terça-feira, 15 de agosto de 2023

Uma interpretação ideológica de um soneto de Camões

 

Uma interpretação ideológica de um soneto de Camões
por Eugénio Lisboa
“Todos conhecem aquele belíssimo soneto de Camões, que começa assim: “Alma minha gentil que te partiste”, seguindo-se-lhe treze versos, cada um mais belo do que o anterior.
Tem havido o mais variado leque de interpretações deste poema, que vale uma literatura, incluindo a inevitável “interpretação” biografista, que vê, na “alma minha” uma alusão à amante chinesa, morta afogada , no célebre naufrágio na foz do rio Mekong. Nesse naufrágio, cujas circunstâncias, em pormenor, se desconhecem, Camões teria salvo, a nado, OS LUSÍADAS, mas não conseguiu salvar da morte a sua Dinamene. Até aqui, tudo bem. As teses biografistas têm  o interesse que têm, embora não sejam exactamente interpretações de um texto. Dizer que, sem o conhecimento biográfico deste episódio, o soneto ficaria incompreensível, é um rotundo disparate. O poema deve ser interpretado pelo que o poeta lá pôs e não pelas circunstâncias que estiveram na origem da sua escrita.
Mas, à luz de uma minha experiência recente, relacionada com o modo como alguns poemas meus têm sido “interpretados” por ideólogos superaquecidos, estranho que a mesma receita ideológica ainda não tenha sido aplicada ao imortal soneto de Camões. Uma coisa deste gosto: Camões era europeu, branco; Dinamene era chinesa, amarela. Amor, amor, raça aparte. Entre salvar uma inferior chinesa e OS LUSÍADAS, o bardo não hesitou, exibindo um conhecido preconceito racista: salve-se o manuscrito, pereça a chinesa. A partir daqui, o crítico ideológico esquecia os achados poéticos, as lindas metáforas, a linguagem poética de uma inventiva sem igual, e mergulhava, a fundo, nos malefícios das “descobertas”, do racismo, do colonialismo, da exploração do homem pelo homem, do capitalismo selvagem, dando Camões como um peão de forças malévolas e um precursor mal avisado do racismo do século XXI. Por que não? As redes sociais andam cheias deste tipo de sondagens. Vou terminar, contando uma história verdadeira, de que tomei conhecimento, no meu tempo de estudante de engenharia. Vivia na Av. Guerra Junqueiro, muito próxima do Instituto Superior Técnico. Frequentava então uma Pastelaria Mexicana, que ainda existe, a qual era também frequentada por um ideólogo da esquerda dura, obcecado com a ideologia e com Marx.  Conta-se que, na sua primeira noite de núpcias, quando finalmente se libertou dos amigos e se fechou no quarto com a noiva, depois de se meter na cama com ela, debruçou-se carinhosamente sobre a amada e perguntou-lhe: “Você já leu O CAPITAL, de Karl Marx?” Consta que o casamento durou poucos dias e até se percebe porquê. Aquela pergunta cabia tanto naquela circunstância, como o racismo cabia no imortal soneto de Camões.”
Eugénio Lisboa, em 14.08.2023

Sem comentários:

Enviar um comentário