quarta-feira, 24 de março de 2021

Tudo isto aconteceu

Guernica ,1937, Pablo Picasso 

Recordações da Guerra Civil Espanhola
por George Orwell
II
(...) "Tenho poucas provas directas de atrocidades cometidas na Guerra Civil espanhola. Sei que algumas foram da responsabilidade dos republicanos, e muitas mais (que ainda prosseguem) forma cometidas pelos fascistas. Mas o que me impressionou então, e impressiona ainda, é que se dê ou não crédito a atrocidades unicamente em função de simpatias políticas.  Toda a gente acredita nas atrocidades do bando inimigo e recusa acreditar nas atribuídas ao seu, sem se dar ao trabalho de examinar os indícios. Recentemente , uma tabela de atrocidades cometidas entre 1918 e o presente; não houve um único ano em que não se tivessem cometido atrocidades em qualquer lugar do mundo, e dificilmente se encontra um caso em que a esquerda e a direita tivessem dado  crédito simultaneamente  aos mesmos relatos.  Mais estranho  ainda é que a qualquer momento  a situação pode inverter-se  rapidamente  e a atrocidade  que ontem era dada como absolutamente  provada  pode hoje  ser tida como uma mentira ridícula, simplesmente porque  a paisagem política se alterou.
Na guerra actual , encontramo-nos  na curiosa situação de a nossa campanha de propaganda  por meio de difusão  de atrocidades ter sido largamente efectuada  antes do início da guerra e sobretudo pelos esquerdistas , que normalmente  se orgulham da sua incredulidade. Durante o mesmo período, a direita responsável pelas atrocidades de 1914-18, olhava para a Alemanha nazi e recusava-se terminantemente  a ver no país qualquer mal.  Depois, assim que rebentou a guerra, foram os pró-nazis de ontem quem começou a repetir histórias de horror, enquanto os antinazis se puseram de súbito a questionar se a Gestapo existia realmente.  Esta atitude  não se devia apenas ao Pacto Germano-Soviético. Devia-se  em parte ao facto de até 1939 os esquerdistas terem acreditado, erradamente, que a Grã- Bretanha  e a Alemanha  jamais entrariam em guerra, o que lhes permitia serem simultaneamente  antibritânicos e antigermânicos; e em parte à propaganda de guerra oficial, cuja chocante hipocrisia  e pretensão se superioridade moral tendem a levar a classe pensante a identificar-se com o inimigo.  Parte do preço que pagámos pelas sistemáticas mentiras de 1914-18 foi a exagerada reacção  germanófila que se seguiu. Entre 1918 e 1933, nos círculos de esquerda , éramos vaiados se sugeríssemos que a Alemanha tivera alguma responsabilidade pelo deflagrar da guerra.  Em todas as denúncias  do Tratado de Versalhes que ouvi durante esses anos, penso que nem por uma vez ouvi  perguntar, e muito menos discutir a questão: " O que teria acontecido se tivesse sido a Alemanha a ganhar ?"  O mesmo sucede com as atrocidades. A verdade, sente-se, torna-se mentira quando é o nosso inimigo a pronunciá-la.  Recentemente, reparei que as mesmas pessoas que engolem todo e qualquer relato de horror a respeito de japoneses em Nanquim em 1937,  recusam dar crédito a relatos similares  a respeito de Hong Kong em1942. Havia até uma certa tendência a acreditar que as atrocidades de Nanquim se haviam tornado , por assim dizer , retrospectivamente falsas pelo facto de o governo britânico ter chamado agora a tenção para elas. 
Mas infelizmente  a verdade sobre atrocidades é muito pior do que o facto de serem objecto de mentiras e transformadas em propaganda. A verdade é que elas acontecem. O facto que amiúde  se invoca como motivo de cepticismo -o de que os mesmíssimos relatos  de horror  tendem  a reaparecer  em todas as guerras - apenas torna mais provável que esses relatos sejam verdadeiros.  Claramente, trata-se  de fantasias muito comuns, e a guerra fornece o ensejo de as pôr em prática. Além disso, e apesar de já não estar na moda dizê-lo , não há grandes dúvidas  de que aquilo a que podemos chamar ,  grosso modo, os " brancos" cometem muitas e mais graves atrocidades  do que os "vermelhos".  Não existe a menor dúvida , por exemplo, a respeito do comportamento dos japoneses na China. Tal como não há a menor dúvida  a respeito da longa lista  de selvajarias fascistas cometidas na Europa  durante os últimos dez anos . O volume de testemunhos é enorme e uma respeitável proporção deles provém da imprensa e rádio alemãs.  Estas coisas aconteceram realmente e é isso que temos de ter em mente.  Aconteceram, apesar de Lord Halifax ter dito que aconteceram. As violações e morticínios nas cidades chinesas, as torturas nas caves da Gestapo, os professores idosos judeus atirados para fossas, o metralhamento de refugiados nas estradas espanholas - tudo isto aconteceu, e não é menos real pelo facto de o Daily Telegraph  o ter descoberto de repente, com cinco anos de atraso. "
George Orwell,in Ensaios Escolhidos, Relógio D' Água Editores, Abril de 2016,pp.114,115, 116

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