quinta-feira, 7 de maio de 2020

Correspondência entre Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner

Jorge de Sena «aqui no meio de nós» - Revista Caliban
Jorge de Sena
Muitos eventos assinalaram o centenário do nascimento de Jorge de Sena que ocorreu em Novembro de 1919, em Lisboa. Este grande nome da nossa Literatura  morreu em Santa Bárbara, na Califórnia, a 4 de Junho de 1978, com apenas 58 anos . Deixou uma importante obra distribuída por diferentes géneros literários. Entre os múltiplos livros, que foram publicados, está uma série de tomos dedicada à sua epistolografia devido à dedicação e árduo labor de sua mulher Mécia Sena.  
Mécia de Sena
Mécia de Sena, a viúva de Jorge de Sena, faleceu a 28 de Março passado, em Los Angeles, Califórnia, com 100 anos de idade.
Nascida em Leça da Palmeira, em 16 de Março de 1920, Mécia de Freitas Lopes Sena era filha do músico e compositor Armando Leça, investigador do “Cancioneiro Musical Popular Português”, e irmã do professor, crítico literário e historiador Óscar Lopes (1917-2013). Formada em Ciências Histórico-Filosóficas, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, detentora do curso do Conservatório de Música do Porto, foi professora, primeiro, e, depois do casamento, em 1949, “colaboradora literária” de Jorge de Sena, e “à altura dele”.A opinião é do próprio escritor, para quem, “sem o [seu] apoio, não teria sido possível realizar talvez metade do que realizou, quer como autor, quer como professor”, recordou Rui Silvino de Freitas Lopes, na sua crónica familiar, citada pela investigadora Maria Otília Pereira Lage, na obra “Mécia de Sena e a escrita epistolar com Jorge de Sena: Para a história da cultura portuguesa contemporânea”.
Mécia foi a companheira e a a presença atenta de Jorge de Sena, seu marido. Vamos transcrever três cartas  da Correspondência de Jorge de Sena com Sophia de Mello Breyner, sendo que nos apraz  transcrever uma carta em que Mécia reforça o que acabámos de afirmar. 

                                                             Lisboa, Abril de 1976
Caríssimo Jorge
Chegaram notícias de que estavas doente. Podes imaginar quanto me preocupo. Estou certa que já melhoraste, mas queria ter notícias concretas. Peço por isso uma palavra da Mécia ou de algum dos teus filhos.
É evidente que o teu trabalho contínuo e espantoso acabaria por te cansar.  Não seria possível que aí te dessem uma reforma para poderes  voltar a este país onde fazes tanta falta! Falta aos teus amigos e falta a tudo. Se estivesses aqui isto não correria tão mal.
O facto de não estares  em Portugal começa a tornar-se intolerável. Alguns anos de censura podiam suportar-se com desportivismo. Agora não. Agora está a tronar-se uma vida de ausência. Uma ausência  que é o nosso próprio desencontro com os nossos amigos e o desencontro deste país consigo próprio. 
Não será possível que aí te dêem qualquer reforma, não poderá invocar a doença, ou pedir ao menos um ano de férias?
O problema , a tragédia de toda esta revolução é a sua INCOMPETÊNCIA CULTURAL.  Desde  a descolonização onde tudo se fez com um despacho simplicíssimo, primário «ad hoc», até à reforma agrária falseada e demagógica! Passando pela constituição onde se lutou pela vitória da estupidez  com o maior sucesso salvo alguns pontos  que a muito  custo foi possível salvar.  Houve até um grupo parlamentar, numa reunião de discussão, respondesse à minha crítica  à má redacção  de um articulado, dizendo-me  que  « o povo não precisa de gramática».Vi  dia a dia como a esquerda se suicida.
Será ainda tempo de emergirmos de todos estes erros e demagogias soezes? Não podes imaginar como me tenho sentido sozinha!
Escrevi um artigo onde falo de ti. Dei-o à Luta, se sair amanhã meto-o dentro desta carta.
O PS tem gente óptima e válida que é normalmente marginalizada e perseguida excepto aqueles que como Mário [Soares] e o [ Francisco Salgado] Zenha têm tanta importância  para o partido  que só são atacados por via muito indirecta. Surgiu no PS uma pseudo ala -esquerda que, em parte, demagógica e inconsciente, é em parte oportunista e que chama a «ala direita» a todas as pessoas responsáveis.
Lembro-me muitas vezes do título do teu livro , No Reino da Estupidez.
Vou parar as lamentações.
Fui à Líbia que adorei. Estive nos Açores que são uma maravilha.
A minha filha Sophia casou com o filho do Gonçalo Ribeiro Telles, grande amigo nosso. O meu filho Miguel teve um filho que se chama Pedro e que faz amanhã um ano!
O meu filho Miguel parte em breve para a América para uma viagem de um mês, viagem de trabalho, à Califórnia. Se passar perto de ti irá ver-te.
Mil saudades para ti,  Mécia e filhos. Peço notícias.
Abraça-os a todos
                                                                                      SOPHIA

                                              Santa Barbara, 15 de Maio de 1976
Caríssima Sophia
Aqui vão as letrinhas que pede e me foi impossível enviar antes. Muito e muito obrigada pelo seu cuidado  e pelas palavras amigas que dirige ao Jorge e o deixaram comovido.
Quanto à saúde  dele ainda que esteja  tremendamente débil parece que vai melhorando a despeito  dos dias de tremenda depressão  e por vezes irritabilidade , por se sentir  tão incapaz do mínimo esforço. Claro que tudo isto foi a consequência do trabalho excessivo e mais ainda o envolvimento emocional  que cada vez mais punha em tudo. E, para agravar a situação, a frustração e o desgosto do que se foi passando aí, mais o nascimento do nosso neto que, embora lindo e gracioso, podemos perder a todo o instante porque tem o coração incrivelmente mal formado.
Eu não vejo maneira de voltarmos para Portugal e agora mais do que nunca. Ninguém se lembrou do Jorge para nada nem o chamou para nada e nós não tínhamos de que sobreviver para voltar sem nada, à espera que caísse do céu. Por outro lado o Jorge não tem ainda direito a uma reforma que nos permita sobreviver e difícil seria  conformarmo-nos  a não ter , ao menos, o decente nível de vida que aqui temos. E isto para não falar em que, realmente,visto de longe temos a impressão que nunca esse país foi tão sórdido e tão medíocre. 
Mas, a verdade é que neste momento  nem sequer podemos pensar noutra coisa  senão no restabelecimento do Jorge. O ataque de  coração que sofreu foi gravíssimo e eu nem  sequer sei exactamente o que o médico pensa, se é que pensa, das possibilidades futuras dele.  Se o Jorge  for melhorando e o médico concordar é possível que dê, com ele, um salto não sei aonde , na Europa, para lhe restabelecer a confiança nele mesmo, mas tenho tanto medo da reacção dele, a julgar pelo estado de desânimo e desgosto com que o vi regressar no Verão de 74, que nem sequer sei se iremos a Portugal.
Se o Miguel aqui aparecer recebê-lo-emos com imenso gosto, assim ele descubra que na América não há distâncias. A Los Angeles , 150 quilómetros daqui, vamos nós para ir ao cinema ou a um concerto.
O Jorge agradece-lhe a fotografia que está linda. E envia-lhe , bem como ao Francisco, as melhores lembranças. Um afectuoso abraço da 
                                                                                            MÉCIA

                            Santa Barbara , Cal., USA, 5 de Setembro de 1976
Querida Sophia

Deves ter recebido recentemente o meu livro de contos, que esperou anos para poder sair. Mas não é para isto que escrevo. Creio que não chegaste a saber que, em 25 de Março , fui quase fulminado por um ataque de coração, de que só agora começo a voltar a uma muito relativa normalidade, ainda que o especialista que me vigia se mostre muito satisfeito com o que ele acha uma extraordinária recuperação para a violência  do raio que me ia fazendo em cisco. Já antes , por meses, a minha vida, era aqui um inferno ( a que se somavam as angústias lusitanas). Sucede que , muito recentemente, fui expressamente convidado de Itália  a tomar parte , com especial discurso, num congresso internacional de escritores, que se reúne em Grado, cerca de Trieste, em fins deste mês. Desde o Verão de 1974 que n~qo piso a Europa, e é uma interessante oportunidade esta , que aceitei, depois que o especialista me autorizou, sob condição de que os voos se farão por etapas. Assim devo chegar a Lisboa no dia 17 pela manhã, creio eu, para partir para Itália a 20. A Mécia irá comigo, já que aquela gente italiana paga para mim e para ela., sabedores  de que não posso viajar só.  Quero muito ver-te eao Francisco. Ficarei em Lisboa aqueles dias , enquanto a Mécia vai ao Porto ver a família, coisa que não farei para descansar. Andar sozinho em Lisboa não poderei fazer. Os amigos que gostaria de ver - muito poucos - ou terão de vir buscar-me à minha casa (1) do Restelo ( telf. 610405)  aonde  ficarei,  ou combinar uma hora para nela nos encontrarmos. Será que tu sabes daquele congresso, e acaso estarás nele ( seria ouro sobre azul)?
Com as nossas saudades para vós, aqui vai o grande abraço muito amigo do 
                                                                                    JORGE
P.S. - Há tempos, como "visiting" dei aulas no "campus " de Los Angeles da Universidade da Califórnia a que pertenço. Espero poder levar-te uma cópia de um "paper" do seminário sobre poesia portuguesa do século XX, escrito sobre ti por um estudante avançado, e que me parece um belo estudo."
Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, in Correspondência 1959 -1978, Guerra e Paz editores, pp. 145-150

Notas
(1) - Referência à casa de Mécia e Jorge de Sena que, além das tentativas de ocupação evitadas pelo vizinho, foi objecto de expropriação. Uma intervenção de Eduardo Lourenço , que terá apelado a conhecidos, e o regresso de Jorge de Sena acabaram por resolver o assunto a bem.                                                                  

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