sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Reflexões de grandes escritores sobre o livro e a leitura


O  livro que nos deixa felizes
por Franz Kafka
 “Penso que devemos ler apenas os livros que nos ferem, que nos apunhalam. Se o livro não nos acorda com um golpe na cabeça, por que o estamos lendo, então? Porque isso nos deixa felizes, como  afirma? Meu Deus! Seríamos mais felizes se não tivéssemos livro nenhum. E o tipo de livro que nos deixa felizes é aquele que nós mesmos facilmente escreveríamos se precisássemos. Mas nós precisamos dos livros que nos afectam como um desastre, que nos atormentam profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser jogado  a uma floresta isolada de todos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós.”
Franz Kafka, em carta a Oskar Pollak, amigo da época da escola, datada de 27 de Janeiro de 1904

O Pressuposto Indispensável para se Ser um Grande-Escritor
por Robert Musil
"O pressuposto indispensável para se ser um grande-escritor é, então, o de escrever livros e peças de teatro que sirvam para todos os níveis, do mais alto ao mais baixo. Antes de produzir algum bom efeito, é preciso primeiro produzir efeito: este princípio é a base de toda a existência como grande-escritor. É um princípio miraculoso, eficaz contra todas as tentações da solidão, por excelência o princípio goethiano do sucesso: se nos movermos apenas num mundo que nos é propício, tudo o resto virá por si. Pois quando um escritor começa a ter sucesso dá-se logo uma transformação significativa na sua vida. O seu editor pára de se lamentar e de dizer que um comerciante que se torna editor se parece com um idealista trágico, porque faria muito mais dinheiro negociando com tecidos ou papel virgem. A crítica descobre nele um objecto digno da sua actividade, porque os críticos muitas vezes até nem
são más pessoas, mas, dadas as circunstâncias epocais pouco propícias, ex-poetas que precisam de um apoio do coração para poderem pôr cá fora os seus sentimentos;são poetas do amor ou da guerra, consoante o capital interior que têm de aplicar com proveito, e por isso é perfeitamente compreensível que escolham o livro de um grande-escritor e não o de um comum escritor. Acontece que uma pessoa tem uma capacidade de trabalho limitada, que os seus melhores resultados se aplicam com facilidade às novidades saídas anualmente da pena dos grandes-escritores, que assim se transformam em caixas-económicas da prosperidade intelectual da nação, na medida em que cada um deles arrasta consigo interpretações que não se limitam a ser explicações, são antes aplicações, e para o resto dos livros pouco sobra. Mas a coisa só alcança proporções verdadeiramente grandes pela mão dos ensaístas, dos biógrafos e dos historiadores instantâneos, que se servem dos homens grandes para descarregar as suas necessidades. Com o devido respeito, até os cães preferem para as suas necessidades mais comuns uma esquina movimentada a uma pedra solitária. Por que razão hão-de então os homens que sentem o nobre impulso de legar o nome à posteridade escolher uma pedra manifestamente solitária?
Quando dá por si, o grande-escritor já não é um ser com autonomia, viu-se transformado numa simbiose, no resultado de um grupo de trabalho à escala nacional, no mais dedicado e delicado sentido, beneficiando da mais bela certeza que a vida lhe pode conceder: a de que o seu êxito está intimamente ligado ao de inúmeros outros homens.
Provavelmente é essa a explicação para um dos traços mais comuns do carácter de um grande-escritor: um marcado sentido do bom comportamento. Só recorrem à escrita combativa quando sentem o seu prestígio ameaçado; em todos os outros casos o seu comportamento distingue-se pelo equilíbrio e pela benevolência. São sempre tolerantes para com as ninharias que se dizem em seu louvor. Não se rebaixam facilmente a escrever sobre outros autores; quando o fazem, raramente é para elogiar um homem superior, mas quase sempre para animar um daqueles talentos apagados que se compõem de quarenta e nove por cento de talento e cinquenta e um por cento de ausência dele, e, devido a esta composição, se ajustam a todas as situações em que é precisa alguma força, mas um homem forte poderia ser prejudicial; e a curto ou a longo prazo todos eles terão um lugar influente na vida literária.
O método do velho Cuvier, de julgar o mastodonte pelo osso, é o que adoptamos, com magnífica inconsciência, para decidir sobre os homens e sobre as obras. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que esplêndida facilidade exclamamos, ou se trate de um estadista, ou se trate de um artista: «É uma besta! É um maroto!» Para exclamar: «É um génio!» ou «É um santo!», oferecemos naturalmente mais resistência. Mas ainda assim, quando uma boa digestão e um fígado livre nos inclinam à benevolência risonha, também concedemos prontamente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa de louros ou a auréola de luz.
Não há maior refrigério para o espírito do que a leitura dos clássicos antigos: tão logo temos um deles nas mãos, e mesmo que seja por apenas meia hora, sentimo-nos imediatamente refrescados, aliviados, purificados, elevados e fortalecidos; como se nos tivéssemos deleitado na fonte fresca de uma rocha. Tal facto depende das línguas antigas e da sua perfeição ou da grandeza dos espíritos, cujas obras permanecem intactas e vigorosas pelos milénios? Talvez de ambos. Mas sei que, se algum dia o estudo das línguas antigas cessar, como ameaça cessar agora, surgirá então uma nova literatura, feita de escrevinhações bárbaras, triviais e indignas, como ainda não chegou a existir; tanto mais que a língua alemã, que realmente possui algumas das perfeições das línguas antigas, é delapidada e mutilada com zelo e método pelos rabiscadores da época «actual», de modo que, pouco a pouco, ela se empobrece e degenera, transformando-se num jargão miserável."
 
Cada Leitura é Única
por Novalis
"Muitos autores são ao mesmo tempo os seus próprios leitores – à medida que escrevem -, e é por isso que tantos vestígios do leitor aparecem nos seus escritos – tantas observações críticas – tanto que pertence à província do leitor e não à do autor. Travessões – palavras em maiúsculas – passagens grifadas – tudo isso pertence à esfera do leitor. O leitor põe a ênfase como tem vontade – ele de facto faz de um livro o que deseja. Não é todo o leitor um filólogo? Não existe uma única leitura válida somente, no sentido usual. A leitura é uma operação livre. Ninguém me pode prescrever como e o que lerei."
 

Os Juízos Ligeiros da Imprensa
por Eça de Queirós
"Incontestavelmente foi a imprensa, com a sua maneira superficial e leviana de tudo julgar e decidir, que mais concorreu para dar ao nosso tempo o funesto e já irradicável hábito dos juízos ligeiros. Em todos os séculos se improvisaram estouvadamente opiniões: em nenhum, porém, como no nosso, essa improvisação impudente se tornou a operação corrente e natural do entendimento. Com excepção de alguns filósofos mais metódicos, ou de alguns devotos mais escrupulosos, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente do penoso trabalho de reflectir. É com impressões que formamos as nossas conclusões. Para louvar ou condenar em política o facto mais complexo, e onde entrem factores múltiplos que mais necessitem de análise, nós largamente nos contentamos com um boato escutado a uma esquina. Para apreciar em literatura o livro mais profundo, apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo ondeante do charuto."
 
Os Livros representam a essência de um espírito
por Arthur Schopenhauer
"As obras são a quintessência de um espírito: por conseguinte, mesmo se este for o espírito mais sublime, elas sempre serão, sem comparação, mais ricas de conteúdo do que a sua companhia, e a substituirão também na essência – ou melhor, ultrapassá-la-ão em muito e a deixarão para trás: Até mesmo os escritos de uma cabeça medíocre podem ser instrutivos, dignos de leitura e divertidos, justamente porque são sua quintessência, o resultado, o fruto de
todo o seu pensamento e estudo; enquanto a sua companhia não nos consegue satisfazer. Sendo assim, podem-se ler livros de pessoas em cujas companhias não se encontraria nenhum prazer, e é por essa razão que uma cultura intelectual elevada nos induz pouco a pouco a encontrar o nosso prazer quase exclusivamente na leitura dos livros, e não na conversa com as pessoas.
Existem duas histórias: a política e a da literatura e da arte. A primeira é a história da vontade, a segunda, do intelecto. Por isso, a primeira é quase sempre alarmante, ou melhor, assustadora. Nela, o medo, a necessidade, o engano e terríveis assassinatos ocorrem em massa. A outra, ao contrário, é sempre agradável e serena, como o intelecto isolado, mesmo quando descreve erros. O seu ramo principal é a história da filosofia. Na verdade, esta constitui o seu baixo ideal, que se faz ouvir até mesmo na outra história e também conduz a opinião do seu fundamento até ela: mas esta última domina o mundo. Sendo assim, a filosofia, no sentido próprio e inequívoco, também é a mais fote potência material; contudo, age de forma muito lenta."

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