sábado, 27 de janeiro de 2024

Páginas de um Diário Moçambicano


Do final do  capítulo "Notas de Viagem"(pag.410), de Acta Est Fabula IV,  de Eugénio Lisboa,  retirámos  as seguintes afirmações  , em jeito de introdução ao texto diarístico que se lhe segue:
Mas 1989 foi, para mim, sobretudo, o ano de Moçambique. Ao fim de treze anos de ausência, recebi um convite conjunto, da embaixada portuguesa e da Universidade, para proferir uma série de conferências (lições). Deixo ao vosso cuidado e à vossa imaginação conceberem a emoção com que aceitei o convite. Uma emoção de muitas componentes: o gosto de regressar, a curiosidade e o receio de ir encontrar uma cidade que já não coincidisse com aquela que estava dentro de mim
No dia 23 de Maio, de madrugada, partimos de Lisboa, a caminho da “minha” Lourenço Marques.
Lourenço Marques (vista aérea)

Páginas de um Diário Moçambicano
por Eugénio Lisboa

One may return to the place of his birth.
He cannot go back to his youth.
            John Burroughs
 
 
The Past is such a curious Creature
To look her in the Face
            Emily Dickinson 
 
 
23.5.89 – No ar, entre Luanda e Maputo. Demorámos cerca de hora e meia no aeroporto de luanda. À chegada, mal pisámos o asfalto, uma baforada de ar quente – a um mês do inverno oficial. O calor, a desaceleração dos trabalhadores… Estamos em África, não há dúvida. Os autocarros maltratados. O bar do restaurante mais ou menos limpo (excepto as janelas, cujo pó não é limpo desde a independência), e um horrível cheiro a urina, por todo o lado. Peço dois cafés: os dois empregados, corteses, simpáticos, dirigem-se à máquina e discutem, com lentidão e doçura, o funcionamento dela. Por fim trazem-me os dois cafés. Peço água, que servem logo, atenciosamente. À nossa volta, gente do Zaire, com camisas garridas e, nas costas, o retrato do presidente do Zaire, Mobutu Sese Seko. Penso: quando este cair, caem também as camisas. Investimento arriscado.
Daqui por 3 horas, estamos no Maputo. Vou a ler o Wodehouse: Leave it to Psmith.
 
24.5.89 – A chegada foi um misto de emoções confusas. Aguardava-nos o meu colega José Soares Martins, que me levou a uma sala de VIPs. No caminho, encontrei o Carvalhinho (Jorge Carvalho) da Minerva Central, com os cabelos todos brancos. Depois apareceram os repórteres da rádio e até um africano, de idade indefinida, que me disse lembrar-se de mim, de há vinte e tal anos, no Hotel Girassol. Viagem de carro até à embaixada, reconhecendo, aos poucos, os sítios. A baía. As palmeiras. O miradouro. Sensação de irreal. Regressa-se mas não se regressa. Tudo é e não é o mesmo. Os sítios ficaram mas nós não.
À noite, em casa do José Soares Martins, a baía, em frente, com a lua espelhando-se nela. E eu, vendo aquilo: mas quem é este “eu” que está aqui, usurpando o lugar de outro que, em tempos remotos, esteve aqui mesmo, vendo isto? Veio, depois do jantar, um velho amigo da Beira, o Álvaro Simões, casado agora com a Maria Helena, viúva do Joaquim Elias. Dos velhos tempos heróicos da Beira e de um grupo que ajudou a formar-se, ali, o primeiro cine-clube de Moçambique: o Noronha Marques, o Nunes Cordeiro, o Nunes de Carvalho, o Simões, o Elias… O Relias morreu, há muitos anos, num estúpido acidente de automóvel; o Nunes de Carvalho já morreu também; o Nunes Cordeiro está por pouco, com um cancro; e o Noronha Marques teve um acidente cardíaco e desintegra-se a olhos vistos. E assim morre e se volatiliza um tempo que a nós pareceu de magia e tocado de eternidade.
Ouve-se, felizmente, o ruído da cidade que acorda. Há mais movimento, mais tráfego do que eu supusera. A cidade não está morta. Mas ainda não vi, praticamente, nada.
 
25.5.89 – Ontem, primeiras impressões sobre a cidade: poucas e confinadas à área da Polana. A degradação é evidente, dolorosa, embora, nesta área, não dramática. Visita da Fernanda Durão e marido (André) e da Paula Santa-Rita. Conversa, à noite, com o Lopo Vasconcelos. A revolução começa a ser arrumada numa gaveta. O marxismo também. A corrupção grassa. A maior ostentação de riqueza, ao lado das maiores dificuldades de sobrevivência. Transportes públicos, quase não há. Por todo o lado, os particulares improvisam camionetas, que atafulham de gente: cem meticais por viagem. São chamados os “chapa cem”. Salários de 40 000 meticais, para um quilo de tomates a 1500 e um quilo de camarão a 3000. Roupas caríssimas. Professores universitários ganham o equivalente a 200 dólares mensais, ao lado dos cooperantes italianos a usufruírem 16000 e mais benefícios marginais. Toda a gente arranja, como pode, algumas divisas estrangeiras (dólares e Rands). Os funcionários que saem, em viagem de serviço, guardam os 3 dólares diários, de ajudas de custo, para depois poderem comprar, na loja franca, aquilo que não encontram no mercado corrente.
  No entanto, julgava vir encontrar uma cidade com menos tráfego automóvel. Já foi assim, mas não é neste momento. Daqui, do 10º andar do edifício da embaixada, poderia dizer, sem muito exagero, que o tráfego, lá em baixo, não me deixa sossegado. A vinda do FMI operou milagres: trouxe dinheiro e corrupção. O idealismo revolucionário faleceu. Ninguém está disposto a sacrificar-se.
Contrapartida: muito maior abertura de opinião. As pessoas falam sem receio. Os estudantes fizeram uma greve ordeira mas firme e ganharam. Não houve, em momento nenhum do processo, qualquer tentativa de intimidação. Os jornais noticiam, sem medo, o tumulto que vai pela China. Vim convidado a falar na Universidade e ninguém me fez qualquer recomendação. Direi literalmente o que me apetecer. Há 13 anos, isto era impensável. Verdade que, com mordaça, também não aceitava o convite… 
Há poucos minutos, visita inesperada do nosso antigo empregado, o Arão. Comovi-me, ao vê-lo. Perguntou logo pelas meninas, dizendo-se cheio de saudades. É um traço comovente destas gentes: a afeição e o respeito pela integridade das crianças, a quem nunca batem. No decorrer da conversa, volta sempre às meninas. Passou grandes dificuldades, viveu um ano no Xai-xai. Quando a mãe lhe morreu, voltou ao Maputo. É empregado em casa de um secretário de embaixada francês, que o trata bem. Paga-lhe metade do vencimento em dólares e mandou vir, para ele, chapas de zinco, da Suazilândia. Com elas, o Arão irá construir uma casa nos subúrbios, para ficar a viver mais próximo da “terra”: “machamba”, capoeira, a fuga à selva citadina. O Arão…Diz que anda há um mês a coligir informações sobre a minha chegada, para não nos perder. Hoje, feriado português, com a embaixada fechada e tudo, apareceu-me aí. O Arão… O nosso último empregado doméstico, antes da partida, em 1976!
 
27.5.89 – Continua a visita às origens. Ontem saímos com a Paula Santa-Rita, a pé. Fomos almoçar ao Cardoso, no último andar. A vista deslumbrante da baía, que já era minha conhecida. Restaurante em bom estado, comida cara, para “cooperantes”, diplomatas e gestores de grandes empresas estrangeiras. Tudo pago em dólares: os locais não têm acesso. Depois do almoço, saímos a pé, descendo a antiga Miguel Bombarda. Passamos o cabo Submarino, com o Liceu ao lado. Dizem-nos que, nas salas, não há carteiras nem secretárias: foi tudo levado, como lenha, para casa. Pela Miguel Bombarda fora, as casas apresentam-se sujas e degradadas. Crianças negras aos molhos, deitadas pelo chão, algumas estendidas nos passeios, a fazerem trabalhos escolares. De vez em quando, um rato morto. Não vejo gatos (terão sido comidos?) Atravessamos o Jardim ex-Vasco da Gama e saímos pelo portão que fica em frente do cinema Gil Vicente. No larguinho à frente do portão, obras de construção de uma estátua ao Samora Machel. A Avenida D. Luís, agora Av. Samora Machel, pareceu-me terrivelmente degradada. Perdeu, para mim, todo o encanto. Faço um esforço de imaginação, quase até doer, para me lembrar daquilo, no tempo de antigamente. Vejo o antigo Restaurante Vitória, agora fechado, isto é, não ao ar livre, como antes, e considerado de luxo. Entramos: luxo piroso. Pratos a 9000 e 12000 meticais (há ordenados de 20 e 30 mil meticais). Não resisto e espreito a Empresa Moderna, em que pontificava, muito vivaço, palrador e ignorante, o Lãzinha: livros técnicos (russos) e livros de propaganda política. Um fantasma. Em frente, a Av. da República: é ela e já não é ela. Não se regressa nunca. Não se regressa nunca. Compro jornais, entramos no Café Continental, antigo ponto de reunião da tertúlia da esquerda: não se regressa. Saio e vou à Académica (da D. Ivette) e à Minerva  (da Teresa Arroz e da lindíssima D. Leopoldina): simplesmente espectral. É patético como se pode propor uma escolha de livros daquelas. É uma total inexistência bibliográfica: o deserto. Na Minerva, uma rapariga africana esbelta e desembaraçada toca-me no braço, aberta num sorriso e diz-me: “É o Sr. Engenheiro Lisboa?” Digo-lhe que sim e identifica-se: é a Serafina, filha do Bomba. Que bom! Pergunto-lhe pelo pai. Havemos de nos encontrar.
Voltamos à embaixada, a pé. As ruas completamente esburacadas. As casas vão-se desintegrando e escurecendo. A cidade de cimento foi invadida por uma população que a não entende nem respeita. À chegada a casa, encontramos o Armando Monteiro, que vem tomar uma bebida e nos leva a jantar à Costa do Sol. A proprietária, uma grega já idosa, ali se encontra desde há milénios. Comemos camarões, à la recherche du temps perdu. Tentamos: mas há alguma coisa que não se recupera. É o mesmo sítio, mas nós não somos os mesmos e as pessoas em volta de nós também não. O rio de Heráclito foi-se, entretanto, movendo."
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula , Memórias -IV- Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres (1976-1995, Editora Opera Omnia,Outubro de 2014, pp 410-414

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