quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Uma hermenêutica incontinente

 
Uma hermenêutica incontinente
por Eugénio Lisboa

Os clássicos mudam muito de opinião
 para agradar os que os interpretam.
                  Millôr Fernandes
 
“Publiquei aqui, há dias, um texto sobre interpretações assanhadamente ideológicas de obras literárias, praticando verdadeiros estupros interpretativos de grandes obras clássicas. Não é, diga-se de passagem, um mal nacional: grassa por todo esse mundo literário e universitário, com particular incidência no Brasil, onde todas as tontices importadas do estrangeiro assumem variantes de infecção aguda. Mas não só a ideologia leva ao crime. Outras modas em vigor inflectem de modo abusivo e desastrado a integridade dos textos. As redes sociais deram a esta incipiente epidemia dimensões assustadoras de pandemia. A ponto de o egrégio Umberto Eco ter declarado  que “o drama da internet foi ter promovido o idiota da aldeia a portador da verdade.” Ou, noutra passagem igualmente contundente, que “as redes sociais deram voz aos imbecis”. E deram: vê-se isso todos os dias e nem os lugares mais privilegiados ficam isentos  de serem visitados por estes parasitas, ignorantes mas atrevidos. As mais delirantes interpretações de textos são promovidas, numa orgia hermenêutica deveras assustadora. Seja dito que, na origem deste despautério, vai muita culpa para o próprio Umberto Eco, que, na sua celebrada OBRA ABERTA, abriu imprudentemente as portas às inúmeras interpretações possíveis de um mesmo texto. Se houvesse assim tantas, o texto tornar-se-ia irrelevante ou mesmo não existente. Se o que um autor quis dizer pode não ser fácil de descodificar, por outro lado, o que o texto parece dizer já pode ser um pouco menos problemático. O próprio Eco se veio a arrepender de ter escancarado demasiado as portas à incontinência hermenêutica e pôs a ela travões, em Os LIMITES DA INTERPRETAÇÃO. Mas o mal estava feito e a diarreia interpretativa era demasiado convidativa, para poder ser universalmente abandonada. Os leitores passam a ser os verdadeiros “donos” do texto e o texto degrada-se até se tornar pretexto.
O eminente Tzevetan Todorov troçou de tudo isto, nestes termos: “Um texto não passa de um piquenique, em que o autor traz as palavras e os leitores o sentido.” Num vigoroso ensaio – AGAINST INTERPRETATION . a temível Susan Sontag fulminou esta tara interpretativa, afirmando: “A interpretação é a vingança dos intelectuais contra a arte.” E ainda: “Em vez de uma hermenêutica, do que precisamos é de uma erótica da arte.”
O curioso é que muitos grandes e acutilantes leitores, como Nietzsche, fulminaram há muito este abuso interpretativo: “O texto desapareceu debaixo da interpretação”, disse o filósofo alemão, no seu PARA ALÉM DO BEM E DO MAL.  E o eclético e celebrado Harold Bloom, tentou mostrar que esta prática era milenar, ao dizer isto: “Penso que o Novo Testamento grego é a mais forte e mais bem sucedida desleitura de um grande texto anterior, em toda a história da influência.”
Nestes despautérios de interpretação, teve grande visibilidade a sexualidade pós-freudiana. Aí, valeu tudo. Numa ida ao Rio de Janeiro, a propósito de um congresso dedicado a José Régio, apareceu-me uma deslumbrada, com a descoberta de que o admirável romance O PRÍNCIPE COM ORELHAS DE BURRO, de José Régio, mostrava que o escritor era homossexual. Estava então muito na moda, descodificar homossexualidade escondida por todo o lado. Ora nem Régio era homossexual, nem aquele romance tinha nada a ver com sexo ou seus arredores. Mas a tese deve ter tido filhos, porque estas descobertas costumam ser muito fecundas.
Outro exemplo extraordinário foi este, acontecido com a encenação da peça de Montherlant, LE MAÎTRE DE SANTIAGO. A obra é limpamente clássica e tem como protagonista Don Alvaro, Mestre daquela Ordem, cristão sem mácula, totalmente incorruptível.  Alguns nobres espanhóis querem usar o seu bom nome, para cobrir negócios sujos, na América recém descoberta. Para aliciá-lo, prometem-lhe arranjar um “bom casamento” para a filha Mariana.  Mas esta é exactamente como o Pai. Num diálogo, de um sublime austero, Don Alvaro sonda a filha. Neste momento, Montherlant dá uma pequeníssima indicação de cena: a meio do diálogo, o velho Mestre apercebe-se de um cabelo no vestido da filha e sacode-o. O autor da peça terá querido significar que a mais austera figura, e mesmo num momento de grande tensão, pode afligir-se com uma pequeníssima coisa que desfigura o vestuário da filha. Esta ínfima indicação de cena desencadeou na crítica teatral de Paris as mais estapafúrdias “interpretações”: uma delas ia no sentido de dizer que aquele gesto significava que Montherlant tinha querido ter relações sexuais com a mãe, outro, ainda mais ousado, afirmava estar ali a prova de que o dramaturgo sofria de um complexo de castração! Eis a interpretação no seu deslumbrante pior.
No teatro, onde os encenadores “sabem mais” do que os dramaturgos, já vi desastres semelhantes com grandes encenadores. Cito um caso. Quando vivia em Londres, o grande encenador Peter Hall, resolveu encenar a grande tragédia de Ibsen, O PATO SELVAGEM. Peter Hall acabara de “descobrir” haver na peça um subtexto cómico e resolveu transformar aquela pungente tragédia numa quase comédia. Acontece que o tal subtexto não era nada cómico, mas, sim, dilacerantemente patético.  Por outro lado, Peter Hall, embarcado na sua desleitura, esqueceu-se de que na peça de Ibsen uma criancinha se suicida, no final, o que não costuma acontecer nas comédias. Dislates destes são frequentes, com as peças de Shakespeare, o que levou o impagável e genial Mel Brooks a parodiar, num seu filme, estes atrevimentos de encenadores, fazendo do sinistro Ricardo III, um invertido efeminado, grotescamente amaneirado. Haverá quem descubra na peça de Shakespeare um subtexto qualquer, que justifique a metamorfose. Foram estas e outras que levaram Orwell a afirmar: “Se realmente existe essa coisa de se dar uma volta no túmulo, Shakespeare deve fazer uma data de exercício.”
Eugénio Lisboa, em 16.08.2023

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