sábado, 12 de agosto de 2023

Celebrar Mário Cesariny

Mário Cesariny, Pintura
A barricada
por Mário Cesariny
"Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados , então alguém saltará para o passeio , com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de mós ambos , do mais fundo  de nós, a exaltar-nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados , abandonados para uma bandeira , para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha  criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens  para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, é um rapaz crescendo, ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio e uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade; vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame."
Mário Cesariny,  in Pena capital, Assírio&Alvim, Lisboa,  1982, p 30
“Relógio”, de Mário Cesariny

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Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
Mário Cesariny, in Pena capital, Assírio&Alvim, Lisboa, 1982, pp 37-38
" L'Attente", de Mário Cesariny

Poema

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
Mário Cesariny, in Pena capital, Assírio&Alvim, Lisboa, 1982, p 31
Mário Cesariny

Sobre o autor
Mário Cesariny foi pintor, tradutor e considerado um dos grandes Mestres do Surrealismo Português. Nasceu a 9 de Agosto de 1923 e faleceu a 26 de Novembro de 2006.
No ano em que passam 100 anos sobre o seu nascimento, está programada uma celebração nacional que se estende por vários meses.
"Mário Cesariny muito cedo,  aos 19 anos,  já escrevia, pintava e desenhava. Apresentava-se como  um artista multifacetado. Frequentou o primeiro ano de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, estudou depois na Escola António Arroio, onde conhece alguns dos futuros companheiros do surrealismo português. Entre eles estavam António Domingues, Cruzeiro Seixas, Fernando de Azevedo, Fernando José Francisco, José Leonel Martins, Júlio Pomar, Pedro Oom e Marcelino Vespa. Estes jovens artistas reuniam-se em tertúlia de características dadá no Café Herminius, em Lisboa.
 Em 1974, em  Paris, foi aluno na Academie de La Grande Chaumiére e conhece o fundador e autor do manifesto do surrealismo francês , André Breton. Este encontro foi a revolução da sua vida.
No Surrealismo, Cesariny encontra o espaço de liberdade criativa que procura. Aqui vai-se pelo sonho, pela imaginação, pelo amor, assente na técnica do automatismo psíquico e do acaso, sem imposições estéticas ou morais. Tudo está de acordo com a sua personalidade inquieta, polémica, subversiva. Regressa a Portugal com vontade de transgredir e de desafiar a poderosa máquina da ditadura. Queria ser livre no seu país. O encontro com André Breton  motivou-o à criação do Grupo Surrealista de Lisboa com Alexandre O’Neill, António Domingues, António Pedro, Fernando de Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto França e Marcelino Vespeira, cujo objetivo foi protestar contra o regime político que vigorava em Portugal e contra as poéticas dominantes da época.
Após divergências com o Grupo Surrealista de Lisboa, afastou-se e criou o grupo dissidente Os Surrealistas, constituído por Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Mário Henrique Leiria, Carlos Eurico da Costa, Fernando Alves dos Santos, Fernando José Francisco e Henrique Risques Pereira. O grupo organizou duas exposições colectivas em Lisboa, na Sala de Projecções da Pathé-Baby (1949) e na Livraria A Bibliófila (1950).
Desfeito o grupo surrealista, seguiu o seu percurso de artista. Pinturas, colagens, ‘soprografias’, e cadavres-exquis fazem parte da sua obra plástica: palavras recortadas, conjugações de textos e imagens, e outras formas experimentais provam que, para ele, a pintura e a poesia foram sempre aliadas.O seu percurso individual e colectivo foi pautado por diversas exposições, salientando-se a organização das exposições Surrealismo e Pintura Fantástica (Lisboa, 1984) e Primeira Exposição do Surrealismo ou Não (Galeria S. Mamede - Lisboa 1994).
Publicou diversos títulos que o distinguiram como detentor de uma das obras literárias mais ricas e carregadas de complexidade do nosso tempo. Da sua extensa obra literária destacam-se as seguintes publicações: Corpo Visível (1950); Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952); Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953); Manual de Prestidigitação (1956); Pena Capital (1957); Alguns Mitos Maiores e Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação Pelo Autor (1958); Antologia do Cadáver-Esquisito (1961); Antologia Surreal/Abjecion(ismo) (1963); A Intervenção Surrealista (1966); Titânia e a Cidade Queimada (1977).
Foi Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e foi distinguido com o Grande Prémio EDP (2002), com o Prémio Vida GD) e condecorado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. A sua obra e vida foram registadas nos documentários Autografia de Miguel Gonçalves Mendes (2004) e Ama como a estrada começa, com guião de Perfecto E. Cuadrado (2002).
Pela vida mundana de café e pela homossexualidade que não ocultava, foi vigiado pela polícia, por "suspeita de vagabundagem". Até ao "25 de Abril de 1974" foi obrigado a humilhantes interrogatórios regulares. Após a revolução, a sua obra poética foi reeditada a a sua obra pictórica reapreciada, sendo publicamente reconhecido o  forte contributo  de Mário Cesariny para a cultura portuguesa do século XX."

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