quinta-feira, 24 de agosto de 2023

A poesia é como a pintura

A poesia é como a pintura
  Horácio, A Arte Poética


"Há no mundo uma conjura geral e permanente contra duas coisas, a poesia e a liberdade; as pessoas de gosto encarregam-se de exterminar uma, tal como os agentes da ordem de perseguir a outra .”
Gustave FlaubertCorrespondência

“Interrogamo-nos acerca da poesia? Desejaríamos saber o que pretende ela, aquilo que pretende de nós. É que muitas vezes não nos diz nada. Palavras, fragmentos de frases, balanceadas, hesitantes, versáteis, palavras que não conseguimos reter.
Refrões de cançonetas, talvez? Mas então onde está a música?
Talvez músicas silenciosas, tocadas no fundo da água, a cem braças de profundidade.
Os outros poemas, todos os poemas célebres, organizados, compostos, exércitos em armas que marcham a passo certo. Não estamos lá quando passam. Viramos a cara, vamos procurar noutro lado […]
Agora, depois de Iniji, já não interrogamos. Há uma certeza. Viu-se qualquer coisa, seguiu-se essa coisa, como se a gente estivesse a fazê-la, como se tivesse encontrado ouvidos para escutar a música do fundo da água.
Não é como os outros, este poema, não distrai, não se esquiva. Na verdade não está escrito, encontra-se ali na página por acidente, e deve estar também algures, gravado numa árvore, por exemplo, ou inscrito na terra seca, ou tatuado então na pele humana. Claro que não está apenas escrito. Passou pelo tremor da escrita, foi assim que apareceu primeiro. Mas não existe somente nesse tremor, não existe somente para os olhos. Existe algures, em volta, no ar, nas nuvens, na folhagem das árvores vistas à distância, no mar, na erva calcada de uma pista. E nas ruas de uma grande cidade, entre as paredes dos prédios acompanhando o movimento dos automóveis, os cláxons, as luzes, a multidão.
Deve estar lá há muito tempo pois, quan“do o lemos, reconhecemo-lo imediatamente.
Não o procurávamos, nem procurávamos sequer o nome de um autor. Íamos ao seu encontro sem saber, e ele vinha ao nosso encontro seguindo o seu curso de cometa que se aproxima, roça e desaparece. […]
O poema veio de longe, assim, tranquilo, com os seus gestos, a sua vida, para nos reencontrar.
Insensato, móvel, penetra em nós e escuta-nos. Ou éramos nós que não tínhamos corpo, e temos agora o corpo e Iniji. Não sabíamos falar. […] Longe deste poema, a vida era surda, sussurrada, pois todas as palavras da linguagem normativa (a linguagem das teses e das antíteses, a linguagem das análises, dos juízos e proclamações solenes) eram unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundissem com os torrões e calhaus.
[…] Como é possível? Onde nos encontrávamos então, antes, antes de Iniji? […]
Iniji não existe. Cada vez que dela nos apercebemos, a língua estala e a palavra morre. Interrompida antes de entrar no mundo. Reflexos, talvez, porquanto as suas palavras não são palavras. Se retemos um nome, felizes por saber aquilo que surgirá, ele rebenta. Não há nomes, só bolhas. Balbuceios de bebé, Iniji, Ananiá, Inji, Djã dã dã, Irritilili. […]”
J.M.G. Le Clézio, De Um poema (Iniji) que não é como os outros
Herberto Helder, in As magias : poemas mudados para português , Assírio &Alvim

"A verdadeira poesia mantém a mesma distância da insensibilidade e do sentimentalismo."
Hugo Von Hofmannsthal O Livro dos Amigos

"O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há verdadeiro poema que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para além daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia."
José Tolentino MendonçaA noite abre meus olhos

"Um dos méritos da poesia, que muita gente não percebe, é que ela diz mais que a prosa e em menos palavras que a prosa."
Voltaire , Miscelânia de Filosofia

"Nunca ninguém foi um grande poeta sem ter sido ao mesmo tempo um grande filósofo."
Samuel Coleridge, Biographia Literária

Arte Poética
"A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça.
Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.
Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema fala não de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulos da janela, ressonâncias das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. […]
Se um poeta diz “obscuro”, “amplo”, “barco”, “pedra” é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o “obstinado rigor” do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.
E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida."

Sophia de Mello Breyner Andresen, Arte Poética  

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