já se disse que se deve a sua morte heroica uma parte de seu renome literário. Mas essa valorização dissimula mal a desde­nhosa antipatia que a inspira. A morte criou o herói, frustou o artista. Melgar morreu muito jovem. E mesmo que seja sempre um pouco aventureira qualquer hipótese sobre a trajetória pro­vável de um artista prematuramente surpreendido pela morte, não é demais supor que Melgar, maduro, teria produzido uma parte mais purgada da retórica e do maneirismo clássicos e, por conseguinte, mais nativo, mais puro. [...]Os que se queixam da vulgaridade de seu léxico e de suas imagens partem de um preconceito aristocrático e academicista. O artista que escreve um poema de emoção perdurável na lin­guagem do povo vale, em todas as literaturas, mil vezes mais que aquele que, em linguagem acadêmica, escreve uma depurada peça de antologia. Por outro lado, como observa Carlos Octavio Bunge em um estudo sobre a literatura argentina, a poesia po­pular sempre precedeu a poesia artística. Alguns dos yaravíes de Melgar só vivem como fragmentos de poesia popular. Mas, com esse título, adquiriram substância imortal.

Não é diferente a opinião do crítico italiano Giuseppe Bellini, tido como o mais abalizado estudioso europeu da li­teratura hispano-americana. Comentando a poesia gauchesca do poeta da independência uruguaia Bartolomé José Hidalgo (1788-1822), Bellini anota que:

Junto con Hidalgo cabe recordar a Mariano Melgar (1791-1815), cultivador también de la poesía popular en los “yaravíes” y “palomitas”. El poeta peruano, sin duda más cul­to que Hidalgo, traductor e imitador de Horacio y de Virgilio, manifestó, tal vez por su carácter de mestizo, un profundo ape­go al elemento popular quechua y a la naturaleza, antecipan­do un indigenismo que dará resultados consistentes durante el Romanticismo y en el siglo XX.3

Mariano Melgar une-se às tropas do cacique Mateo Pumacahua, que no passado fora aliado dos espanhóis, mas que a partir de 1814 empunhou a bandeira da independência em Cusco. Vencidos na batalha de Umachiri, o poeta é apri­sionado e mantido em cativeito até o amanhecer do dia 12 de março de 1815, quando é executado. Ante o pelotão de fuzila­mento, Melgar escreveu um bilhete aos oficiais espanhóis, com as seguintes palavras:

Cubram seus olhos, já que vocês são os que necessitarão misericórdia porque a América será livre em menos de dez anos!

E assim aconteceu. Em 9 de dezembro de 1824, um exército de 6.879 patriotas de vários países hispano-ameri­canos, sob o comando do general venezuelano Antonio José Sucre, vence o exército espanhol de 10.000 soldados, selando em Ayacucho a independência do Peru e da América do Sul.

     Esta relação estaria incompleta se não nomeássemos também o poeta andaluz Federico Garcia Lorca, que aos 38 anos cai metralhado em Granada, como uma das primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola e do célebre poeta inglês Lord Byron, que morreu em Missolonghi, aos 36 anos, quando lutava pela independência da Grécia.
 
     Os poetas não morrem jamais, seguem vivos no lirismo e na magia dos seus versos, na memória agradecida dos povos e nos registros indeléveis da História.
Manoel de Andrade, in As Palavras no Espelho, Escrituras Editora, São Paulo Brasil,2018, pp 73-86 
 
1 –Disponível em: <http://www.vivir-poesia.com/yaravi/>. Acesso em: 2 abr. 2011. Tradução do autor: “Ai, o amor!, doce veneno,/ ai, tema do meu delírio,/ meu ansiado martírio/ de todos os males pleno. // Ai, amor! cheio de insultos,/ centro de angústia mortal,/ onde o que é bem vira mal/ e os prazeres, tumultos. // Ai, amor! ladrão do lar/ da quietude mais estável/ Ai, amor, falso e mutável!/ Ai, que morro por te amar! // Ah, o amor! glorioso inferno/ e das infernais injúrias,/ leão de ciumentas fúrias/ disfarçado de cordeiro.// Ah, o amor!, mas o que digo?/ pois é por assim tu seres/ que abandonando os prazeres / sou eu quem a ti te sigo?”
2-  MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade   
3- BELLINI, Giuseppe. Nova historia de la literatura hispano-americana. Madrid: Editorial Castalia, 1997, p. 209.
“Junto com Hidalgo cabe recordar a Mariano Melgar (1791-1815), culti­vador também da poesia popular nos “yaravíes” y “palomitas”. O poeta pe­ruano, sem dúvida mais culto que Hidalgo, tradutor e imitador de Horácio e de Virgílio, manifestou, talvez por seu caráter mestiço, um profundo apego ao elemento popular quechua e à natureza, antecipando um indigenismo que dará resultados consistentes durante o Romantismo e no século XX.”  
 

 

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