quarta-feira, 17 de março de 2021

Quero este bolo

O miolo das palavras
por Dulce Maria Cardoso
“Quero este bolo, dizia à minha mãe, apontando para a montra de vidro da pastelaria Riviera. Ao estender o dedo no café de Leipzig é ainda a minha mãe que me olha embevecida. Carregamos pela vida fora o amor que recebemos na infância
Estou sentada num café no centro de Leipzig, junto à Igreja de São Tomás. Quero beber um chá e comer uma fatia de bolo, mas não os sei pedir em alemão. Tão-pouco o empregado fala inglês ou o café tem uma ementa para estrangeiros. No meu lado direito, mais ao fundo, duas senhoras bebem chá. Aponto para elas e faço o gesto de levar a chávena à boca. Depois viro-me para o lado esquerdo e descubro uma rapariga de cabelo azul e tatuagens coloridas nos braços a comer uma apetitosa fatia de bolo de chocolate. Quero este bolo, dizia à minha mãe, apontando para a montra de vidro da pastelaria Riviera. Ao estender o dedo no café de Leipzig é ainda a minha mãe que me olha embevecida. Carregamos pela vida fora o amor que recebemos na infância. Como uma armadura indestrutível.
As máscaras na cara dificultam-nos a comunicação, não faço ideia o que o empregado percebeu dos meus gestos. O café é de uma imponência austera, madeiras nobres, candeeiros belos e discretos, uma penumbra de veludo, bolos à fatia dispostos em pratos de pé alto, louça de porcelana, janelas rasgadas para a rua, fatias de stollen em caixas decoradas com motivos outonais. O Steven, o meu tradutor para o alemão, disse-me há umas horas, antes de iniciarmos a conferência em que falámos de O Retorno, Ainda se nota a RDA em Leipzig. Com os microfones já ligados, leu durante mais de dez minutos excertos do romance para um público atento. Perdida em palavras que de alguma maneira eram minhas, mas que eu não reconhecia, distraí-me a pensar se o Steven libertaria na cabeça daquelas pessoas o que existiu na minha antes de ele ter sido aprisionado pelas palavras que usei ao escrever O Retorno. No final da conversa, pediram-me que eu lesse. Em português, claro. Eram agora eles que não associavam significado aos sons que a minha voz ia criando. Isso não lhes diminuiu a atenção como pouco antes acontecera comigo, parecia até que eles a tinham redobrado. Música? A procura dela, sem dúvida. Só consigo ser levada pelos sentidos quando deixo de querer entender. Com uma chávena de chá e uma fatia de bolo à minha frente, concentro-me em tentar desprender-me da razão. Saboreio a melodiosa e enigmática casca das palavras. Detenho-me no homem que gesticula ao telemóvel, no choro resmungado de uma criança, na velocidade do empregado a passar entre as mesas, na rapariga das tatuagens que acaricia distraída o braço, no sorriso das mulheres que bebem chá, julgo ouvir Amerika e Trump numa mesa à volta da qual se reúne um grupo que discute acaloradamente. Não entender nada do que se diz à minha volta faz com que o mundo se me apresente mais simples e que a sua compreensão seja pueril.
Em criança, também não percebia o que os adultos diziam nas conversas sobre trabalho e outros assuntos sérios, mas o resultado era o oposto, o mundo tornava-se extremamente complexo. Quando cresceres logo percebes, prometiam-me. Mentira. Cresci e continuo a não perceber a maior parte das coisas. Por exemplo, o que faço aqui em Leipzig? Quer dizer, sei que vim a trabalho. Mas porque se tornou necessário este vir a trabalho? Quando ainda estava em casa, a fazer a mala para partir, tropecei nas cartas do Séneca e lá estava o aviso, Estar em todo o lado é o mesmo que não estar em parte alguma (…) uma planta nunca se robustece se continuamente a mudarmos de lugar, nada enfim, por muito útil, conserva a utilidade em contínua mudança. Ainda assim, parti. A voz do Séneca abafa as que me rodeiam.
Alguém fala mais alto e por instantes o alemão volta a ser a língua dos maus. Nos primeiros meses da residência literária que fiz na Villa Concordia, em 2010, dava por mim angustiada quando, já no meu quarto, ouvia os bolseiros alemães falarem lá fora. Levei algum tempo a descobrir que os muitos filmes de Hollywood sobre a II Guerra Mundial que eu vira em criança no cinema África tinham deixado uma traumática marca sonora em mim.
Anos mais tarde, fiz outra residência literária, desta vez em Wannsee. Wannsee é um lugar muito belo. Lagos onde as nuvens deslizam sem pressa, palacetes com ancoradouros que parecem braços estendidos sobre a água, árvores pacíficas e centenárias. Nas muitas caminhadas que dei pelos parques, havia uma pergunta que não me saía da cabeça: como é que a beleza não nos salva? Ali, no meio de tanta beleza, há pouco mais de meio século, 15 homens reuniram-se sob o comando de Reinhard Heydrich para debaterem a forma mais rápida de juntarem os judeus europeus e de os enviarem para os campos de extermínio. Quase no fim da reunião, cerca de 90 minutos passados, foi servido conhaque. Um dos participantes, Adolf Eichmann, preso duas décadas mais tarde na Argentina pelos serviços secretos israelitas, contou que Heydrich estava muito satisfeito com a forma como a reunião decorrera. Heydrich esperava alguma resistência à sua proposta e espantara-se com o empenhado e entusiasta assentimento que recebera dos restantes. Noventa minutos. Em apenas 90 minutos as palavras haviam encontrado forma de escavar caminho até ao horror. Não a áspera casca alemã das palavras, mas o seu miolo universal que tantas vezes apodrece. Ainda agora, quando o Trump perdeu as eleições, I’d actually like to go back to the old times of Tudor England, I’d put the heads on pikes. Calem-nos.
De repente, vinda da igreja, a música irrompe no café. Bach. Lembro-me, então, de que os seus restos mortais estão guardados aqui ao lado.
Erbarme dich, mein Gott.
Tende piedade, meu Deus.”
Dulce Maria Cardoso, em Crónica publicada na Revista VISÃO nº 1446 de 19 de Novembro.

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