sexta-feira, 26 de março de 2021

O paradoxo de Cordelia


 " Ao fim de mais de cinquenta anos passados a tentar ler a grande literatura e textos filosóficos com os meus alunos, há uma possibilidade que me assombra. Chamo-lhe o « paradoxo de Cordelia». Depois de lermos e relermos os actos III, IV e V  do Rei Lear, de assistirmos ao seu desempenho num palco, de tentarmos, ainda que imperfeitamente, elucidar e ponderar as experiências que lhes correspondem, acontece que o grito que se solta do texto ou em cena possui a nossa consciência. Enche o nosso ser. A ficção sobrepõe--se àquilo a  que Freud chamava o « princípio de realidade ».  O grito de um Lear torturado, a aflição de Gloucester e de Cordelia toldam o mundo. Não ouvimos o grito que se solta na rua. Ou , se o ouvimos, não o escutamos, e menos ainda correremos em auxílio daquele que o solta. Longe de humanizarem os nossos reflexos como pretenderam Aristóteles ou Mattew Arnold, a grande ficção , as obras-primas da arte, as melodias que nos fascinam, inibem a nossa responsabilidade  [ answerability] - termo fundamental - perante a necessidade humana imediata, perante o sofrimento e a injustiça. Através de um efeito mobilizador , podem desumanizar.  Saber se não será possível impregnarmo-nos da agonia de Lear, interiorizando-a e repercutindo-a, de modo a que as nossas capacidades cívicas e morais  se tornem mais efectivas, eis uma questão para a qual não tenho resposta. Tolstoi respondia-lhe pela negativa.
O que subjaz à crise das humanidades, no plano político, social ou psicológico, é a erosão da religião organizada a que de início me referi. A literacia tradicional e a cultura  e tipo de ensino a que deu origem assentavam , na realidade, em pressupostos e valores teológicos.  À medida que a nossa civilização passa a evoluir à deriva, a literacia torna-se incerta. Como o chamado «pós-modernismo» proclama, « vale tudo» . O que  não significa que deixaremos de produzir e ler livros, alguns dos quais estimáveis, de visitar museus  ou de construir  salas de concertos. Continuaremos, evidentemente, a fazer tudo isso. As audiências talvez cresçam.  É muito o que se pode ler na Internet, ou admirar em reprodução holográfica. Porque não faríamos um download   da Missa Solemnis? O pessimismo tem um veio snob. O que se passa é que semelhantes fontes de alegria, e os esforços que aceder-lhes implica, terão de competir, nos termos de uma escala comum de prestígio e apoios  económicos, com uma diversão de massa da espécie mais brutal e ensurdecedora, e com o desporto ( a teodiceia real  é a do tiro à baliza). A livraria séria ver-se-á em concorrência , em condições absurdas e viciadas, com o grande armazém pornográfico vizinho. Mandarins e artistas cada vez mais esporádicos multiplicarão esforços visando conquistar o estrelato no âmbito dos meios de comunicação de massa. Serão cada vez mais difíceis de alcançar as austeras condições auspiciosas da intimidade e do silêncio, bem como da impopularidade, das quais tantas vezes dependem o pensamento e a criação original. A democracia desconfia da solidão. É possível que os critérios  do supermercado comecem a aplicar até aos casos de Platão, Goethe ou Proust , o galicismo cínico e arrasador: ce n'est que de la littérature."
George Steiner,  in  Os livros que não escrevi, Gradiva Publicações, S. A., pp. 216,217,218

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