sexta-feira, 15 de maio de 2020

Espera

Um novo e belo poema de Eugénio Lisboa produzido neste tempo de peste, seguido de um verbete que roubámos a "Aperto Libro, Páginas de Diário II - 1991-1994", escrito em 15 de Maio de 1991, quando revisitou o Kruger Park, na África do Sul. 
Eugénio Lisboa é um nome maior da nossa Literatura. Tem uma vasta obra que se estende por diversos géneros. Completa  noventa anos , a 25 de Maio deste mês, sem nunca ter interrompido  a criação literária. Honra-nos e enriquece-nos ter o privilégio de o conhecer e poder publicar.
ESPERA
(Poema em redondilha maior, inspirado
num verso de Reinaldo Ferreira)

Vivo na esperança de um gesto
Reinaldo Ferreira

Vivo na esperança de um gesto
que alguém me há-de fazer,
mas quando enfim me apresto
para em mim o acolher,
torna-se o gesto funesto
com o fim de me perder.
Com um insistir honesto
e alma de não ceder,
persisto à espera do gesto
que alguém me há-de fazer.
Quem espera não desespera,
diz o povo quando acerta:
se me ponho então à espera
desse gesto como oferta,
é que a vinda desse gesto
é algo que me liberta
de um vazio que detesto.
Espero então por esse gesto,
sem temor e com razão:
ele, chegando-se, lesto,
dá-me força ao coração!
                                 13.05.2020
Eugénio Lisboa
A peste serve para regressarmos aos grandes clássicos, revisitando-os e revitalizando-os. Como é o caso do grande lírico, Reinaldo Ferreira, que conheci em Moçambique e cujos poemas dispersos e inéditos tive o privilégio de ajudar a reunir em livro, assim os salvando da destruição mais do que provável.

"Kruger Park, 15.05.1991 – Há dois dias nesta reserva natural: o Kruger Park, que tem as dimensões do Estado de Israel. A natureza protegida das depredações do homem: um dos poucos redutos do planeta onde não chega a gula humana e a estupidez consumista. Aqui não é só a natureza que fica preservada: são também os hábitos e as virtudes – no restaurante, o mesmo menu de há 30 anos, os mesmos protocolos; os “bungalows” não se fecham por fora, quando saímos, deixando neles tudo quanto trazemos: ninguém rouba.
Viajamos o dia inteiro, desde as 6.30 da manhã: girafas, elefantes, cudos, impalas, rinocerontes, leões… Um leão, no topo de um rochedo alto, olhando o seu reino, com arrogância. Mas senti-me vingado, quando vi quatro deles postos em debandada por um rinoceronte branco. O rei da selva, afinal, também foge, quando o adversário é de peso.
Hoje, no regresso ao acampamento (Lower Sabie), à nossa direita, a savana iluminada, Ou antes: acesa. Mais para a direita, depois dos Libombos, Moçambique.
Não vinha aqui – ao Kruger Park – havia cerca de vinte anos. Olho tudo com um pouco de tristeza: embora nada tenha mudado, já nada é o mesmo que era, quando aqui vinha com as minhas filhas e com os meus amigos. Reprocura-se o que já se não encontra. Mas é África, é grande, é generosa e cheira de outra maneira. Aqui se foi feliz.
Connosco, um israelita, um inglês, uma americana e um nepalês. A americana vive com o inglês e estão os dois no Malawi. Ele trabalha numa organização que dá apoio aos refugiados de Moçambique. Contam histórias terríveis do Malawi, estado policial feroz. Há histórias de gente que desaparece sem se saber como. Pobre África: autocratas, ditadores e trapaceiros.  E povos inteiros a morrer de fome. Que virá a ser a África do Sul com um Mandela ou um Butelezi no poder?
Nos intervalos (poucos) vou lendo Somerset Maugham: On a Chinese Screen: apontamentos soltos de uma viagem que fez à China, no inverno de 1919/1920. Flashes nítidos e implacáveis de gentes, vaidades, obsessões, ódios reprimidos. Algumas páginas são inesquecíveis – não ter receio de o dizer."
Eugénio Lisboa, in "Aperto Libro, Páginas de Diário II - 1991-1994", Editora Opera Omnia, Outubro de 2019, pp.25,26

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