sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Rubem Braga e os sete portugueses

Sete portugueses salvam uma tarde de Rubem Braga
por Ferreira Fernandes15.11.2022

“Agora dedica-se também à falta de ócio de nos dar a ler o português mais simples e lindo.” Ferreira Fernandes pega na iniciativa da Tinta-da-China de promover a literatura brasileira em Portugal, para nos brindar com uma crónica de Rubem Braga, “talvez o maior dos cronistas jornalísticos da língua portuguesa”.
Na Mensagem (Quem Somos) gostamos de gostar. Daí, este nosso gostar de falar dos nossos vizinhos – concidadãos lisboetas – que não se limitam a distribuir peixe, mas ensinam a pescar tainhas. Pode ser um casal de expatriados maduros que organizam jardins coletivos no bairro ou a editora Bárbara Bulhosa, da Tinta-da-China, que lhe deu agora para organizar aulas sobre autores brasileiros.
O negócio dela tem sido vender livros. Agora dedica-se também à falta de ócio de nos dar a ler o português mais simples e lindo: Bárbara Bulhosa põe quem sabe de literatura brasileira a falar de seis encantadores da palavra. Aqui, na Mensagem, Álvaro Filho faz notícia dessa obra de beneficência pública – o Projeto Tinteiro, escola e oficina – que em sessões semanais se dedica a Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, João Guimarães Rosa e Rubem Braga.
Este último, Rubem Braga (1913-1990), merece uma nota especial: praticou quase exclusivamente o género de crónica jornalística. Começou aos 15 anos, terminou 62 anos depois, fazendo crónicas, por vezes ao ritmo diário, em vários títulos de jornais brasileiros. Quantas? Diz a lenda que foram 15 mil, das quais mil recolhidas em antologias. Mas o mais notável nele é a quantidade de crónicas suas que, cada uma, é uma bênção literária. Rubem Braga é talvez o maior dos cronistas jornalísticos da língua portuguesa (talvez, porque há também o Nelson Rodrigues).
Um reputado crítico literário, Antônio Candido (Prémio Camões, 1998), escreveu muito sobre as crónicas jornalísticas: narrativas curtas, de linguagem assumida do dia-a-dia, sem a perspetiva de quem escreve do alto da montanha… E isso, em vez de defeito, pode ser uma vantagem: “A vida ao rés-do-chão” é o nome de célebre ensaio de Candido sobre as crónicas jornalísticas brasileira.
“Graças a Deus”, escreveu o crítico, explicando: ao ser escrita no rés-do-chão “ela fica perto de nós.” Na tradição da crónica jornalística brasileira há atenção generosa com a gente comum – o cronista vê o efémero desdenhado pelo analista e cultua as palavras simples e as fórmulas imaginativas de quem quer encantar, em vez de lecionar.
Há uma ironia do tamanho de um arranha-céus no facto do maior dos cronistas brasileiros, em vez de rés-do-chão, ter morado, de 1963 ao fim da vida, num jardim suspenso, no último andar de um edifício em Ipanema, Rio de Janeiro. Lá no cimo foi a famosa “cobertura do Braga”, com coqueiros e cajueiros, ele recebia Vinícius e Chico Buarque, à altura do vizinho morro da favela do Cantagalo.
Rubem Braga com amigos e cronistas na varanda da cobertura.
Entre eles, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino e Carlinhos Oliveira
 (Divulgação da Exposição no Museu da Língua Portuguesa)

Evidentemente, se de casa ele via os favelados era à distância e se escrevia sobre uma viúva na praia (e há uma crónica inesquecível sobre ela) era um pouco inventado. Manuel Bandeira, outro dos seis escritores brasileiros apresentados pelo Projeto Tinteiro, dizia de Rubem Braga que ele era sempre bom, mas “quando não tem assunto então é ótimo”.
Não ter assunto quer dizer bastarem-lhe os homens. Ter a generosidade de os olhar, e o gosto de falar deles – é simples. No projeto de uma editora portuguesa que pretende não deixar esquecer grandes escritores brasileiros, não conheço mais adequada crónica do que a escolho para a Mensagem e a seguir descrevo.
Na quarta-feira, 28 de março de 1956, no Diário de Notícias, jornal do Rio de Janeiro, aparecia a habitual crónica quotidiana, assinada por Rubem Braga. No dia anterior ele tinha-se cruzado com dois taxistas, três porteiros, um zelador do prédio ao lado e um qualquer vizinho, todos os sete portugueses, todos modestos, mas com um ingénuo fascínio: pelo navio Vera Cruz, em particular, e pelos barcos, em geral. Esse encontro múltiplo e breve “me salvou a tarde de ontem”, dizia o cronista, na crónica do dia seguinte.
A crónica inicial tinha por título “Navio”, talvez por ser publicada numa estreita coluna de jornal [ver foto]. Dois anos depois, a crónica volta a ser publicada na revista Manchete, a 7 de junho de 1958, um autoplágio compensado por um título maior “O Português e o Navio”, permitido pela página inteira que a revista dedicou à crónica. Finalmente, a editora Record, Rio de Janeiro, 1960, reuniu a antologia Ai de ti, Copacabana – que já teve mais de vinte edições – e deu à citada crónica o título “Os Portugueses e o Navio”.
Embora com o título da antologia, a crónica de Rubem Braga, tal como apareceu na edição inicial, no jornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1956, fica aqui publicada na Mensagem:

Os Portugueses e o Navio
Rubem Braga Direitos de Autor
por Rubem Braga
"Antônio Maria (1) contou que uma vez ia num táxi guiado por um chofer português, velho, bigodudo, calado, de cara triste. Quando o carro chegou à praia, o chofer viu um barco e exclamou, apontando, com o braço esticado, os olhos brilhantes, num tom de descoberta, desafio e alegria:
– Olha o navio pequenino!
Essa fascinação dos portugueses pelos navios me salvou a tarde de ontem. Eu tinha de ir à Alfândega e, portanto, passar pela Praça Mauá. O português do volante vinha praguejando contra o calor, contra os outros carros, contra tudo. Antes dele, eu vi o Vera Cruz (2) encostado no cais, e disse: “Olhe o Vera Cruz, que navio bonito!”.
Ele recebeu isso como um elogio pessoal e começou a falar do navio com entusiasmo, até conhecia um maquinista de bordo e visitara todo o gigante – tem oito andares, mas tem elevador.
Pelas cinco e pouco, ao voltar para casa, me tocou outro volante português. Na altura do Flamengo, divisei o navio, que marchava para a saída da barra, e resolvi elogiar novamente o barco, para ver o efeito. Foi maravilhoso. “É realmente, é realmente, é um belo navio!”
Fiz notar que o Brasil não tinha nenhum navio de passageiros tão grande e tão bonito, e isso animou ainda mais o homem. Acabou confessando que em sua opinião não era somente o Brasil que não possuía um navio assim; país nenhum do mundo. Os ingleses, os americanos, os franceses, os italianos têm bons navios, sim, bons navios, mas nenhum tão bonito. “O senhor não acha”?
Desconversei: “Esse aí eu vou ver passar de minha janela em Ipanema”. Discordou: o navio tinha grande velocidade e cortava muito caminho por onde ia. Discutimos um pouco, eu jogando no táxi dele, e ele apostando no navio.
Em Copacabana voltamos a ver o barco, na altura da Ilha Cotunduba. Fiz lhe ver que eu estava ganhando a aposta: “Já passamos na frente”. Ele balançou a cabeça: “Agora é que ele vai desenvolver a velocidade”.
Na Vieira Souto ele teve de se render à evidência. O navio mal apontava no Arpoador e nós já estávamos perto do Posto 8. Mas ele arrumou uma explicação: “O comandante mandou tocar devagar para os passageiros verem a paisagem”.
Fiz uma reflexão: “Quer dizer que é assim: o navio a ver a paisagem e a paisagem a ver o navio.” E graças a isso, quando lhe paguei a corrida, ele me perguntou se eu era poeta: “Isto que o senhor disse eu vou repetir à patroa”.
O casal de portugueses da portaria conversava com o porteiro do lado e o zelador do edifício da frente, todos portugueses. Dei a notícia: “O Vera Cruz está passando lá no mar”.
“O Vera Cruz! O Vera Cruz!”. E saíram todos para a praia; no caminho arrebanharam mais um português que passava: “O Vera Cruz, homem, venha depressa, venha!”
E lá se foram a correr, os pedros álvares cabrais."

(1)-Antônio Maria (1921-1964) foi um cronista do Rio de Janeiro e autor de sucessos musicais
(2)- Vera Cruz, transatlântico português, assíduo na rota para o Brasil, nas décadas de 1950 e 60

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